Não é certo que os mais novos saibam o que é uma loja de discos, mas – não vá dar-se o caso de nunca terem entrado numa – fiquem a saber que é um local (físico, real) onde se pode comprar música gravada em suportes físicos. Antes do mp3 e do streaming, a música era inscrita em CDs, ou então numa cassete de fita magnética, tendo ambos os suportes surgido após aquilo a chamamos vinil – uma rodela com altos e baixos que não se notam a olho nu, e que produzem som quando uma agulha pousa sobre o vinil.
Com o tempo, o vinil tornou-se um item de colecionador (mais caro que o CD, por exemplo) e desde dia 3 deste mês que as melhores lojas de discos dos Estados Unidos têm à venda um vinil vermelho, uma edição comemorativa dos 50 anos de There’s A Riot Goin’ On, a (ou uma das) obra(s)-prima(s) de Sly & The Family Stone. No resto do mundo, a reedição em vinil vermelho chega dia 10 – e isto, num planeta em que não há uma semana sem uma reedição ou um documentário monumentais dos ou sobre os Beatles, parece injusto. Não faria sentido que uma obra como There’s A Riot Goin’ On merecesse mais atenção? Faria, mas não sou eu que mando nisto.
Poucos discos chegam aos 50 anos com tão poucas rugas como There’s A Riot Goin’ On – o groove ainda é diabólico (logo desde a faixa de abertura, “Luv ‘N Haight”) e o tempo encarregou-se de tornar os seus temas (a condição do negro na América, logo à cabeça) ainda mais prementes, em particular com a ascensão da extrema-direita e a sua oposição a movimentos como o Black Lives Matter.
[“Everyday People”:]
Mas There’s A Riot Goin’ On não é apenas um grande disco de funk dançável e político – está, até, muito longe de ser apenas um disco de funk, apesar de, de certa maneira, o inventar, misturando-o em simultâneo com soul, rock, psicadelismo e pop, esta última notória nas melodias; There’s A Riot Goin’ On é um grande disco de cruzamento de influências históricas, de miscigenação cultural, de reflexão política e uma daquelas míticas demonstrações da capacidade que o ser humano tem de transcender na exata medida e no exato momento em que se auto-destrói.
Na génese de There’s A Riot Goin’ On há um pouco do mito romântico do criador que sofre e dá cabo da sua vida por forma a criar – depois de quatro discos que triangulavam soul, pop e psicadelismo, Sly Stone, o líder e frontman de Sly & The Family Stone, deu por si numa espiral de festas, cocaína e paranoia, que o levou a, em última instância, fechar-se numa cave onde gravou as bases do disco. There’s A Riot Goin’ On é o primeiro disco gravado nestas condições – assumindo estatuto de pioneiro, numa altura em que gravar discos implicava passar semanas num estúdio de gravação.
Mas a decisão de gravar assim não se deveu apenas a uma vontade de mudar o som – que se tornou mais pesado, fragmentário, repleto de caixas de ritmos, por oposição à soul pop de discos anteriores (como o magnífico Stand!, de 1969), embora essa vontade de mudar existisse, e com ela tivesse surgido o funk (bruto, anguloso) tal como o conhecemos; deveu-se à deterioração das relações entre Sly e os restantes membros do grupo.
Até então, a Family Stone era uma família multi-racial, que não olhava a géneros, o que estava de acordo com a mensagem de paz e igualdade que pregava. Formados em 1966, os Sly & the Family Stone foram percursores do movimento de soul psicadélica que marcou a segunda metade da década de 60, lado a lado com outros grupos como os magníficos Rotary Connection (onde pontificava a maravilhosa Minnie Ripperton). Toda a gente já ouviu, nem que seja de passagem, “Everyday People”, extraordinário exemplo da capacidade da Family Stone para criar música soul melódica e ligeiramente tripada, mas ainda assim acessível. Vistos de fora, Sly & the Family Stone pareciam arquétipos da paz e amor a que normalmente equivalemos a década de 60 – mas do mesmo modo que esse epíteto escondia uma década trespassada por guerras, conflitos raciais, sociais e geracionais, também a família Stone (multi-racial e multi-género) começou a mostrar as suas feridas.
A partir de 1970, a relação de Sly com o resto da banda deteriorou-se à medida que ele ia faltando a uma data de concertos e sessões de gravação, ou tomava decisões como contratar um par de gangsters para funcionarem como seus guarda-costas, compradores de droga e, em geral, figuras agressivas que mantinham afastados todos os indesejados, o que a dada altura passou a incluir membros dos Family Stone. Em pouco tempo os músicos da banda começaram a despedir-se, enquanto Sly ia ficando mais sozinho, cada vez mais encerrado em paranoia, crente de que alguns membros da banda tinham alguma coisa contra ele.
Foi assim que Sly acabou por criar um estúdio na sua mansão em Bel Air, gravando (nos intervalos do seu consumo excessivo de cocaína) a maior parte dos instrumentos sozinho, antes de os restantes membros da banda regravarem as suas partes (quando regravavam) individualmente, ao invés de a banda gravar toda em conjunto, como haviam feito sempre até então. Além dos membros que restavam da Family Stone, Sly foi ainda ajudado por amigos seus como Bobby Womack, Ike Turner e Billy Preston, que deram um saltinho até ao seu estúdio para gravar umas malhas para i disco.
Não é certo que as razões que levaram Sly a afastar-se dos membros da Family Stone tenha sido a mesma que o conduziu a uma visão quase apocalíptica da América: o dinheiro e a fama guiaram-no de festa em festa, de linha em linha, ao ponto de Sly andar de um lado para o outro com uma caixa de violino com um fundo falso, sob o qual se escondiam drogas várias (para poder estar sempre drogado).
O seu estado mental deteriorou-se, tornou-se mais agressivo, mais paranoico, mais errático, e isso explica as faltas a concertos, os desempenhos menos conseguidos em talk-shows, ou não se dar ao trabalho de ir aos ensaios da banda – mas isso não significa que estivesse errado quando olhou para a América e não gostou do que viu. O assassinato de Martin Luther King, o fim do ativismo pelos direitos sociais, a pobreza e analfabetismo dos negros, o Vietname – tudo isto, para Sly, eram sinais de um país profundamente desigual, no qual não havia muita esperança para os negros.
Nem sequer se pode dizer que seja caso único: em 1970 Marvin Gaye gravou What’s Going On, que parte das mesmas premissas; em 1974, Lou Bond editaria o álbum homónimo, que também refletia sobre os mesmos assuntos; quase toda a obra de Curtis Mayfield é uma reflexão sobre a condição negra na América. Foi exatamente na viragem dos 60s para os 70s que os músicos negros se desviaram do comercialismo para usar a música como veículo para as suas reflexões sobre o que significava ser negro.
[ouça aqui na íntegra o álbum “There’s a Riot Goin’ On”, de Sly and the Family Stone:]
A visão de Sly era, contudo, particularmente dura, e essa dureza traduziu-se num disco que, ao contrário dos anteriores, não procurava ser solar – era escuro, anguloso, pesado, com uma produção que acentuava as sombras e o tornou, à época, um disco difícil de ouvir (e que dividiu a crítica). Hoje esta forma de criar e este tipo de produção são comuns – mas há 50 anos não era suposto ouvir-se o ruído da fita magnética, que ficou gasta, de tantos overdubs. Se precisarem de um exemplo de uma canção cuja produção, à época, confundiu os ouvintes basta ouvir “Spaced Cowboys”.
Isto não é o mesmo que dizer que There’s A Riot Goin’ On não tem canções imediatas – pode não ter canções explosivas, mas está cheio de canções brilhantes, a começar logo por “Luv N’ Haight”, uma abertura extraordinária, a que se segue a maravilhosa “Just like a baby” (que marca muito do r’n’b que foi feito nas décadas seguintes), passando pela genial “Family affair” (que não só tem uma linha de baixo extraordinária, como também exibe uma das melhores guitarras wah-wahs da história), ou por “(You caught me) smilin'”, com um uso perfeito dos coros naquela entrada em ascensão que é também o coro (um truque muito à Beatles e que ainda hoje é usado).
A ironia é que 50 anos depois, o r’n’b e o hip-hop são os reis da música popular, o que significa que a produção por camadas e a combinação de linhas de baixo gulosas com melodias delicadas de There’s A Riot Goin’ On estão mais presentes que nunca, e tornam-no mais acessível do que alguma vez foi.
As causas que servem de fundo a There’s A Riot Goin’ On continuam por resolver – mas, musicalmente, Sly é hoje mais vencedor que nunca.