“O que mais me frustra no teatro é que as pessoas continuam a escrever ‘peças'”, ironiza Chris Thorpe enquanto deambula pela sala de ensaio do teatro municipal da Guarda, onde alunos de várias escolas de teatro do país estão a assistir ao seu workshop de escrita dramatúrgica. Vestido de negro e Doc Martens nos pés, parece saído de uma banda da Manchester dos anos 90. Mas Chris é afinal uma das mais importantes novas vozes do teatro inglês da atualidade. Mas não parece que o preocupe não ser conhecido em Portugal, apesar de colaborar há vários anos com o coletivo Mala Voadora.

Chris Thorpe e Jorge Andrade na peça Your Best Guess, escrita por Thorpe para A Mala Voadora, vai estar em cena domingo, dia 4, no TMG,

“O problema das peças de teatro”, continua, “é que continuam a querer copiar a realidade e querer trazer essa cópia para o palco. Para mim, o teatro deve criar novas realidades através de processos simples. Basta o uso da palavra para se criar ‘uma’ realidade totalmente fora da realidade. A minha peça preferida, a que me fez querer escrever teatro, chama-se Speak Bitterness, estreou-se em 1994, pela Forced Entertainment, e continua a ser encenada até hoje. É só isto: uma mesa comprida e os atores sentados atrás dela. Espalhados sobre a mesa estão cartões com frases começadas pela palavra “Nós”, que cada um vai lendo como se fizesse uma confissão. A peça dura seis horas e nunca vi a realidade, a política, as nossas mentiras individuais e coletivas recriadas com tanta força. Era só isto: uma mesa, atores e cartões de papel e eles tinham o público totalmente na mão,” explica aos seus muito jovens alunos, o dramaturgo de Manchester, que já escreveu peças para o Royal Court, é artista residente no Royal Exchange, fundador do Unlimited Theatre e também é conhecido por escrever em colaboração com poetas.

Recriar Speak Bitterness será o exercício daquela tarde, escrever e interpretar, mostrar como a linguagem pode criar e manipular ambientes psicológicos e sociais. Gosta particularmente dos mundos fechados criados por Roberto Bolaño e Borges, conta ao Observador, e afirma sentir-se “deliciado por poder estar no nascimento deste projeto”, o Centro Internacional de Dramatúrgia.

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Este centro, CID, é a primeira instituição do género a nascer em Portugal, e tem como fundador e diretor Marcos Barbosa, ator e encenador que, durante 9 anos, dirigiu o Teatro Oficina, em Guimarães e, atualmente, é o diretor da recém-criada Escola ao Largo, em Lisboa. Anunciado pela Câmara Municipal da Guarda, em Março, o CID abriu ao mundo esta semana com o Festival Novos Bardos, decorre até domingo e segue depois para Lisboa. Este festival tem como eixo central a formação de novos dramaturgos e para isso levou até à Guarda nomes fundamentais do teatro que está a ser feito hoje no mundo. Chris Thorpe, John Colin Eisner (fundador do Lark Play Development Center, em Nova Iorque, um projeto que ajudou a criar centros dramatúrgicos em vários sítios do mundo, mas em especial na América do Sul e Ásia), Line Rosvoll diretora da Dramatikken Hus na Nóruega, Deborah Person, uma das escritoras de teatro mais representadas nos EUA e Jorge Andrade da Mala Voadora.

O convidado de honra é Jacinto Lucas Pires, que vai ter várias peças suas representadas ao longo desta semana, culminando no sábado, ao fim da tarde, com a estreia de Profecia do Princípio do Mundo, em que o dramaturgo dialoga com os textos do padre António Vieira para refletir sobre os vários extremismos da atualidade. O espetáculo acontece em Famalicão da Serra, uma aldeia típica beirã, a poucos quilómetros da Guarda e quer ser também um diálogo com a comunidade da região que apostou na criação deste Centro Dramatúrgico.

Marcos Barbosa, diretor do CID, como ator no monólogo Aqui Somos Todos Lázaros, de Jacinto Lucas Pires

Novos bardos no eixo Guarda-mundo

A Guarda tem o charme e a aragem fria das coisas que se deixaram cair no esquecimento por muito tempo, não obstante continuarem vivas. Além de ser a cidade mais alta de Portugal, é uma das mais antigas, com foral atribuído por D.Sancho I, no século XII. Agora, a Guarda está a preparar a sua candidatura a Capital Europeia da Cultura, em 2027 e quer apostar na cultura como motor do desenvolvimento regional, começando com a sua descentralização. A aposta na criação deste centro de criação dramaturgica “não pretende ser uma coisa efémera, mas algo que permaneça depois da capital europeia da cultura e que seja independente dela”, explica Marcos Barbosa ao Observador. Foi ele que idealizou esta casa do teatro e a propôs ao executivo da cidade beirã que aceitou o desafio. “Foi uma decisão muito corajosa por parte da autarquia, porque isto não é uma coisa óbvia, mas pode ser muito, muito importante para o desenvolvimento do teatro português”, afirma.

A ideia principal é trazer para a Guarda escritores, dramaturgos, criadores de todo o mundo, pessoas com projetos relevantes no teatro e na cultura. “Porque é que nas cidades de província as pessoas não hão-de ter acesso a uma dinâmica cultural como Lisboa e o Porto?”, pergunta Marcos Barbosa, que quer trazer ao centro as escolas de teatro nacionais e municipais, as universidades e as comunidades locais. “É preciso que os teatros em Portugal utilizem o máximo das suas potencialidades, que cresçam em ambição e oferta. Para isto é preciso o apoio das autarquias mas também do poder central, da comunicação social. Não acredito nessa coisa de um teatro para iluminados. O teatro é para todo o tipo de pessoas, tèm é que ser dadas chaves de leitura, para as obras”.

O CID terá quatro grandes eixos: formação de escritores, formação de professores, formação de tradutores e formação de críticos. Em paralelo, haverá uma programação teatral, parcerias com outros teatros. Procurando não esquecer a criação de uma rede de teatros regionais, feita por Manuel Maria Carrilho, e que nunca se materializou numa nova dinâmica das artes performativas em Portugal, Marco Barbosa, sonha com um país que goste de teatro tanto quanto ele e onde esta forma artística não tenha o papel de uma coisa para elites urbanas.

Ensaio de A Profecia do Príncipio do Mundo, de Jacinto Lucas Pires, que tem estreia absoluta no dia 3, na aldeia de Famalicão da Serra e depois em Lisboa, no dia 9 de Julho. Fotografia: Filipe Condado

O seu amor por Shakespeare e a sua crença no teatro como forma de desenvolvimento das comunidades, a força que encontra na palavra como troca e reconhecimento do Outro, estiveram na origem do nome deste festival: Novos Bardos. “Os bardos eram os que levavam a palavra aos outros, sejam poetas ou dramaturgos, escritores ou músicos, são os que constroem coisas pela via da linguagem”, diz ainda antes de correr para o ensaio da peça Profecia... na qual é encenador e ator.

O evento encerra no domingo com um debate sobre o padre António Vieira, com a participação de Pedro Mexia, Rui Tavares e do padre jesuíta João Sarmento. As peças de teatro, os workshops e o debate acontecem já na próxima semana, em Lisboa, na Escola do Largo, (exceto os de Chris Thorpe e Lin Rosvoll).

A Escola do Largo é outro dos projetos que Marcos Barbosa tomou em mãos este ano. O espaço fica no largo do Chiado, junto à igreja da Conceição, que pertence agora aos jesuítas. Na antiga casa mortuária há um palco, tipo caixa negra, e mais duas salas, para as quais Marcos pensou num funcionamento não muito diferente do CID, embora a Escola do Largo assente na questão das migrações. tenha previstos espetáculos de teatro, acolhimentos e formação informal em artes performativas. Da equipa artística deste projeto fazem parte Yamilet Méndez Solano, bailarina e atriz cubana, o músico brasileiro Doménico Lancelotti e o próprio Marcos Barbosa.