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[entrevista originalmente publicada a 10 de novembro de 2019 e atualizada a 4 de junho, no dia dos 70 anos do músico]
Jorge Palma diz que se sente bem. “Operacional” e “aí para as curvas”, com vontade de trabalhar. “Apetece-me escrever e apetece-me até ensaiar, pá!”, diz, a certa altura, durante uma entrevista ao Observador. Nunca foi muito fã de ensaios, “o Rui Veloso gosta mesmo, eu é mais o mínimo possível”, mas trabalho é trabalho e faz-se melhor quando as coisas estão a correr bem, recorda.
Haverá um novo disco do cantor e compositor português mas até lá, e antes da pandemia, o foco estava nos concertos, que tem feito com uma banda mais alargada do que em digressões anteriores. “Ao longo de muitas formações em que tenho participado, se a coisa está a dar para o torto em termos de ambiente, acabou. Neste caso é um ambiente fantástico, se há alguém que está menos bem-disposto os outros puxam por ele”, sublinha.
Jorge Palma faz esta quinta-feira, 4 de junho, 70 anos. O tempo passa até para o autor de “Frágil” e “Deixa-me Rir”, que, durante esta longa entrevista, diz que o seu corpo “tem resistido de uma forma que ninguém sabe explicar, quase como o Keith Richards. Ainda agora fiz análises a tudo e os pulmões estão um bocado chamuscados, mas estou aí para as curvas. Tenho desafiado a morte de uma forma completamente louca”.
Com vontade de viver “em boas condições” o mais possível, “até 2050 ou qualquer coisa assim”, tem vários planos e falou deles: dos concertos à canção que o juntará pela primeira vez a dois filhos (onda “Crosby, Stills e Nash”), do próximo disco ao tema que compôs para Carlos do Carmo (“demorei 20 anos mas consegui”). Também recordou o seu percurso sem fugir a temas, da adição à heroína que durou menos de um ano à dificuldade de superar o vício do tabaco, das viagens que fazia em tempos de país para país e de guitarra na mão — chegando a dormir na berma da auto-estrada, sem saco-cama — ao método de criação: “Nunca consigo imitar uma canção mesmo tentando, o que joga a meu favor, porque estou a imitar o Bowie e ninguém percebe”.
Na altura desta entrevista, Jorge Palma preparava o concerto no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, no final de 2019.
O concerto no Coliseu: “Tem de ser na ponta da unha”
Se este não fosse um dia de entrevistas, não gostando muito de rotinas, como é que estaria a ser — provavelmente — o seu dia?
O dia-a-dia é extremamente variável. Ontem [4 de novembro] voltei da estrada e senti umas dores de garganta.
Está a ficar engripado?
É disso que tenho medo, porque não posso estar engripado.
Tem um concerto para fazer a 14 de novembro, no Coliseu dos Recreios.
A 14 de novembro tem de ser ‘na ponta da unha’. Bom, se não estivesse em entrevistas se calhar estaria a ver um documentário. Tenho uma box cheia de coisas e tenho de apagar aquilo [que lá está], já está velha e a dar problemas. Vejo sobretudo documentários, sobre escritores, pintores, por aí fora. Tiro notas, porque essas coisas influenciam-me. A inspiração, no meu caso, vem de todo o lado: dos livros, dos documentários, da vida quotidiana.
Costuma ver documentários de músicos?
Obviamente [risos]. Tenho lá alguns, do Bob Dylan, do Bruce Springsteen, dos Rolling Stones… Dos Stones não preciso de ver, já os vi tantas vezes ao vivo e já sei tanta coisa.
Já sabe os alinhamentos de cor?
Não, mas há um motivo. Há um filme em que o desgraçado do Martin Scorsese, no último momento, pergunta-se: mas com o que é que eles vão entrar? Porque os Rolling Stones têm “N” listas, várias possibilidades, só praticamente quando entram em palco é que os desgraçados dos técnicos e do realizador sabem por onde é que os tipos vão começar o concerto.
Mas não há propriamente um dia-a-dia definido na sua vida? Não se compromete por exemplo a estar a fazer isto ou aquilo das 10h às 17h?
Não. Há sessões combinadas, que nesta altura têm sido mais de ensaios. Vai haver também de estúdio para a gravação do meu próximo disco. Há horários a cumprir nesses casos, tal como há horários dos concertos a cumprir. De resto não tenho horas, depende.
Falava há pouco dos alinhamentos surpresas dos Rolling Stones. No seu caso, os alinhamentos estão definidos à partida?
Para este ciclo de concertos a que chamei “Expresso do Outono”, porque gosto muito de comboios e tenho uma certa nostalgia — e porque começou no outono do ano passado —, alinhei, com a ajuda de muitas opiniões, 20 e tal canções. É para seguir esse roteiro.
Os seus maiores sucessos estão lá?
Não só, há coisas a que se tem chamado “lados B”, menos conhecidas, que faço questão de incluir e que ficam bem. Este alinhamento é uma espécie de comboio que vai percorrer várias paisagens da minha vida, é bastante abrangente. É um roteiro para respeitar.
Ainda é preciso ensaiar muito estas canções mais conhecidas, que tem tocado ao longo dos anos? Ou já têm tanta rodagem que é só ir para palco e tocar?
É preciso ensaiar, porque estou sempre a tocar as canções de maneiras diferentes, conforme o acompanhamento que tiver. Depende se as estou a tocar com a minha banda elétrica, a solo, com a minha banda de auditórios. Os arranjos das canções vão mudando.
Quando é que teve a ideia de fazer esta digressão em específico?
Chamar-lhe Expresso do Outono acontece depois de se ter decidido — e isso tem a ver com os meus managers — que para finalizar o ano passado, 2018, era porreiro fazer uma mini-digressão com material alargado. Fazer um percurso de cerca de duas horas pela minha carreira, sobretudo desde 1975, ou seja, pelos últimos 40 e tal anos.
Combinámos juntar ao meu quinteto elétrico, que toca mais no verão — festivais e essas coisas —, ao meu trio acústico, que toca mais durante o outono e inverno em auditórios, juntando ainda o Gabriel Gomes, que toca acordeão. Quando estava a escolher o alinhamento [dos concertos], ouvi uma música do Bairro do Amor, de 1989, que se chama “Boletim Meteorológico”. E ouvi o trompetista que gravou [a canção], aliás tem tocado ao vivo e gravado muitas vezes comigo ao longo dos anos, que é o Tomás Pimentel. Toca trompete e flugelhorn. Disse: “Este gajo tem de entrar”. Liguei-lhe, estava livre, vamos embora. Ficámos um septeto.
Se as canções vão mudando cada vez que vão sendo tocadas, há algumas canções deste alinhamento, da sua carreira, de que esteja a gostar ainda mais com a volta que levaram com esta nova formação?
Há várias. Somos sete a dar dicas e há canções que melhoraram francamente, desde a gravação dos discos em que estão originalmente. Algumas praticamente não tenho tocado desde a gravação desses discos em que estão originalmente.
Há algumas que possa dar como exemplo?
Até o “Frágil”, por exemplo: o que se ouve na canção são sete sopros, no caso desta digressão tocamo-la com um sopro. O volume, a intensidade daquilo tem de ser compensado — lá está, pelo acordeão, teclas além das minhas e pela guitarra do Pedro Vidal. Vamos dando a volta às coisas para tirar proveito da potencialidade de cada um dos músicos e de todos em conjunto.
A disposição que se tem, o humor, certamente influenciam no prazer que se tem em estar no palco…
No palco e nos ensaios!
Tem sentido prazer nesta digressão? É natural que existam oscilações, nem sempre se está bem-disposto, com vontade de tocar…
Nem sempre estamos, mas aqui se há alguém que está menos bem-disposto, os outros puxam por ele. É um ambiente fantástico. Aliás, ao longo de muitas formações em que tenho participado, se a coisa está a dar para o torto em termos de mau ambiente, acabou.
É logo para partir para outra?
É, é partir para outra. Temos de sentir prazer em encontrar o outro, temos de sentir “vamos lá a isto, pá!”
Tem alguma memória especial do Coliseu dos Recreios, onde vai agora atuar?
Tenho uma história… tive um convite para tocar no Coliseu na sequência de um álbum que é o Lado Errado da Noite, em 1985. Declinei esse convite porque achei que não ia, de forma nenhuma, encher o Coliseu. Era o Coliseu antigo, levava ainda mais gente do que o atual. Quem me fez o convite foi o pai Covões e o filho, que é a pessoa que está atualmente à frente do Coliseu. Ainda hoje o Álvaro Covões me diz: tu terias enchido aquilo. E eu digo: não, não… Pisei depois o palco do Coliseu em coisas de solidariedade, em concertos com outros artistas.
Lembra-se da primeira vez em que o fez?
Não. No primeiro álbum, em 1975, não aconteceu seguramente porque deve ter vendido umas seis ou sete cópias [risos], mas ofereci muitas aos amigos. O segundo, em 1977, o ‘Té Já, também… E é curioso porque a partir do Té Já, já vou buscar músicas que neste momento estão no ouvido das pessoas.
Foi aí também que muitos dos seus pares ficaram a conhecê-lo melhor. Lembro-me de ler uma entrevista que deu com o Sérgio Godinho em que ele dizia que o tinha ficado a conhecer aí.
O Sérgio fala do Té Já, sim. Depois vou tendo mais público, mas tem sido uma progressão muito natural. Os hits [grandes êxitos]…. o “Deixa-me Rir” foi um hit, outras canções também, mas não foi isso que fez vender os discos. Tenho um cume quando gravo o “Encosta-te a Mim” em termos de venda de discos. Nunca tinha vendido uma quádrupla platina [riso].
Uma canção que até pensou não incluir no disco.
Tinha pensado não incluir porque achava que era uma balada fracota [risos].
O Rui Veloso disse-lhe para não a descartar, não foi?
O Rui Veloso, o Tim, o Vitorino. Escrevo essa canção na altura em que estou na estrada com os Rio Grande. Todos eles diziam-me: tu és mas é maluco [risos].
Sobre um novo disco: “Tenho de parar o telefone e a televisão que não interessa”
Não conhece o Coliseu e aquela zona próxima da sala só de concertos seus. Também já contou em entrevistas que chegou a tocar ali perto, mas no exterior, quando tocava na rua…
Era ao lado do Coliseu, em frente do D. Maria II. Isso é quando eu venho de Paris com aquela tusa toda [sorri].
As autoridades é que não gostavam muito, ou gostavam?
Não. Por acaso passei lá no outro dia e acho que já não existe [uma esquadra ao pé]. Era chato porque os polícias iam para o trabalho e às cinco da tarde, ou não sei quê [risos], chateavam-me quando não havia muita gente. Quando havia muita gente passava ao lado…
Até chegou a ir a tribunal por causa disso.
Sim, fui a tribunal porque queria defender a minha causa. Ganhei. Nesse próprio dia volto lá com a minha guitarra e os gajos voltam… Ainda disse: “ah, mas estive no tribunal de Unhais e deram-me razão”. E eles: “não queremos saber de nada disso, diga lá o seu nome…” Mas pronto, essa foi uma fase que considero dourada, tocava guitarra umas oito horas por dia. A voz a projetar-se como nunca. Nunca cantei tão bem como nesses anos de Paris e arredores.
Já disse que planeia editar um disco novo depois desta digressão. Mas já andava a pensar nisso quando fez os concerto de celebração do disco “Só”, no final de 2016. Não ter ainda havido um disco deveu-se a quê? Foi perfecionismo, foi a vida a acontecer, o que foi?
Não, nem sequer é perfecionismo. Nos últimos cinco anos isto tem sido… por acaso em janeiro de 2017 concentrei-me, estive uns 15 dias ou três semanas sem concertos e sem nada. É preciso isso. Tenho escrito bastante para outros cantores e orgulho-me muito de algumas coisas, como a canção que escrevi para o Carlos do Carmo. Demorei vinte anos mas escrevi uma canção para o Carlos do Carmo, ele já gravou e já a ouvi ao vivo. É um orgulho. Também escrevi para a Cuca Roseta, para o Paulo Gonzo, músicas para eles acompanharem com letras [próprias]. E por aí fora.
Daí perguntar-lhe se tinha sido a vida a acontecer, desafios a aparecer, coisas que não esperava.
Sim. Se me comprometo a escrever uma canção, ela sai. Agora um álbum é outra coisa, pressupõe alguma homogeneidade, até pode ser tudo muito contrastante mas um álbum é um álbum. Sejam dez canções, 11, nove, o que for. Não tenho tido tempo para isso. As coisas que acontecem também vão servir de grande ajuda para escrever [o disco], mas tenho de parar o telefone, parar a televisão que não interessa — porque ainda tenho documentários que quero ver, são inspiradores — e criar um espaço para mim, a minha loja, o meu laboratório.
E quando é que isso deverá acontecer?
Entre o Coliseu de Lisboa [14 de novembro] e o concerto na Figueira da Foz [14 de dezembro], tenho um mês e é nesse mês que vou atacar [um disco]. Não quero entrevistas, não quero dispersões, quero estar ali com a caneta, o papel, a guitarra e o piano — e ver o que consigo fazer.
O facto de aceitar coisas paralelas aos seus discos e não os gravar de dois em dois anos não é propriamente novo. Não é por uma questão de estatuto ou por se venderem poucos discos, ou é? Nos anos 1990 já se tinha dispersado por muitas atividades e o cenário na música era outro…
Nos anos 1990 não gravei um álbum de originais. Gravei o “Só”, com aquelas canções em formato piano e voz, logo depois de ter acabado o curso no Conservatório. Gravei também o Palma’s Gang ao vivo no Johnny Guitar. Um [o primeiro] é clássico, ambiente de salão, o outro é partir aquela coisa toda. Logo a seguir vêm os Rio Grande, os Cabeças no Ar… e há muita atividade para teatro, para a companhia de teatro de Braga, para uma peça em que escrevi letra com a Maria Velho da Costa para cinco canções [originais], para as canções do Bertolt Brecht numa peça encenada pelo Jorge Silva Melo com a Lia Gama e outros atores. Foram experiências! Aprender as partituras do Kurt Weill e de outros, tudo isso foi aprendizagem e trabalho.
Até perto de 2001, altura que coincide com uma mudança de casa — passei de uma casa em que tinha vivido 20 anos para outra casa em que no fundo já vivi outros vinte anos [risos] —, estive dedicado a tudo isso. Mas tudo isto tem sido enriquecedor e em 2001 finalmente gravei um álbum [homónimo] que até teve bastante sucesso.
Entre as suas canções que tiveram maior êxito, encontra algum característica comum, algum segredo, alguma fórmula que fez com que tivessem mais sucesso?
Não e não acredito em receitas. Pensar: vamos lá escrever um “Encosta-te a Mim”, um “Deixa-me Rir” ou um “Frágil”? Não resulta e não sei fazer. O que sei e aprendi a fazer relativamente bem foi escrever letras de canções em português. Trabalhar com a métrica, com a rima.
O Ary dos Santos aí teve um papel importante, de ‘professor’?
Aí estamos a falar de 1971, 1972, 1973. Tive com ele uma convivência fantástica. Outra coisa que acho que tenho é atirar-me no escuro. Sou relativamente bom a imitar coisas, mas não consigo imitar. Na música clássica, em que se tem tudo escrito, tenho as notas e os silêncios todos. Aí é importante interpretar e tive professores que me ajudaram a compreender. Numa canção rock, o que me acontece é gostar muito de uma canção e tentar imitá-la. Nunca consigo, mesmo tentando as mesmas harmonias, sequências, etc, sai uma coisa diferente — o que joga a meu favor, porque estou a imitar Bowie e ninguém percebe [risos].
Não dava para uma banda de covers, de bar, portanto?
Quero fazer um disco de versões, por acaso. Só não sei quando. Versões de Sinatra e outros, de tudo o que gosto muito. Mas aí estarei mesmo a assumir que são versões. Quando tento recriar aqueles ambientes de que gosto e a tentar fazer quase igual — estou a pensar por exemplo no Paul Simon, nas sequências harmónicas, nas melodias, as letras dos outros que eu estudo —, nunca é uma imitação.
É uma criação inspirada, é mais isso?
Sim… Muitas vezes até escrevo a referência. Tenho instrumentais em que faço isso. No meu primeiro álbum, de 1975, tenho um tema chamado “A Onda” que escrevo que é “para Mwandishi”, que é um nome que o Herbie Hancock adotou. De facto, era inspirada por ele.
“Os pulmões estão um bocado chamuscados mas estou aí para as curvas”
Os anos 80 são muito lembrados por quem o ouve como um período de grande fulgor na produção e edição dos seus discos. Foi nesses anos que sentiu mais urgência para gravar álbuns? E houve algum motivo para isso?
Não. São tudo sequências naturais. Nos anos 1980 gravei cinco álbuns de originais, um dos quais duplo. Esse duplo, por exemplo, já trazia canções que tinha escrito em Genéve, em Paris, em Londres. Todos os outros tinham canções já escritas depois de assentar arraiais [em Portugal]. Foi uma altura em que eu e a minha mulher combinámos ter um filho.
Isto quando? Por volta de 1981, 1982?
Por volta de 1982, 1983. É nessa altura que tenho de novo um piano em casa e começo a estudar, desta vez por minha vontade e iniciativa. Falei com uma professora de piano que me tinha ensinado entre os oito anos e os 14, que estava viva e a trabalhar bem. É curioso porque comecei por perguntar-lhe: aceita dar umas aulas a dois amigos meus, o Carlos Mendes e o Manuel Faria dos Trovante? Ela disse-me: ok. Tiveram aulas com ela também, com a Fernanda Chichorro. Depois entro no Conservatório e entretanto estou a gravar discos, em 1984, em 1985, em 1987 e em 1989 — mais o Acto Contínuo que já tinha gravado logo no início da década.
Foi uma altura em que escrevia os temas em casa. Quem diz em casa diz também na pastelaria ao lado, ou coisa assim. Sempre fora de moda [risos], porque a onda dos anos 1980 era totalmente diferente.
[Jorge Palma e Sérgio Godinho a interpretar ao vivo “Dá-me Lume”, tema composto e editado pelo primeiro nos anos 1980:]
Não fez um disco pejado de sintetizadores, tudo a brilhar…
Ouvia as coisas e lembro-me dos nomes de algumas bandas, que entretanto apareceram e desapareceram. Os U2 não, os U2 ficaram.
Não lhe apeteceu fazer um disco de disco?
Não, não me apeteceu. Acho que ao Freddie Mercury também não lhe apetecia, mas acabaram por fazer [os Queen] à mesma. Qual foi? “I waaant to break freee” [risos], acho que é o dessa canção.
No meu caso, fui sempre buscar músicos de jazz ao Hot Clube, que frequentava. O jazz é uma vertente que não se nota muito na minha execução, mas está cá. Porém, a minha via da música clássica para a música popular são os blues, tal como o foram para o Rui Veloso, por exemplo. Fiz questão de, também nos anos 1980, trabalhar com os melhores músicos que conheci e a que tinha acesso, desde o Rão Kyao até outros músicos. Sempre com o som que queria e que não tinha nada a ver com o som das bandas anglo-americanas. Alguns desses músicos estão no ativo, outros não, uns estão vivos, outros nem por isso [riso súbito]. Isto está-me a fazer lembrar uma coisa do Mark Twain, noticiaram a morte dele e ele disse que a sua morte era manifestamente exagerada [risos].
Porque é que se lembrou de repente da frase do Mark Twain e porque é que se desatou a rir? Lembrou-lhe o seu caso? Desafiou de alguma maneira…
O quê, a morte?
Sim. Ou a morte que alguns lhe antecipavam para breve…
Tenho desafiado a morte de uma forma completamente louca, de uma forma que não é suicida porque… quanto mais tempo estiver aí — e em boas condições, atenção — melhor. É a minha ideia, a funcionar bem quero estar aí até 2050 ou qualquer coisa assim. Os milagres tecnológicos e essas coisas todas mostram que não são só coisas más a acontecer [no mundo].
Mas o tabaco e o álcool, vinho e cerveja, vêm de um grande esforço que fiz aos 13 ou 14 anos para ser um homem. O meu organismo rejeitava o tabaco, o vinho, a cerveja. Foi muito complicado mas consegui. Eu consegui ser um homem [pausa]. Consegui fumar e beber de tal forma que a bebida e o tabaco tornaram-se um problema para mim. O álcool está basicamente afastado, mas não consigo deixar de fumar. Adiante: fui experimentando coisas sobretudo nos anos 1970.
Mais em 1975, 1976?
1975 e 1976 é a fase em que finalmente me entrego, em que me deixo levar pela heroína. Pelo chuto, pronto. Só que não era a minha praia e em menos de um ano “bazei”, peguei na guitarra, fui para Espanha e afastei-me do círculo, que é aquilo que temos de fazer quando estamos numa situação dessa.
Fez muitas viagens depois, até voltar a Portugal para assentar arraiais já nos anos 1980. Não ficou com saudades daquela vida de “onde é que vamos hoje, para a Suíça?” ?
Há uma certa nostalgia. Bom, hoje, de certo modo, ainda posso fazer isso. Haverá pessoas que ficarão preocupadas [sorri]. O que está combinado, está combinado, mas faço por ter algum tempo livre para ‘bazar’, para ir não sei para onde. Isso vai-se conseguindo. Agora, na altura não tinha filhos, não tinha nenhuma relação estável com ninguém, estava completamente livre. No entanto, os meus filhos agora também já estão crescidos…
E a tocar bem?
E a tocar bem, ambos. Estou quase a espetar com o mais novo em palco.
Quer juntar os três [o próprio Jorge Palma e os dois filhos], finalmente?
Sim. Uma das canções que há-de sair neste próximo disco chama-se “Três Palmas na Mão”. Vamos ser só os três, com guitarras acústicas, inspirados no [trio] Crosby, Stills e Nash. Portanto, é isso. O meu corpo tem resistido de uma forma que ninguém sabe explicar, quase como o Keith Richards. Ainda agora fiz análises a tudo e pronto, os pulmões estão um bocado chamuscados mas de resto estou aí para as curvas. Apetece-me escrever e apetece-me até ensaiar, pá! [risos] O Rui Veloso gosta mesmo de ensaiar, eu é mais o mínimo possível.
Essas viagens de que falava há pouco são hoje romantizadas, até por quem ouve as histórias. Mas também tiveram os seus percalços, ou não? Contou uma vez numa entrevista um episódio no sul de França em que foi retirado de um comboio porque “tinha perdido o bilhete”, digamos assim.
A gente perdia sempre o bilhete [sorria]. É uma historiazinha, mas já estava na altura com aquela que viria a ser a mãe dos meus filhos. Estávamos a viajar no sul de França e a minha postura e dos músicos que conhecia, de rua, era sempre a mesma: perdi o bilhete, que chatice… O controlador estava-se a marimbar, escrevia num papel “senhor não sei quê, Paris, rua não sei quê”, claro que tudo inventado. Tudo bem.
Aí acho que fui um bocado arrogante com o pica-bilhetes, que era grande, ainda por cima. Não gostou da minha resposta e disse: na próxima paragem o senhor sai. Ainda lhe disse que tinha ali a minha mulher e a minha guitarra, mas na próxima paragem, algures no sul de França, na Riviera, o gajo fez questão que eu saísse, de facto [risos].
E levou a guitarra ou ficou lá dentro?
Fiz questão que me fosse atirada e apanhei-a. A minha mulher seguiu, ficámos a dizer adeus. Claro, na próxima estação ela voltou para trás.
Nesses tempos, perdeu anos de vida ou ganhou experiência de vida?
Acho que nunca perdi anos de vida. Sei que ganhei experiência e diverti-me imenso. Houve situações difíceis, pontuais. Houve um dia em que atravessei à boleia a Alemanha toda, de norte a sul. Consegui fazê-lo em quatro ou cinco horas, com boleias consecutivas. Foi porreiro, ao jantar já estava com os meus amigos da banda de bluegrass e as respetivas namoradas. Outra vez tentei mais ou menos do mesmo sítio, mas queria ir para Paris — sem paragens — e não para o sul da Alemanha. Demorei três dias e duas noites. Uma das noites tive de dormir na auto-estrada, à chuva, ao vento. Não tinha sacos-cama, não é? Esforcei-me por proteger a minha guitarra o mais possível, tinha um blusão. Às duas da manhã começo a ouvir tiros, pensei “ainda vou ficar aqui com um tiro nos cornos”, mas não, acho que era um campo de tiro [risos]. Adormeci na boa e com o nascer do sol lá me levantei, entrei na Bélgica e a coisa foi mais fácil.
Das pessoas que conheceu nessas viagens, houve algumas figuras de que nunca mais tenha sabido e de que tenha saudades?
É curioso, mantenho um contacto permanente com os meus velhos amigos de Paris. Alguns são franceses, outros ingleses, americanos… Há um núcleo em Berlim com dois americanos, um tem família e o outro nem por isso, de vez em quando ainda vai tocar para a rua. Estou em contacto com esse pessoal, de vez em quando apetece-me ligar: como é que é? De quando em quando lá vem a notícia: lembras-te de…? O Alan, por exemplo, morreu. Acontece de vez em quando. Quando lá vou, ainda vou tocar para a rua, porque alguns ainda o fazem. Vou tocar para a rua com eles.
Não é igual ou é?
Não. Os tempos mudaram muito. Apanhei uma época de ouro, a segunda metade dos anos 1970 e princípio dos anos 1980. O pessoal andava mais desempoeirado, dava dinheiro, ria-se, quando gostava de nos ouvir na carruagem do metro às vezes até fazia mais umas estações para continuar a ouvir. O que me disseram das últimas vezes em que estive em Paris é que os músicos de rua não têm a qualidade que tínhamos, passo a modéstia [risos], à exceção de alguns grupos de jazz e de quartetos de corda que tocam na rua ou nos corredores do metro.
Havia uma certa qualidade que mantínhamos entre as pessoas que frequentavam um ou outro café da altura. Depois, hoje os tempos estão mais sombrios e isso reflete-se na atitude das pessoas. Já não acontece saltar-se para os comboios sem bilhetes, andar tudo à balda. Neste momento está tudo muito mais apertado.
Tudo isso foi-se.
Esse tipo de quase anarquia, sim. The times they are a-changing.
No início: “Não se preocupem mais comigo que agora sou músico”
Entre os discos e canções que fez, tem com alguns uma maior relação afetiva? Seja pela música, pela letra, pelo momento em que fez a canção ou o álbum…
É difícil. Estava a pensar nisso mais profundamente no outro dia. Cada música reflete um estado de espírito. Ao ouvir as minhas músicas, lembro-me do que estava a acontecer comigo, dentro de mim e do que estava acontecer até a nível global. Todas as canções refletem o momento em que foram feitas. É muito difícil, há momentos que temos de: “nunca mais ouvi isto, que engraçado”. Tenho muitos lados B [risos] e gosto deles, mesmo daqueles que hoje não faria do mesmo modo.
Voltando ao início disto tudo: a sua mãe também tocava mas teve um emprego longo, estável. Quando decidiu abandonar o liceu e tentar ser músico, como é que ela reagiu? E o seu pai também, já agora.
O que acontece é que no ano em que ia concluir o liceu, no colégio interno [em que estava], encontro músicos nas férias da Páscoa que estavam a precisar de um teclista. Arranjou-se um teclado e mandei um postal para a minha mãe, outro ao meu pai, a dizer: não se preocupem mais comigo que agora sou músico. Isto foi na Páscoa… no fim do verão as coisas não eram tão simples.
Eles não o chatearam muito?
Não. O que acontece é que o meu pai aparece num bar em que estávamos a tocar, numa noite. A nossa banda era os Black Boys, de Santarém. Tudo branco, a cantar soul [sorriso]. De repente olho e os únicos clientes eram o meu pai, a minha madrasta e uns amigos [risos].
Ó diabo…
Ó diabo! Depois o meu pai, com calma — ele era assim —, diz-me: não queres vir viver connosco, acabar o liceu e ir para a faculdade? Pensei três ou quatro dias, ou nem tanto, e yes sir. Mesmo assim, apesar de nem no pico do verão estarmos a ganhar muito, aquilo deu para convidar a minha mãe para passar 15 dias, tudo pago por mim. Fiz questão [riso].
Há músicos portugueses jovens em que veja um bocadinho da influência do seu espírito ou da sua forma de fazer canções?
Em Portugal, de há 20 anos para cá estão a acontecer coisas muito interessantes em termos de composição e também nas prestações vocais. É bom. Houve um período em que achei que houve alguma estagnação, sobretudo na escrita de canções. Eram sempre os ‘cotas’, em que me incluía. Agora há aí gente muito boa e em todas as áreas.
Há alguns de que goste especialmente ou em que veja a sua influência mais diretamente?
Vou-me dando e atuando com alguns, às vezes. Estou-me a lembrar de Dead Combo, mas não apareceram agora. Estou-me a lembrar dos Blind Zero. Tenho trabalhado pontualmente com a Marisa Liz, portanto Amor Electro. Fiz uma coisa engraçada a cantar com a Teresa Salgueiro, para eles passarem nos concertos em mega vídeo. Quando houve um espetáculo de homenagem ao Leonard Cohen, estavam lá o Mazgani, Samuel Úria, Márcia, Miguel Guedes…
Só aí já há uma seleção.
Sim — e tenho tido encontros com a Capicua, com a Gisela João… No outro dia dei por mim a aceitar uma coisa que era cantar Amália. E cantei, na Altice Arena.
Os Palmaníacos [grupo de fãs de Jorge Palma que tinha um blogue] ainda existem?
Isso é mais uma pergunta para os meus managers, que eram os cabecilhas.
[Pausa para um dos ‘managers’, André Sebastião, contar que fez parte, em conjunto com o seu colega Tiago Branco, do blogue. “Íamos a grande parte dos concertos, uns faziam cobertura a norte, outros no centro e outros a sul. Seguíamos o Jorge para quase todo o sítio. Foi assim que nos conhecemos”. E conta o resto da história: um dia sacou o número de Jorge Palma, houve uma entrevista, começaram a “ver-se mais” e a tomar conta do barco da sua gestão profissional. Palma conclui com ironia: “Vemo-nos às vezes de mais!”]
Tenho de lhe perguntar isto, porque há muita gente que certamente quererá saber: como se sente nesta fase? Está feliz, com saúde?
Estou operacional, sim. Estou aí para as curvas. Sinto-me muito bem, sinto-me um felizardo. Tenho uma equipa que se reuniu à volta de mim, os meus managers, é uma equipa fantástica. É um organismo vivo, está sempre a funcionar. Isso dá-me alento, dá-me pica.
Com Paulo Ferreira e Maria João Simões