Ao longo dos quase 30 anos da carreira a solo de Björk Guðmundsdóttir, tornou-se quase obrigatório descrever a sua voz, as suas canções, os seus discos recorrendo a metáforas imagens mais próximas da geologia que da música: não há texto sobre Björk que não fale em vulcões a explodir, gelo, fogo, tsunamis ou geisers a borbulhar.

Björk é islandesa e a imagem que o senso comum tem da Islândia não anda muito longe disso: vulcões a explodir, gelo, tsunamis, geisers – do mesmo modo que para os não-portugueses nós somos sofredores (o fado, a saudade) apesar de termos boas praias, bom vinho e ótimo peixe. No passado, a cidade de Reykjavík, onde Björk vive, foi uma zona de indústria de lã, pescas e construção de navios; hoje é uma terra contemporânea repleta de empresas corporate e bancos de investimento – mas nunca ninguém se lembrou de associar a voz e a música de Björk à indústria de lã, à construção de navios ou a bancos de investimento, do mesmo modo que (muito provavelmente) nunca ninguém se lembrou de associar a música de (digamos) Ana Moura à efervescente cena de startups tech de Lisboa, antes à saudade. Certos clichés são difíceis de evitar.

Os clichés (vulcões a explodir, gelo, tsunamis, geisers) também estarão ligados à escrita e voz da islandesa a partir de certo momento – não tanto em Debut (a estreia, de 1993), mas a partir de Post (de 1995), as canções de Björk começaram a alternar entre momentos de calma e mansidão e momentos aparentados da cisão do átomo, tal a energia libertada: mesmo (a admirável) “It’s Oh So Quiet” irrompia numa espécie de primavera súbita – a imagem mais apropriada, aqui, não seria de um vulcão em erupção, mas de todas as flores do mundo a desabrochar no exato mesmo instante: o refrão.

[ouça o novo “Fossora”, na íntegra através do Spotify:]

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Essa tendência de albergar num disco, numa canção, as emoções mais extremas só se tornou mais proeminente – tal como o seu afastamento da canção tradicional. Vespertine, de 2001, procurava ser mais intimista que o seu antecessor (o admirável Homogenic, de 1997), fundindo eletrónica experimental com clavichords, harpas, e cordas. Medúlla, de 2004, era quase inteiramente a capella, isto é, composto quase exclusivamente de vozes, sem instrumentação. Comparados com os que se seguiram, todos estes álbuns soam hoje quase convencionais.

Vinte e anos anos é muito tempo, o suficiente para a islandesa chegar ao décimo disco, Fossora, recentemente lançado, com um estatuto diferente do da década de 90 do século passado; em 1993, com Debut, ela era uma surpresa, uma princesa do indie com propensão eletrónica e ouvido para um bom refrão; em 1997, com Homogenic, era a rainha da música alternativa, levando a canção a limites que desconhecíamos; quando Medúlla chegou, em 2004, as opiniões já se dividiam entre os incondicionais que a veneravam pela sua busca insaciável do novo, do diferente, e quem já não tinha paciência para aquilo que consideravam ser os maneirismos de Björk.

[“ancestress”:]

Ambas as perspetivas são justas, dependendo da sensibilidade de cada um: Björk não consegue, de facto, estar quieta, repetir um disco, e tem uma imaginação prodigiosa para construir melodias, fazer arranjos, justapor instrumentos à partida incompatíveis; mas também não é difícil de admitir que se ouvirmos excessivamente a sua música, esta pode criar anti-corpos, algum cansaço.

A pop move-se depressa: hoje o mundo já não para porque há um novo disco de Björk; ela já não está nas capas das revistas, no topo das tabelas de vendas; a própria cultura mudou de tal maneira que a exposição mediática, a validação dada aos pioneiros, aos irrequietos, é hoje – na economia dos clicks – muito menor que há 20 ou 30 anos. Não é que já não haja quem escreva sobre o carácter experimental e inovador de Björk – é só que esses textos têm menos cliques que as fotos de promoção do novo disco de Beyoncé.

O que não significa que sua a influência não se faça sentir: num texto recente na revista Atlantic destacava-se a dívida que artistas como “Rosalía, SZA, Solange (…) e Lizzo” têm para com a pequena genial. E com razão – não só pelo que ela fez, mas pelo que ainda faz: Fossora não tem a fúria devastadora de Vulnicura (de 2015, composto na sequência da separação do artista visual Mathew Barney), antes procura que música e palavras (bem, as palavras em inglês) carregam uma carga reflexiva, de quem sabe que cada passo que dá traz o rasto de todos os passos que deu.

[“ovule”:]

A falecida mãe de Björk é tema de duas canções, os seus filhos cantam em Fossora, que constantemente se debate acerca de onde vimos e o que somos – no caso, o que é ser filha, mãe e mulher: Björk diz que este é um disco de música matriarcal e – seja lá isso o que for – não será certamente por acaso que a última canção do disco, “Her mother’s house”, se centra no facto de os filhos já terem saído de casa. Oboés cirandam em redor dos rodopios da voz de Björk; quando a canção ascende (numa melodia lindíssima), ela canta “The more I love you, the stronger you become, the less you need me”. A resposta vem na voz da própria filha mais nova: The more you love me/ The stronger I become/ And the less I need you”. Mais à frente, quando a canção parece pairar no ar, Björk oferece uma imagem lindíssima da maternidade:

“When a mother’s house (A mother’s house)
Has a room for each child (Each child)
It’s only describing (Describing)
The interior of her heart (Interior of her heart)”

“Mycelia”, a terceira canção de Fossora (que nas minhas notas descrevi como “humhumhumhums e eletrónica”) é dedicada à estrutura em árvore de alguns fungos que transformam a matéria em cogumelos. Em qualquer outro artista isto seria tido como estranho, mas em Björk faz sentido: segundo ela, estas estruturas foram uma inspiração para Fossora; na ótima “Fungal City” ela canta “Fungal cities subterranean… sunken mystery!”; a 4ª canção de Fossora chama-se “Sorrowfoul soil” e Björk e um coro cantam sobre raízes: “Our roots are dark”.

[“atopos”:]

As raízes, a vida dos solos, a fertilidade dos mesmos, surgem em várias canções de um álbum cuja musicalidade esconde a sua profundidade: Fossora por norma mantém um tom sereno, com cordas ou sopros interpolados por beats, enquanto a voz parece uma criança perdida na floresta que de repente (no que podemos chamar refrões) descobre a felicidade de subir às árvores. As raízes, a vida dos solos, a fertilidade dos mesmos não parecem ser exclusivamente as raízes, a vida dos solos, a fertilidade dos mesmos mas metáforas para as nossas raízes, as consequências da nossa fertilidade, como ser mãe nos define.

Se a temática e as palavras tornam Fossora único (não deve haver muitos discos que partam de estruturas de fungos para refletir sobre a condição feminina), instrumentalmente é o disco mais aproximado do registo-canção e mais (por assim dizer) acessível que ela fez em muitos anos: há melodias (por vezes arranjadas numa estrutura coral, o que faz sentido), os arranjos instrumentais exponenciam as melodias, e não raro podemos até identificar refrões (alguns dos quais memoráveis) com confiança.

Quando os músicos aparecem e alteram a paisagem tornam-se estrelas; o tempo encarrega-se de os retirar da frente e colocá-los no fundo do plano. É a injustiça inerente a uma sociedade obcecada com a juventude e a novidade; mas seria um erro se não parássemos para ouvir o que os mais velhos têm para nos dizer – em particular quando, como em Fossora, se trata de um regresso à terra em grande e reflexiva forma.