Ao fim da manhã de quinta-feira, numa visita guiada mesmo antes da inauguração, marcam presença os curadores, vários artistas e uma rara concentração de jornalistas. Ouve-se aos responsáveis que é uma grande coprodução internacional, forte aposta da temporada: “Europa Oxalá”, assim se intitula, de 4 de março a 22 de agosto no edifício principal da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.

Exposição de grande público, a atrair as atenções da imprensa, apresenta 60 obras de 21 artistas com “origens familiares nas antigas colónias em África”, e outras origens também. É uma abordagem política das artes visuais sobre um assunto que não sai da agenda. Como repensar as relações Europa-África? Que fazer com as histórias do colonialismo? Que outras versões para um período histórico que parece mal resolvido?

“Reflexão original sobre o racismo, a descolonização das artes, o estatuto da mulher na sociedade contemporânea ou ainda sobre a desconstrução do pensamento colonial”, diz a folha de sala. “Ambicioso projeto”, classificou no catálogo a presidente da Gulbenkian, Isabel Mota.

António Pinto Ribeiro — programador cultural e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra — já tinha anunciado a exposição quando em outubro do ano passado deu uma entrevista ao Observador a propósito do seu livro Novo Mundo: Arte Contemporânea No Tempo da Pós-Memória. Seria uma mostra com criadores de segunda e terceira geração que vivem na Europa, passaria primeiro pelo MuCEM (Museu das Civilizações da Europa e do Mediterrâneo) de Marselha. Depois viria a Lisboa, terminando no Africa Museum em Tervuren, na Bélgica.

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E a exposição aqui está. Começou a ser pensada em 2018, quando Miguel Magalhães, então diretor da delegação da Gulbenkian em França, convidou Pinto Ribeiro para organizar uma exposição de arte contemporânea. O investigador, que estava a trabalhar no âmbito do projeto académico “Memoirs – Filhos de Império e Pós-Memórias Europeias”, propôs o conceito que veio a dar origem a “Europa Oxalá”.

António Pinto Ribeiro: “Há provas evidentes de racismo, mas não há racismo sistémico em Portugal”

“A arte está no mundo, não está fechada num caixa branca”

Perante a numerosa plateia, Pinto Ribeiro sublinha a atualidade da proposta num momento de “tentativa de ocupação da Ucrânia pela Rússia”, que descreve como “manifestação de neo-imperialismo, o que está também apresentado e representado” na exposição. A guerra começou a 24 de fevereiro, lembra o curador, enquanto a 26 de fevereiro, mas de 1885, terminava a Conferência de Berlim, durante a qual “os impérios europeus dividiram África entre si”.

O investigador sublinha que “muitas obras foram feitas expressamente para esta exposição”. Descreve-as como ecos de “memórias difusas e transferidas”, memórias de europeus e europeizados, filhos e netos de quem nasceu em África em regimes coloniais (ainda que haja artistas representados “sem qualquer filiação africana” mas que se aproximam do tema). Faz notar que as janelas da sala de exposições estão abertas e permitem ver o exterior, porque “a arte está no mundo, não está fechada num caixa branca”.

Adiante declara que a exposição inclui obras baseadas em tecnologia digital, o que “desmontar o cliché racista de que os artistas afro-europeus trabalham apenas a partir do artesanato”. Ao lado dele estão os outros dois curadores: Katia Kameli e Aimé Mpane, descritos como “afro-europeus”, também artistas com obra na exposição.

“Recusei-me a expor as imagens da pobreza”

A abrir o percurso surge “Dada” (2018), de Sabrina Belouaar, nascida em Paris em 1986, em cujo trabalho está presente “a questão identitária e sobretudo pós-colonial”. A escultura na parede representa dois punhos amarrados com um cinto, que parece prestes a soltar-se. “Houve acordo entre todos para que esta peça forte fosse a primeira a ser vista pelos visitantes”, explica Katia Kameli, segundo a qual “apresentar novas ideias, novas perguntas e novos artistas são algumas das premissas” da exposição.

“Dada”, de Sabrina Belouaar

A artista e professora de origem angolana Mónica de Miranda, nascida no Porto em 1976, toma a palavra para falar da obra que propõe: “Tales of Lisbon”, da série fotográfica “Black Tales” (2020). “É sobre a minha chegada à cidade de Lisboa, a cidade das periferias, que fui fotografando ao longo de 10 anos”.

Imagens de objetos colhidos junto à Estrada Militar, nos antigos bairros sociais do 6 de Maio e da Azinhaga dos Besouros, onde se fixaram populações africanas depois do 25 de Abril de 1974. “Recusei-me a expor as imagens das demolições e da pobreza, fui às casas demolidas como uma arqueóloga buscar os restos e as histórias que tinham ficado para trás. A memória de um lugar baseada em factos concretos”, resume a artista.

“É um chicote, mas poderia ser uma arma de fogo”

À medida que se progride, surgem obras de Carlos Bunga (Porto, 1976), Franciso Vidal (Lisboa, 1978), Márcio Carvalho (Lagos, 1981), Malala Andrialavidrazana (Madagáscar, 1971), Sandra Mujinga (República Democrática do Congo, 1989), Sara Sadik (França, 1994). Vários outros.

Nú Barreto, nascido na Guiné-Bissau em 1968, fala sobre “Traços Diários 3” (2020), painel de desenhos de seres humanos inacabados. “É uma espécie de caderneta de bordo que fiz em Paris, com a preocupação de abordar tudo o que me atravessava o espírito, sobretudo as consequências do confinamento, o resultado do individualismo, o resultado da descolonização.”

“Falling Thrones”, de Márcio Carvalho

Pauliana Valente Pimentel, lisboeta nascida em 1975, dá a conhecer parte de uma nova série fotográfica: “Afro-Descendentes” (2020), retratos íntimos de jovens artistas durante o primeiro confinamento em Lisboa. São atores, pintores, performers, com raízes nas antigas colónias portuguesas, incluindo o Brasil.

“Quis ser abrangente e escolhi aqueles cujo trabalho artístico me pareceu mais relevante. Passei algum tempo com eles, procurei conhecê-los e retratá-los. Além das imagens, os retratos incluem frases que pedi aos artistas. Era importante um testemunho curto sobre o que para eles é ser europeu, estar na Europa”, explica a fotógrafa.

Djamel Kokene-Dorléans, natural da Argélia, apresenta “Ça a Été” (2009), instalação de um chicote sob aquela mesma frase, que é um conceito do filósofo Roland Barthes para dizer que a fotografia é sempre a captação de um elemento do passado. “É um chicote mas poderia ser uma arma de fogo. Cria-se uma situação de diálogo entre a frase, o objeto e um terceiro elemento, que é o espectador. Desta triangulação nasce um processo de imagens mentais que cria a situação final.”

Especialmente fora do comum parece ser a proposta de John K. Cobra, também conhecido como Roland Gunst. Nasceu em 1967 na atual República Democrática do Congo, filho de pai belga e mãe congolesa. Pegou no kwanga, um pão à base de mandioca e que ele simbolicamente associa à plasticidade da borracha, para pensar uma instalação de conceito inusitado.

Numa sala escura há um filme gravado em estúdio sobre a transformação e fluidez da realidade. “A vida humana funciona por ciclos e na maior parte do tempo precisamos de estar num estado líquido que corresponde à reconfiguração, à mudança, à migração. Só por momentos breves é que somos sólidos e temos certezas sobre as nossas identidades”, explica John K. Cobra.

Daí o salto para a teoria que quer aplicar, na prática, aos controversos monumentos históricos a que se atribuem significados colonialistas e que em alguns casos foram destruídos ou vandalizados nos últimos anos. “Em vez de destruirmos os monumentos, defendo que deveríamos cobri-los com uma camada de borracha, para que cada um pudesse ali inscrever uma visão crítica, um contra-monumento, sem danificar o original. A borracha é um meio para levar a arquitetura a um estado líquido, em vez da rigidez do momento presente.”

E se sobre a borracha alguém inscrever mensagens que sublinhem ainda mais ideias colonialistas, pergunta-lhe o Observador. “Pode acontecer. A minha opinião não é a única que conta, não sou dono da verdade”, responde. E acrescenta: “Sou contra a destruição de monumentos, porque as pessoas também têm o direito de gostar deles, de acreditar no seu significado, e porque são a garantia de que não se falsifica o passado. Quero apenas apresentar a minha perspetiva, na esperança de chegarmos a um acordo. Precisamos de pôr cá fora as ansiedades e a raiva originadas pelo trauma.”