O modernismo pode vir de Eliot, Woolf, de Ezra Pound ou até de Fernando Pessoa; mas o modo como Faulkner (25 de setembro de 1897—6 de julho de 1962) pegou nas suas premissas e as testou ao limite, a dança entre sujeitos e o autêntico coro de vozes narrativas, a toada obsessiva das suas personagens e aquela galeria de gárgulas contemporâneas que habitam os seus livros mostram como o modernismo do princípio do século XX estava ainda em potência.
Toda a aura sagrada que Eliot encontrou nas palavras, aquele estranho encontro entre a miséria e o sublime, e que parecia possível apenas na poesia, dado que dependia em larga medida do poder de sugestão, Faulkner provou que podia passar para o romance. A prioridade da consciência no romance, a introdução de vozes interiores, Faulkner mostrou que podia ser mais do que um modo de contar a história: que se poFaulkner – A fúria e muito mais que o somdia transformar no centro da história e no domínio narrativo da ação. Isto é, enquanto a ação tradicional do romance é dominada por um esquema temporal, em que depois de A acontece B e queremos saber o que acontece depois em C, Faulkner conseguiu subverter aquela que parece ser uma das categorias fundamentais da ficção – o tempo. A sua alternância de tempo e de vozes mostra que o grande valor narrativo é a ausência, ainda não sabermos alguma coisa em questão, uma pedra fundamental para percebermos aquilo que está a acontecer. Ora, essa ausência não precisa de estar no futuro. O modo como as vozes de Faulkner vão, pela repetição de episódios, revelando ângulos em falta para os mesmos acontecimentos é uma das mais interessantes descobertas da ficção contemporânea.
Faulkner fez do estilo que tantos dos grandes escritores do século XX experimentaram a própria substância daquilo que escreve. Não num sentido formalista, no sentido que encontramos nos piores momentos de Lobo Antunes, em que parece que apenas a música, a forma, interessam; o modo como a forma se tornou substância em Faulkner é muito mais interessante, porque esta forma se tornou essencial para perceber aquilo que se está a narrar. Não pode haver O Som e a Fúria sem aquela variação de vozes e com a linearidade temporal comum. Toda a força daquele enredo vem da confusão que, na cabeça de Benjamin, o doente mental, há entre a sua irmã Caddy e os caddies que se ouvem chamar no campo de golf que se construiu junto de sua casa.
A tragédia familiar dos Compson não pode ser percebida temporalmente: não é uma tragédia que se desenvolva, é uma tragédia de ressentimento, em que o fundamental do presente é dado pelo passado, e em que o ponto central do enredo passa pela tentativa de compreensão do carácter das personagens, em boa parte determinado por esse passado. Isso obriga, portanto, a que o fio da ação não se desenvolva de trás para a frente. O modo como Faulkner pôs esta técnica narrativa no âmago da ação, como a tornou indispensável para o próprio desenrolar da narrativa é, assim, um dos seus grandes atrativos e um dos seus grandes desenvolvimentos naquilo a que se convencionou chamar o “fluxo de consciência”.
Faulkner, porém, é muito mais do que o seu estilo. O mundo que construiu em redor dos Compson é um mundo pouco conhecido da ficção anterior. Há muita ficção sobre a decadência, mas esta decadência que vemos por exemplo nos Buddenbrook ou no Fio da Navalha está escorada na ideia de movimento. Aquilo a que assistimos, nos romances típicos da queda, é a uma transformação. Aquilo que vemos nos Compton é um grau seguinte e mais invulgar de decadência. A história de uma família que decaiu a ponto de todo o seu pequeno poder, todas as regalias próprias das hierarquias orgânicas, estarem esquecidos torna o caso dos Compson muito mais sufocante.
Esta é uma decadência irrecuperável: um filho suicida-se, a outra é a pária da família por causa do seu comportamento sexual, outro é um vigarista e outro, ainda, é deficiente. Sobre os Compson não pesa apenas um problema económico: trata-se de uma verdadeira maldição. É uma decadência que forja o carácter dos filhos, que condena o estatuto da família ao esquecimento, e que obriga a pensar no próprio sentido de justiça.
Pesa aqui um sentido de justiça que não é determinado pela igualdade mas pela perda – justo não é que todos tenham o mesmo, mas que se mantenha aquilo que se tem. A ideia de que a perda acarreta um peso muito maior do que a ausência é um dos móbiles do romance de Faulkner, e o modo como este consegue dar-nos ideia da dimensão de cada pormenor: os prados vendidos em que se jogaram as alianças da infância, o despeito perante a reverência perdida, o peso genealógico que as crianças carregam sem hipótese de o suportarem, tudo isto faz do romance de Faulkner um retrato ao mesmo tempo fiel e novo da sociedade. O que é feito, não daqueles que caíram, mas daqueles que já nascem depois da decadência? Daqueles sobre quem cairia o peso de reerguer uma família, mas que não são capazes de o fazer?
É isso que vemos, por exemplo, no caso de Caddy – nitidamente a mais capaz da família, a única capaz de acalmar Benjamin e o objeto desta história de amor fraternal tão dura, marcada por uma ausência incompreensível. A pobre rapariga, sobrecarregada pelo peso das suas responsabilidades, envolta no sufoco maternal, até naquele amor do irmão que a quer pura e imaculada, torna-se a principal causa de vergonha da família e o símbolo maior da decadência.
A aguda compreensão de Faulkner do modo como a família molda o ambiente psicológico de cada um, de como o mundo económico e a consciência da sua própria imagem moldam também o carácter de uma família, são aquilo que faz dele muito mais do que um escritor de grande arrojo formal. O estilo de Faulkner é impressionante, fresco, entusiasmante, capaz de tristeza e de alegria, com aquele exagero épico-sentimental que a literatura americana não tinha desde Moby Dick; mas é aquela consciência da complexa relação entre o íntimo e a pequena comunidade, do peso das pequenas coisas na determinação do orgulho e do estatuto, que fazem dele um dos grandes escritores do século XX.