Não está fácil digerir este final de “Peaky Blinders” — disponível na Netflix. As expetativas estavam elevadas, a espera foi demasiada, quase como se há muito sonhássemos com um menu perfeito na nossa cabeça, que nos deixava a salivar só de o imaginar. No papel a descrição dos pratos (ou dos seis episódios, neste caso) parecia a combinação perfeita mas, à medida que eles foram aparecendo e ficando aquém do que se esperava, fomos depositando todas as esperanças no próximo. Tudo terminou sem nenhum elemento que nos tirasse o fôlego, ficando apenas a sensação de termos sido enganados.

Olhando para trás, começo a duvidar do meu discernimento. Afinal, porque é que continuo a apregoar que “Peaky Blinders” é das melhores séries dos últimos anos? Não estarei condicionada pelo início espetacularmente estrondoso que tinha no centro um gangue de bairro, um homem inteligentíssimo, ambicioso e charmoso e uma história de amor condenada ao fracasso? Tenho receio de que, ao pensar demasiado nisso, perceba que a série foi perdendo a sua magia à medida que o império dos Shelby ia crescendo e a sua influência ia alargando cada vez mais as fronteiras – muito além do bairro de Small Heath, em Birmingham, até chegar ao parlamento londrino. Há vários elementos que se repetem em todas as temporadas: a dada altura, os Peaky Blinders parecem estar encostados à parede, sem qualquer forma de dar a volta à situação, o que acaba por acontecer, claro, da forma mais incrível e inesperada. Ou será estapafúrdia? Thomas Shelby também promete várias vezes que “este será o último golpe, o último esforço da família” antes de uma qualquer vida alternativa bucólica que só inclua negócios legais. Obviamente que isso nunca acontece.

Depois das corridas de cavalos aldrabadas e da luta pelo controlo com os italianos, surgiram os russos na terceira temporada. Um roubo de joias da família um pouco confuso e de propósitos duvidosos mas que fomos engolindo. Na temporada seguinte apareceu um gangster de Nova Iorque (interpretado por Adrien Brody) a querer vingar a morte de um familiar. A quinta temporada apanhou o comboio dos fascistas e de Oswald Mosley (uma figura real, líder da extrema-direita britânica nos anos 30) e pelo caminho ainda houve espaço para entrar o IRA (Exército Republicano Irlandês). Se pensarmos no bolo todo, são demasiadas narrativas resolvidas de forma espetacular mas, por vezes, pouco credível.

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Contra esta gente toda um só homem, que todos querem ver morto: Tommy Shelby. Acabar com ele parece impossível, se bem que muitas vezes ele próprio parece disposto a isso – como acontece no final da quinta temporada e no início da sexta, já que a história é retomada exatamente no mesmo ponto. Depois da tentativa falhada de assassinar Mosley, Tommy aponta uma arma à própria cabeça e prime o gatilho. Claro que não há balas lá dentro, cortesia de Lizzie – foi só mais um momento para acharmos que era o fim dele, mesmo sabendo que matarem o protagonista seria muito pouco provável.

Por esta altura, se estão a ler isto, é porque já viram os episódios todos, portanto não será nenhuma surpresa dizer que a morte de Thomas Shelby começa por ser apresentada como o final certo para a personagem – é-lhe diagnosticado tuberculoma e a esperança de vida que lhe dão são no máximo 18 meses. Porém, se já andamos nesta viagem com “Peaky Blinders” desde 2013, também sabemos que nada do que parece expectável se verifica. Além disso, já se sabe que há um filme a caminho, que o criador Steven Knight já disse planear começar a filmar em 2023 — logo, matar Tommy agora seria dar um tiro nos dois pés.

O arco narrativo serve para a jornada interior da personagem, que precisa de arrumar a casa e escolher que demónios interiores ganham. Se é um homem mudado no final? É pouco provável. Mais uma vez, o facto de haver um filme depois da série condiciona a conclusão. Esta é a história de pessoas más a fazerem coisas más – justificarem os seus atos com os traumas da guerra, a necessidade de porem comida na mesa ou protegerem a família não retira a violência e a pouco valor que dão à vida dos outros. O filme terá de seguir a mesma linha de pensamento. Tommy não pode, de repente, redimir-se de todos os seus pecados. Deixaria de ter carisma e “Peaky Blinders” já não seria “Peaky Blinders”.

Cillian Murphy continua brilhante naquele que é o papel da sua carreira. Cada vez mais atormentado, cada vez mais isolado, Thomas Shelby é sempre o malabarista que está em todas as frentes, que adivinha os passos seguintes dos inimigos, mas também aquele que carrega a responsabilidade de cada vez mais mortes na família. A morte de Polly Gray – um desfecho inevitável depois de a atriz Helen McCrory ter perdido a luta contra um cancro em 2021 – é a mais recente. É tratada com subtileza, sem a necessidade de muitos detalhes, mas fica a pairar em todos os episódios, servindo de combustível para a rivalidade entre Tommy e Michael (Finn Cole). No entanto, a ameaça do filho de Polly nunca é realmente relevante – passa mais de metade da temporada fechado numa prisão e é um pau mandado do tio da mulher, mais um gangster que quer fazer negócios com Shelby e depois matá-lo.

É impossível não imaginar como teria sido esta temporada com Polly – que foi sempre a balança, o braço direito e a maior crítica de Tommy, e uma das melhores personagens da série. Embora a presença dela seja constante, não a ter efetivamente a participar nas decisões e nos acontecimentos do presente é uma perda que “Peaky Blinders” nunca consegue realmente ultrapassar.

As restantes personagens femininas continuam a ser fortes – como sempre foram, aliás –, despachadas, destemidas e violentas, tal e qual como os homens. Ainda assim, Ada (Sophie Rundle) merecia mais destaque. Nunca será Polly, obviamente. Ela sabe e nós sabemos, mas é uma pena que a série não tenha aproveitado para fazer dela uma figura central – Tommy deixar-lhe os negócios no final e dizer-lhe que ela é que devia estar na política  não é suficiente.

Arthur (Paul Anderson) anda aos caídos a temporada inteira, mergulhado numa dependência de droga que o atira para o grupo das personagens muito pouco relevantes. Não havia nada de grandioso para lhe oferecer? Aquele confronto com o IRA no Garrison é muito fraquinho para o valor e potencial que a personagem tem.

Seis episódios parecem curtos para haver palha, certo? Errado. Querem ver? Importância de Gina: irrelevante. O tio gangster: irrelevante. A namorada fascista de Mosley: exasperante e irrelevante. Esme: irrelevante. O regresso de Alfie (com a majestosa interpretação de Tom Hardy): relevante mas pouco credível. O aparecimento de um novo herdeiro de Tommy Shelby: completamente sem nexo e irrelevante.

Algumas peças importantes foram caindo pelo caminho da série, outras perderam importância. As personagens novas nunca conseguiram impor-se. Na sexta temporada, “Peaky Blinders” é, mais do que nunca, um homem só. O facto de Thomas Shelby poupar a vida ao médico fascista no final enfraquece a personagem. Se ele deixa de ser exatamente aquilo que sempre foi, o que resta de interessante nesta história? Deixar as respostas para um futuro filme parece uma morte anunciada que se arrasta desnecessariamente – e isso nunca foi característica dos Shelby. Se era para acabar, era agora, de forma violenta e espetacular – by order of the Peaky Blinders.