Victor Willing, que foi pintor e marido de Paula Rego, dizia que ela se sentia próxima de Georges Bataille quando ele escreveu: “a primeira motivação para a arte é o desejo de destruir”, pois ele também encontrava na artista este “impulso destrutivo”, que por vezes a aproximava do automatismo surrealista. Num ensaio que escreveu sobre a obra da mulher, Willing classifica de “orgiastica” a forma de artista trabalhar. E, mais tarde, ela própria confessará, à historiadora de arte Fiona Bradley, “o prazer de cortar, destruir” como uma coisa “completamente excitante. Fisicamente, sexualmente, excitante”.

Quando, a partir dos anos 80, o seu método de trabalho se tornou menos orgiástico como as festas dionisíacas das Bacantes, ainda assim os seus temas e os seus quadros não deixaram de ser uma orgia de símbolos, ligações, linguagens, onde a memória pessoal se cruzava à memória coletiva portuguesa e inglesa: contos de fadas,  lendas e provérbios, às canções de embalar, mas também literatura (Eça de Queirós, Genet, Ted Hughes, entre outros), filmes, relatos orais, vidas anónimas.

A tudo isto há que juntar um cunho político muito forte, o sarcasmo, a ironia e a auto-ironia, o ridículo e, claro, um forte desejo de contar histórias sobre as verdades escondidas da vida humana, mesmo quando entre essa verdade e a fantasia as fronteiras se esbatem.

Ainda que a narrativização presente nos seus quadros nunca tenha sido mera ilustração. Ela coloca de lado o “Era uma vez”, apanha a história num determinado momento ou detalhe e vai refazê-la, com a liberdade e maldade de uma criança, indo buscar referências aos Surrealistas, aos Dadaístas, aos caricaturistas anónimos, à Pop Art, à fotografia, à banda desenhada e até aos filmes de Walt Disney, como na famosa série das “Avestruzes Bailarinas” de 1995 e 1996. Juntando o real e o imaginado, a artista vai trabalhar sobretudo para mostrar a normalidade do que nos ensinaram ser anormal e subverter o moralismo punitivo que ainda recai sobre os corpos dos mais fracos, em especial das mulheres.

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Série “Menina com Cão”

Série “Menina com Cão”, de 1986 (Galeria Saatchi)

Paula Rego não gostava da natureza, nem dos Impressionistas. Gostava da casa, das mesas de cozinha, dos quartos das crianças, dos lugares fechados onde a perversão, a manipulação, o mal acontecem e são mantidos em segredo. Na sua imensa sabedoria sentiu-se sempre cúmplice das crianças, dos loucos, dos marginais, dos animais que considerava terem acesso a outro tipo de conhecimento, onde a doçura e o ardil, o riso, o campo aberto ao excesso, à surpresa, à crueldade eram mais conformes às histórias que ela queria contar.

Meninas e cães são portanto personagens transversais à sua obra, quer na pintura, no desenho ou na gravura. As crianças onde a inocência convive com a crueldade, a doçura, que têm uma forma muito própria de “loucura” na forma como vão integrando o mundo, as regras, os poderes, como vão testando os poderes nas fugas à obediência, como olham com crueza os adultos expondo as suas falhas são, por assim dizer, as personagens principais da obra de Paula Rego. Mesmo quando representa adultos, especialmente mulheres adultas, elas têm sempre uma espécie de infantilidade inultrapassável.

Nesta serie, onde uma menina ou duas meninas contracenam com cães, os corpos delas são sempre gigantes face ao cenário que as envolve e, todas as brincadeiras parecem estar no limiar da maldade, do ritual sacrificial. Por seu turno, os cães também são criatura ambíguas: entre a domesticidade e a possibilidade de se tornarem selvagens e morderem ao qualquer instante. Não é por acaso que neste quadro vemos em fundo um cão que se assemelha a uma raposa ou a um lobo e uma terceira menina que, numa posição crística (outra constante na obra de Paula Rego, as evocações veladas às figuras do cristianismo), parece dispor-se a ser atacada pelo cão.

Nestas meninas, nestes animais, nestas infâncias criadas por PR não há um pingo do sentimentalismo que hoje recobre a infância e lhe rouba a liberdade. Estas rapariguinhas púberes são, como escreve Ruth Rosengarten, “personificações de estados psíquicos que e emotivos complexos que remetem para a infância mas também para a vida adulta (…) onde o amor e o medo jorram da mesma fonte”. Efetivamente não há como não nos lembrarmos das crianças de Balthus, mas Paula Rego ficava ofendida quando a comparavam a Balthus.

“A Dança”

“A Dança”, 1988

“A Dança” é provavelmente o quadro mais famoso  de Paula Rego, mas também o mais excêntrico ao seu universo pictórico. Aqui as questões políticas e sociais, a ambiguidade humana entre o Bem e o Mal dão lugar a uma profunda melancolia e a uma dor que se manifesta pela sua aceitação e não pela revolta. Também é um quadro que se passa num cenário exterior, no meio da natureza, ao contrário dos espaços concentracionários habituais na artista.

Esta não é uma simples dança, é uma representação sobre a forma como o tempo nos conduz ao longo da vida. Nele vemos a própria autora na infância, a dançar com duas mulheres de duas idades diferentes, a mãe e a avó, depois Paula a dançar com o marido, Victor Willing, nessa altura já muito doente, com Esclerose Múltipla (viria a morrer antes do quadro estar terminado), depois Victor a dançar com uma jovem amante loira e, por fim, a pintora vestida com um traje típico de camponesa a dançar sozinha (ou com o fantasma do amante perdido).

Dos muitos estudos preparatórios vemos que inicialmente não havia nenhum homem representado, apenas mulheres, numa dança que tanto poderia ser uma coreografia folclórica portuguesa como uma “Sagração da Primavera” de Niżyński. Foi Victor quem lhe sugeriu que ela pintasse também uma figura masculina, e ao contrário do que lhe era habitual ela aceitou mudar o quadro. Quem conta esta história, a vários títulos comovente, é o próprio filho, Nick Willing, que sendo muito parecido com o pai, teve que posar para o quadro, mesmo depois da morte deste, o que lhe causou um sofrimento terrível. Esse depoimento pode ser lido numa entrevista que este deu há poucos dias à revista Vogue UK.

Para além da história privada subjacente, esta dança representa um ciclo geracional das mulheres, a sua travessia pela vida, a sua relação com os homens (a relação entre Paula e Victor teve um prelúdio complicado). O tema da morte e da destruição do amor estão também aqui presentes, pois como escreveu Willing, “o impulso destrutivo estava muito ligado à identidade de Paula Rego.

“A Família”

“A Família”, de 1988. A vida privada da pintora para falar politicamente sobre o papel da mulher (Galeria Saatchi)

A família é um dos grandes temas da obra de Paula Rego. Desde a família católica em que Salazar quis transformar o pais, até à forma como este núcleo humano materializa varias formas de poder e serve a inculcar em cada individuo uma certa identidade, uma moral, da vivencia do corpo, da sexualidade, do trabalho, do tempo e do espaço. Esta obra é um exemplo da várias em que a pintora explora a casa familiar como lugar de violências, segredos e perversidades de toda a ordem.

Aqui uma adulta e duas crianças vestem um homem, como se ele fosse um boneco, um fantoche. Apesar de ele representar o poder patriarcal, são efetivamente elas que dominam, que fazem dele prisioneiro com a sua força física, com a sua sugestão sexual. Este quadro é assim uma grande imagem “da subversão da autoridade masculina”, escreve Rosengarten. Este feminismo assertivo onde se ancora a politicamente Paula Rego, e que está presente em todas as fases da sua obra, é uma das razões que está a fazer com que ela esteja a ser rapidamente integrada na chamada “Woke Culture”, embora a complexidade da sua linguagem ultrapassem fortemente os constrangimentos deste movimento que comanda os feminismos atuais.

O quadro “A Família” vai como que ter desdobramentos em outras obras emblemáticas como “A Filha do Policia” ou “As Criadas” (reinventando a peça de Jean Genet) ou “A Prova”. Quando, em 1990, a pintora foi convidada para ser artista associada na National Gallery, em Londres (o que marca um volte face na sua carreira) e teve toda a liberdade para criar o que bem entendesse, ela vai, precisamente, pintar em quadros de grandes dimensões, narrativas familiares, cenários domésticos de uma nova complexidade gráfica, mas também numa complexidade temática crescente.

Quando fala sobre a família, Paula Rego fá-lo com uma crueza temática que poucos artistas ousaram (Ingmar Bergman foi um eles), abordando questões como a competitividade, o ódio, o desprezo entre pais e filhos, por exemplo. Ela não teme colocar  em cima da mesa aqueles sentimentos e experiências que nos ensinaram a esconder por não serem conformes à moral vigente.

“Mulher-Cão”

Série “Mulher-Cão”, 1994, a primeira que Paula Rego realiza em pastel

Esta primeira obra da série “Mulher-Cão” é, a par com “A Dança”, uma das mais famosas e inconfundíveis de Paula Rego. Certamente um dos expoentes da chamada Figuração Narrativa, movimento artístico onde a figura humana é o centro de uma história simultaneamente individual e coletiva, com uma forte carga psíquica e política.

Aqui, vemos regressar a figura do cão, domesticado, mas potencialmente violento, em cujo corpo, como os corpos dos escravos ou das mulheres, se pode descarregar todo o tipo de violência, humilhação e ausência ou diluição do direito à individualidade. O grotesco sofrimento humano projetado por esta imagem é tão devorador que o espectador tem dificuldade em confrontar este rosto, este grito aprisionado dentro da tela. Nesta série, Paula Rego pretende retratar a paixão amorosa e o erotismo como renuncia, dependência e sofrimento. Note-se que, ao contrario do habitual, a artista abdica do seu teatro cénico; as paisagens sobre as quais se recortam estes corpos são depuradas, vazias.

A série nasce de uma história que Rego ouvira sobre uma mulher que, enlouquecida pelo vento, se põe de cócoras, abre a boca e engole todos os animais e com ela nasce uma nova fase na obra da pintora: “as mulheres solitárias e simbólicas” onde, o seu erotismo e a sua sexualidade existem sem a necessidade da presença real de um homem. Ele é apenas recordado ou antecipado, mas elas existem e exprimem-se e movimentam-se sem ele mesmo que o amem ou desejem (as “Avestruzes Dançarinas” serão um prolongamento deste tema).

Não vergadas pelo sofrimento nem pela solidão, estas mulheres, tal como os cães podem atacar a qualquer momento. Sobre elas Paula Rego explicou: “elas não são oprimidas, são bestiais, poderosas, podem rosnar, morder. Imaginar uma mulher como transformada em cão é totalmente crível”. Subjacente a este conjunto está o poema Moth, de Blake Morrison, e a ideia que aterroriza muitas mulheres que é a de deixarem de ser alvo do desejo sexual dos homens.

“Mulher-Cão” marca também, em definitivo, a utilização, por Paula Rego, do corpo de modelos, entre as quais emerge Lila Nunes, que começou por ser a enfermeira de Victor Willing e se tornará a modelo principal da artista até ao fim da vida. Ao ponto de, como notam os críticos, ela se ter tornado uma espécie de alter-ego da pintora, o seu corpo a falar através do corpo de outra pessoa. É impossível pensar nas imagens de Paula Rego sem visualizar o corpo de Lila Nunes.

Avestruzes Dançarinas

Serie Avestruzes Bailarinas, 1995, onde Paula Rego se inspira no filme da Disney “Fantasia” (Galeria Saachiti)

Quando falamos das histórias de Paula Rego, é preciso lembrar que ela própria era uma inventora de histórias e pedia mesmo aos seus ouvintes “que não tomassem à letra tudo o que ela contava”. Nela o real e o imaginado estavam sempre unidos, num reduto infantil que  nunca abandonou. Ora essa união era o que fazia dela e do seu trabalho emanações de uma estranheza, que nem todos podem suportar. Se hoje há quem queira assetizar os contos de fadas através do politicamente correto, corre-se o risco de um dia se querer assetizar também estas versões dos contos feitas por PR. Fantasia, Branca de Neve, Pinóquio são exemplos de histórias que a pintora portuguesa alterou, acrescentou, injetou novas possibilidades de leitura bastante afastadas do mundo idílico para o qual elas remetem.

A serie “Avestruzes Dançarinas”, é um conjunto que nos deve fazer ver que, como nota João Miguel Fernandes Jorge”, a narratividade [de Paula Rego] também se faz pela cor, pelo duelo entre as cores e a gestualidade das figuras, pelo cair da luz ou da sombra”. Tal como em “Mulher-Cão”, estamos frente a um corpo feminino masculinizado, corpos de grande volume, disformes, grotescos, em queda, parecem simultaneamente transfigurados em anjos e em animais. Esta série é ainda um momento em que Paula Rego volta a mostrar a influência que tiveram na sua obra as pinturas das catedrais do século XV, onde os corpos têm uma fisicalidade exaltada que parece querer sair dos limites da tela.

Nestas “Avestruzes Dançarinas”, a pintora volta ao grotesco (onde ela, aliás, sempre se moveu com toda a agilidade) e faz do filme da Walt Disney “Fantasia”, de 1996, uma parábola sobre mulheres que envelheceram mas ainda querem ser meninas, usar tutus de bailarina, ter a leveza de uma criança e todas as suas possibilidades de futuro. Numa entrevista, Paula Rego, naquele discurso cheio de alegre infantilidade que ela sempre usou para esconder a perspicácia, descreve assim esta série pictórica: “São mulheres que envelheceram mas ainda querem ter um namorado, embora à noite vão para a cama sozinhas”.

Construída a partir de um olhar cru, a mil anos do universo Disney, esta é uma narrativa com forte inspiração caricatural para, mais uma vez, falar no “doloroso sentimento humano de querer ser amado” explica Ruth Rosengarten. Paula Rego não é piedosa, nem para as suas personagens, por isso estas avestruzes, que por natureza não voam, insistem tontamente em querer voar e parecem mesmo muito convictas que o vão fazer.  Apesar dos seus corpos disformes, gigantescos e sem graciosidade elas ensaiam poses sexy e nós rimos com a sua persistência triste, mas acreditamos que elas vão triunfar.

O Aborto

A série “Aborto”, de 1998, foi feita depois do referendo feito em Portugal que resultou num “Não”

A série “Aborto, de 1998, realizada logo depois do referendo para legalizar a prática da interrupção da gravidez, promovido, em Portugal, pelo governo de António Guterres. O resultado do atribulado referendo foi a rejeição do aborto. Profundamente revoltada com este resultado, Paula Rego fez o seu conjunto de obras mais fervorosamente políticas e de cunho panfletário.

A primeira série deste tema é feita em pastel, mas depois é feita uma segunda em gravura. A utilização desta técnica, como explica Paul Coldwell, “colocam-na ao lado de Goya, Otto Dix ou George Gorz na utilização da gravura para fazer intervenção política” mais direta e mais próxima das pessoas comuns. “Ela é mais democrática e vai mais facilmente ao encontro do público a quem se dirige”. Como dirá Fiona Bradley, Paula Rego quer agir sobre o que considera “uma injustiça social” e mostrar que pode haver “um triunfo da vontade sobre as circunstâncias”. Dai que, mesmo quando expôs as gravuras numa galeria, expôs igualmente cópias das imagens em muito grande formato, para que estas pudessem ser vistas e apreendidas a partir de longe.

Tendo a própria feito vários abortos na juventude, Paula Rego conhece bem a realidade do aborto ilegal: das circunstâncias, do desespero das raparigas e mulheres, da falta de condições em que este era praticado e da iminência da morte. Apesar do seu engajamento pessoal e político nesta questão, a pintora sabe bem que o terror, se quer agir sobre a mente, não se mostra, apenas se sugere. Assim, nesta série não há sangue, corpos nús, imagens gore. Apenas corpos absortos no seu sofrimento onde região pélvica tende a ser o centro da imagem. Ainda assim, os quadros tem uma atmosfera de triunfo, que é o triunfo da livre escolha. Mais tarde, já em 2009, a artista fará outra coleção de gravuras sobre a mutilação genital feminina. Em 2021, quando inaugurou a  Tate Britain inaugurou a maior exposição dedicada à obra da pintora portuguesa, a BBC chamou-lhe “a artista que ajudou a mudar o mundo”.