A personagem encontra-se sozinha no palco e assume um tom professoral. Está a dar uma palestra perante alunos imaginários e usa o plural majestático para vestir de veracidade científica tudo aquilo que diz. Porém, o didatismo vai-se transformando e o “professor” dá lugar à pessoa anónima, que partilha a sua história individual, os seus gostos, as suas emoções.

O tema é o guilty pleasure, são os prazeres secretos, ordinários, pirosos. Os gostos de mau gosto que quase toda a gente se envergonha de assumir em público — e a música é o campo para esgrimir argumentos. Eis “Maráia Quéri”, palestra-performance de Romeu Costa e Marta Carreiras, que se estreia nesta quarta-feira na sala-estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Fica em cena até 6 de março, de quarta a sábado às 19h30 e domingos às 16h30.

Talvez seja um espetáculo sobre sair do armário e assumir o que se é — neste caso, assumir sem culpa o gosto kitsch que não fica bem. Há música de Mariah Carey, claro, diva de baladas e outras canções orelhudas, mas também de Whitney Houston e outras cantoras de êxito planetário, aqui reproduzidas num velho leitor de cassetes e na voz afinada de Romeu Costa. “Será que gostamos de ouvir um guilty pleasure porque sabemos que é uma coisa errada, que não é o que se espera de nós?”, interroga-se a personagem.

Há dias, depois de apresentar aos jornalistas um segmento do espetáculo, Romeu Costa explicou que a personagem em palco é ele mesmo, ou uma versão de si. “É a minha história”, disse. “Comecei a pensar nisto e a falar com a Marta sobre um espetáculo que partisse da minha experiência. Quis falar do que me envergonhava quando era mais novo. O guilty pleasure é um conceito que permite colocar aqui muitas reflexões sobre a nossa cultura, o fazer parte e não fazer parte, a inclusão e a exclusão. A Mariah Carey é o fio condutor que nos permite falar de coisas mais significativas e profundas do que aquilo que à partida uma cantora pop suscita.”

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A legitimidade cultural é convocada sem furor teórico. Surgem ideias sobre a memória, a adolescência e a relação do gosto cultural com o estatuto social e a identidade de cada pessoa. O que é alta cultura e baixa cultura? Porque é que uma é considerada alta e a outra é baixa? Onde começa e acaba a qualidade?

[“Hero”, interpretada por Mariah Carey, é um dos temas que se ouvem na peça:]

Democratização do gosto

“Não é só uma coisa minha, penso que as pessoas se debatem constantemente com a adequação aos contextos. Há momentos em que isso é vivido de forma saudável, em que essa gestão é feita como estratégia normal de adaptação, e outros momentos que implicam a noção de culpa ou de vergonha”, acrescentou o ator. “A peça procura trazer uma mensagem de democratização do gosto. Permitir às pessoas viverem de forma mais harmoniosa consigo mesmas e apaziguar a culpa, ainda que neste caso a culpa possa potenciar o prazer.”

Romeu Costa, de 42 anos, conhecido do grande público pela participação em séries e telenovelas da RTP, SIC e TVI, começou a pensar na peça em 2016 e chegou a imaginar uma tese de mestrado em etnomusicologia a partir destas questões. A tese não se concretizou, mas o espetáculo aí está. Marta Carreiras, de 46 anos, cenógrafa e figurinista agora empenhada num doutoramento, juntou-se com uma perspetiva crítica sobre o pensamento académico vigente. O próprio título da peça, em transcrição fonética, sublinha a vontade contornar a hegemonia da língua inglesa e da cultura dominante, segundo os autores.

“É a minha história”, assume o ator

Conheceram-se profissionalmente há quase duas décadas no Teatro Meridional e em 2017 apresentaram a encenação conjunta “Pedro e o Capitão”, no Teatro Municipal São Luiz. Além de “Maráia Quéri”, vão também coencenar a 31 de maio no São Luiz “Jogos de Obediência” (segundo capítulo de uma trilogia precisamente iniciada com “Pedro e o Capitão”, a que se seguirá “Hitler, Meu Amor” em 2023).

“Maráia Quéri” estreia-se num teatro nacional — é certo que na sala-estúdio, para propostas mais periféricas —, onde à partida tem mais vezes lugar o teatro dentro dos cânones. É uma aparente contradição, que vai bem com a proposta.

“Não damos tudo, há lugar para a imaginação do espectador, ao contrário do que acontece com a música ou o teatro comercial, que mostram aquilo que a pessoa já conhece. Ao mesmo tempo, estamos a arriscar, porque a peça é exatamente sobre a eficácia da cultural popular e mais comercial”, explicou Romeu Costa. Marta Carreiras acrescentou: “O que não podíamos era dizer uma coisa e fazer outra, ou seja, pôr em causa as ideias de high culture e low culture e depois fazer um espetáculo de elite.”