[Atenção: este texto pode conter spoilers sobre o final da minissérie “Mare of Easttown]
Quando o mistério parece estar resolvido nos dez primeiros minutos do episódio é de desconfiar. Sobretudo se estivermos a falar do último capítulo de uma minissérie que, desde o início, tem andado a dar-nos pistas e histórias pararelas para nos confundir. Afinal, tinha de ser bem mais complexo do que parecia. E ainda bem.
O final de “Mare of Easttown” está disponível na HBO desde esta segunda-feira, 31 de maio, e confirma aquilo que já dava para suspeitar desde as primeiras cenas: é das melhores produções dos últimos tempos. Depois do flop que foi a conclusão de “The Undoing”, da mesma plataforma de streaming — que empolgou o espectador com a banal mas sempre eficaz pergunta “quem é o culpado?” ao longo de toda a história para acabar com cenas de helicópteros e perseguições que não foram suficientes para abafar uma resolução fraquinha —, as expectativas não eram as melhores. Contudo, o enredo criado por Brad Ingelsby (que escreveu argumentos de filmes como “O Caminho de Volta” e “Noite em Fuga”) e produzido por Kate Winslet restituiu a esperança nas grandes produções televisivas de crime e suspense.
Para quem ainda não viu, podemos resumir “Mare of Easttwon” em duas frases. Passa-se nos subúrbios de Filadélfia, EUA, e o homicídio de uma adolescente é o ponto de partida. Mare Sheehan (Kate Winslet) é a detetive que tem de desvendar o caso, enquanto ela própria tenta sobreviver ao caos que é a sua vida. Se ainda não viu, tenho outra frase para si: cancele tudo o que tem programado para os próximos dias, porque vai ficar colado ao ecrã.
“Mare of Easttown”. Não podemos (nem queremos) fugir desta cidade nem de Kate Winslet
Quem já viu os sete episódios foi elaborando várias teorias e mudando consoante as pistas que iam surgindo. Quem matou Erin McMenamin? Uma pergunta básica dá início ao thriller. A partir daqui vale tudo — só não vale o culpado ser o suspeito mais evidente. Foi isso que arruinou “The Undoing”. Os mistérios, as mentiras, o “diz que disse” conduzem toda a narrativa. Mas nada seria minimamente empolgante se não estivesse no centro de tudo Kate Winslet, que fez questão de aprender o sotaque característico daquela região para a personagem.
Não sei se existem elogios suficientes para descrever o talento desta mulher, que tem nesta produção um dos grandes papéis da sua carreira (sim, ao nível de “O Leitor” e melhor do que “Mildred Pierce”). Talvez o melhor deles todos seja dizer que ela não existe aqui. Em “Mare of Easttown” só vemos Mare, uma mulher despida de qualquer artifício, que desistiu de tudo — o seu declínio pode até ter começado antes do suicídio do filho, mas é esse o seu ponto de viragem. É desleixada, até a sua forma de andar e os seus gestos são rudes.
No último episódio, alguém lhe pergunta se algum dia, após a morte de um familiar, as coisas ficam mais fáceis. Ela responde: “Não. Mas, após um pouco, aprende-se a viver com o inaceitável. Percebemos que ainda precisamos de comida na despensa, de pagar a conta da luz e de lavar a roupa da cama. Encontramos uma forma de viver com isso”.
[o trailer de “Mare of Easttown”:]
É assim que vemos Mare a temporada inteira, numa espécie de sobrevivência que a própria nem quer muito. Respira porque o seu organismo é que manda e tudo o resto é feito em piloto automático. Vive obcecada com um caso de uma rapariga desaparecida que não conseguiu resolver e ninguém deixa que ela se esqueça disso. Mare não é uma simples detetive. Nasceu e cresceu em Easttown, tem relações pessoais com toda a gente, tudo é levado a peito. O mistério, as personagens sinistras, os cenários cinzentos e despidos de cor fazem muitas vezes lembrar “True Detective” — até o ar descabelado de Mare nos remete para a versão mais nova de Rustin Cohle, o detetive interpretado por Matthew McConaughey. A primeira temporada de “True Detective” é de uma perfeição difícil de superar, mas “Mare of Easttown” ganha num aspeto: dá-nos muito mais da sua protagonista. Entramos em casa dela, conhecemos a mãe que não suporta (Jean Smart está incrível no papel de Helen), o ex-marido que vive nas traseiras, a filha que, negligenciada depois da morte do irmão, parece uma miúda com a cabeça no lugar, contra todas as expetativas.
Até no final, quando descobrimos quem cometeu o crime, vemos Mare debater-se entre o seu dever profissional e a relação pessoal que tem com os envolvidos. Há incredulidade, culpa, raiva, tristeza e uma catarse que se começa a fazer ao som de uma banda sonora incluída de forma muito inteligente para nos guiar até à conclusão.
Quase todas as pontas soltas deixadas ao longo do caminho de “Mare of Easttown” ficam resolvidas — algumas, como o arco das raparigas desaparecidas, eram pura distração mas funcionam. Há um sentimento de fim, história terminada. Porém, não vivem todos felizes para sempre. Mare tem de fazer finalmente o luto da morte do filho, não sabemos se voltará a ver Richard (Guy Pearce), Erin continua morta, Colin Zabel nunca terá o futuro promissor para o qual se encaminhava, a família de Lori está destruída para sempre. A vida destas personagens existe para lá do final da minissérie e podemos imaginar o que quisermos. Se vai ficar mais fácil? “Não. Mas, após um pouco, aprende-se a viver com o inaceitável.”