Pop sinfónica que tenta explicar-nos o que vai de mal neste mundo. No livro “Outliers” Malcolm Gladwell tentou vender a ideia da regra das dez mil horas. Resumidamente, essa é a quantidade de tempo necessária para quem quer tornar-se um especialista em qualquer coisa. Tempo, persistência e preservação de um desejo: com isto, a recompensa seria de certa forma garantida. A teoria das dez mil horas não é de autoajuda, mas para justificar o enquadramento de certas pessoas e profissões e o seu sucesso. E uma forma indireta de dizer que o talento é bonito, mas o treino é importantíssimo.

No livro, e em alguns momentos públicos, Gladwell utilizou o exemplo dos Fleetwood Mac para justificar a sua teoria das dez mil horas. Fundados em 1967, tiveram o seu maior sucesso com Rumours, dez anos depois. Gladwell faz a matemática de que nesses dez anos os Fleetwood Mac teriam atingido as tais 10 mil horas (o que daria uma média de três horas diárias), colocando de lado as imensas entradas e saídas de membros da banda nesses dez anos e a chegada de Lindsey Buckingham e Stevie Nicks em 1974/75. Mas a teoria de Gladwell contempla não só o “treino” por si só, mas também a experiência, os percalços, que definem o caminho e as nossas decisões: no fundo, o que nos está a dizer é que foi preciso tempo, decisões e a ocasião daqueles dois se juntarem ao grupo.

A capa de “Titanic Rising”, o novo álbum de Weyes Blood (Sub Pop; Popstock)

Isto para se chegar a Weyes Blood, nome artístico onde se esconde Natalie Mering. Nascida na Califórnia em 1988, começou a aparecer na cena musical ainda na adolescência, como Wise Blood. Anos mais tarde seria Weyes Bluhd e foi com esse moniker que começou a dar nas vistas com The Outside Room, lançado na Not Not Fun em 2010. Quase dez anos passaram, Natalie fixou-se num mais compreensível Weyes Blood e lança pela Sub Pop nesta sexta-feira aquele que é o seu melhor álbum. Também é um dos melhores álbuns deste ano.

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Titanic Rising de seu nome. Segue-se aos álbuns The Innocents (Mexican Summer, 2014) e Front Row Seat To Earth (Kemado Records Inc., 2016) e os quase dez anos desde The Outside Room implicam pensar na regra das dez mil horas. Weyes Blood faz aqui o seu Rumours. Em conversa ao telefone, há uma pergunta insistente, o “porquê da mudança”. Surge de diversas formas, porque há qualquer coisa de revelação em Titanic Rising, não é só pela escolha de criar belíssimas melodias de pop sinfónica, “Everyday”,  ou “Mirror Forever”, de remendar corações com canções como “Picture Me Better” ou de partir a casa toda com “Movies”.

[“Everyday”:]

“Tenho o desejo de me expandir enquanto artista. Sempre gostei de trabalhar na estranheza e produzir canções mais sinfónicas era um desejo antigo meu. Mas queria fazê-lo sem qualquer medo de sentir uma mudança global em mim, enquanto artista. É muito importante fazeres algo em que acreditas, é uma boa forma de te manteres vivo”.

Esta é uma das explicações de Natalie para esta súbita mudança. Mas há outra: “Já viste como está o mundo? Está tão diferente”. Certo, certo. Mas algo teve de mudar:

“No passado sentia-me presa quando tentava escrever canções felizes. Principalmente porque eu era boa a escrever canções tristes, por isso sentia-me melhor em não sair da minha zona de conforto. Mas desta vez não, quis arriscar, escrever algo que expressasse a euforia quando estou em casa pronta para sair à noite. Queria que isto fosse uma nova aventura.”

E há também o desejo da própria de sair da fórmula que parece dominar o indie-rock actual. Como Natalie diz: “shoegazzy-watered-down-pedestrian-indie-rock”. O que Natalie não quer que se pense é que este é um álbum em que se descobre, em que se arruma. Não é isso. Em Titanic Rising vê-se a si própria como uma artista realizada. Sem medo de conquistar um público novo, de crescer: “Fazer o álbum assim foi o tipo de decisão que me deixou confortável. Ao longo da minha carreira nunca tive medo de mudar, nunca tive medo daquilo que as pessoas me diziam. A minha decisão de gravar as canções assim passou por mostrar quem eu sou realmente. E penso que as pessoas reconhecerão isso. Eu, pelo menos, sinto-me mais confortável do que ao fazer a versão número dois de um outro álbum.”

[“Andromeda”:]

Ouve-se Natalie a falar e a percepção que existe é que todas estas perguntas em volta da mudança são ridículas. Porque as respostas estão mesmo todas em Titanic Rising. Gravado no ano passado, Natalie partiu para estúdio com algumas canções e com alguns esqueletos, mas o desejo de experimentação, de tentar com diferentes instrumentos, levou a que tomasse uma forma diferente. Esse processo deu-lhe confiança e Titanic Rising é um álbum sem medos.

Isso vive-se e respira-se nas canções. Há uma dose constante de real, uma perceção clara logo em “A Lot’s Gonna Change” de que Natalie teve a gana necessária para fazer o que queria, arriscar e viver com música em constante expansão, sem medo de ser Carpenters quando tem de ser e rapidamente mudar para uma infusão qualquer de Beach Boys, sem esquecer de meter os Byrds e os Kinks pelo meio. Respiram-se outras décadas em Titanic Rising, outros sóis, com a liberdade de não querer agradar a um público em específico ou fabricar canções para listas de Spotify.

Tem a força dos grandes álbuns. E é isso que nos está a querer dizer em todas as canções. Na segunda, “Andromeda”, já se está rendido. Não é o mel, a ilusão de fragilidade de Natalie Mering enquanto Weyes Blood, mas a surpreendente loucura da pop de estúdio dos 1970s, inebriada em experimentar e incansável em surpreender com os seus recursos. Natalie brincou com as cartas de Brian Eno em Oblique Strategies, usado por muitos músicos em estúdios mas também por muitos criativos nas mais diversas situações: “Ajuda-te a não teres medo de experimentar algo. Estás preso criativamente, tiras uma carta de vez em quando, e isso vai-te lembrar de algo que gostarias de experimentar. De certa forma, mete-te o sangue a correr, tira-te o cérebro da sarjeta.”

[“Movies”:]

Titanic Rising é uma referência a uma civilização em decadência. É assim que Natalie vê o mundo, mas não é assim que nós o vemos através das suas canções. A decadência está bem expressa nos problemas que Natalie trabalha nas suas canções, são pequenas novelas para situações de todos nós. Mas é impossível haver preocupação com o amor verdadeiro quando ele é tão bem manipulado em “Everyday”: que tem uma saída tão gloriosa no seu final, lembrando os Beatles de “A Day In the Life”.

Na capa, Natalie está num quarto submerso. O quarto é completo pelo imaginário de uma adolescente. Por um lado, diz-nos que o mundo se anda a comportar de uma forma algo adolescente (e, por isso, sujeito à fatalidade, ao afogamento). Por outro, é Natalie a dizer-nos como queremos tantas vezes submergir na adolescência mas o que realmente precisamos é de sair dela. Com Titanic Rising, Weyes Blood/Natalie Mering não saiu da adolescência – já o tinha feito em The Innocents –, mas diz-nos tão bem o quão saudável é sair dela.