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Dentro da máquina
de guerra de Putin
O carro segue a alta velocidade a caminho de Kramatorsk, no Donbass. Ou assim devia ser. Os buracos na estrada, das bombas e dos tanques, travam o velocímetro. “Isto aqui é a sério”, tinham avisado os militares ucranianos no checkpoint do Oblast de Donetsk. A linha da frente está a menos de cinco quilómetros e ali as sirenes já não tocam: se de facto vier um rocket, “não há tempo de reação”. Há um motivo para o Observador atravessar meia Ucrânia: conhecer por dentro uma das mais temidas máquinas de guerra de Putin, o grupo Wagner.
Num esconderijo onde observa os russos à distância, o comandante Ahmed, acompanhado de tiros de artilharia ao fundo, conta ao Observador como os Wagner são difíceis de combater e como gostava que Zelensky o autorizasse a ir até Moscovo. Ele combate os Wagner. Não muito longe, a escassos metros do mercado destruído dias depois por um míssil, Valkyria, enfermeira dos Azov, conta como tenta não pensar quando tem de tratar um Wagner. Ela curou wagners. Foi naquela zona que Bogdan Zikratiy e Yurii Ruban foram capturados a caminho de Bakhmut e estiveram em cativeiro às mãos do temível grupo, mas conseguiram voltar numa troca de prisioneiros. Eles foram torturados pelos Wagner. Tamara Nesterova fugiu de Bakhmut quando o inimigo se aproximava depois de uma bomba destruir o quarto da irmã. Ela fugiu dos Wagner. Está agora refugiada perto de Kiev, onde Ihor Huskov, ex-alta patente das secretas ucranianas não dá descanso aos membros do grupo. Ele caça wagners. Por fim, Vladislav Izmailov conta como é ser um combatente Wagner e lutar agora pela Ucrânia. Ele foi um Wagner.
São histórias contadas ao Observador ao longo de duas semanas no terreno e mais de três mil quilómetros percorridos num país em guerra. De Kiev, também bombardeada pelos ares nesse período, à linha da frente, no Donbass. O Observador foi à Ucrânia para investigar os Wagner quando Yevgeny Prigozhin estava vivo. Quando saiu, já ele estava morto. E enterrado. Mas, na Ucrânia, ninguém esquece os Wagner. Nesta reportagem especial multimédia, explicamos porquê.
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Vladislav Izmailov estava na formatura, com outros reclusos, no pátio de uma prisão na zona de Samara, quando percebeu que aquele dia ia ser diferente. Já sem a ajuda dos riscos na parede da cela, a data ficou marcada na memória: 27 de setembro de 2022. Yevgeny PrigozhinFoi um dos fundadores e líder do grupo Wagner até morrer. Oligarca multimilionário e outrora confidente de Vladimir Putin, liderou uma insurreição contra a liderança militar russa em junho. Dois meses depois, morreu num acidente de avião entre Moscovo e São Petersburgo. aterrou de helicóptero, escoltado por um “grupo de seguranças armados”, e ofereceu àqueles homens um “bilhete para a liberdade”: se aderissem ao Grupo Wagner, teriam um perdão da pena que estavam a cumprir.
Um ano depois, a aterragem de Prigozhin na prisão é contada na primeira pessoa por Vladislav, um jovem de 27 anos, que está agora sentado numa pequena sala escura, em Kiev, em frente aos jornalistas do Observador. A conversa decorre num edifício do Estado ucraniano (não revelado por razões de segurança), mas há um homem armado na saída, junto à porta, a controlar todos os movimentos. O jovem russo garante que está a dar a entrevista de forma livre e que não foi forçado a falar, mas ficou claro para o Observador que não pode circular livremente pela Ucrânia. Nas informações que foi possível cruzar com outras fontes, Vladislav foi rigoroso naquilo que contou.
Mas como é que um jovem russo mecânico de automóveis — que um ano antes estava em Samara a cumprir uma pena de três anos e oito meses de prisão por causar uma lesão grave numa luta — vai parar a Kiev? A resposta está naquela visita do líder dos Wagner ao estabelecimento prisional. Vladislav ouviu de Prigozhin, a pouquíssimos metros de distância, “um discurso patriótico e muito bonito”, em que o antigo “chef de Putin” disse que “cada um devia algo à nação” e desafiava os reclusos a combaterem na Ucrânia sob a chancela dos Wagner. Prigozhin só ficou alguns minutos na cadeia russa, mas deixou para trás “dois funcionários do FSB [a secreta russa, ex-KGB] a fazer a seleção”.
Vladislav Izmailov tinha duas condições que interessavam ao grupo: era jovem; e era saudável. Já os Wagner tinham duas contrapartidas importantes para oferecer: liberdade; e dinheiro. “O salário eram 24 mil rublos [à conversão da altura, 2551 euros] mensais, aos quais se juntavam bónus”, conta ao Observador. O pagamento era feito em “black money” (não declarado e utilizado para lavagem de dinheiro) e o Grupo Wagner dava a possibilidade de receber seis meses de avanço (o equivalente a 15.306 euros). Vladislav assinou, no mesmo dia, um “contrato de três folhinhas” em que se comprometia a combater durante pelo menos seis meses junto do grupo militar privado de Prigozhin. Agora já não havia margem para arrependimento: Vladislav era, a partir daquele momento, um combatente Wagner.
Não foram razões políticas, mas o desejo de uma “vida nova” que o levaram a aceitar ir combater. “Eu, como a maioria dos que estavam nos Wagner, pouco me interessava pela causa da Rússia, nós queríamos era tratar da nossa vida”, conta. Mas Vladislav depressa se apercebeu que saiu de uma prisão para outra. Durante quinze dias ele (e mais 180 ex-prisioneiros) tiveram um treino intensivo e acabou por ser levado para perto da linha da frente, em Lysychansk, na região de Lugansk, no Donbass. “O Grupo Wagner tem fama de ter elementos bem treinados, mas duas semanas é muito pouco. Nós éramos apenas carne para canhão”, lamenta o agora antigo combatente Wagner.
Nunca houve nenhum dilema moral na cabeça de Vladislav: “Sabia que ia matar e que podia morrer”. No dia em que entrevistou o antigo combatente do grupo de Prigozhin, o Observador também conversou com Bogdan Zikratiy, ucraniano torturado pelos Wagner (de quem contaremos a história mais em baixo), que quis deixar uma questão ao antigo inimigo: “Perguntem-lhe quantos ucranianos matou”. Duas horas depois, Vladislav, numa sala protegida por ucranianos, começa por querer fugir à pergunta: “Não vos posso dizer nada sobre isso”. Depois da insistência, lá acrescentou: “Sim, disparei, isto é a guerra“.
Não há dúvidas de que o antigo combatente Wagner matou ucranianos, pois não havia outra forma de ter sobrevivido durante o tempo em que esteve na linha da frente. Recrutado no fim de setembro de 2022, Vladislav já estava a combater em meados de outubro do mesmo ano. Segundo explica ao Observador o antigo major-general do SBU, a secreta ucranianaÉ a sigla de Sluzhba Bezpeky Ukrayiny, que significa Serviço de Segurança da Ucrânia. Esta é a principal agência de segurança e inteligência de Kiev e trata-se de uma instituição militar, sendo todos os seus membros considerados militares. Antes da independência, a antecessora do SBU era a filial ucraniana do KGB., Ihor Huskov, a hierarquia Wagner divide-se em três escalões: os “M“, que é um “W” ao contrário e que integra os combatentes mais valiosos e que se juntaram até ao final de 2013; os “S“, um escalão menor, de quem tem registo criminal mas já saiu da prisão; e os “K“, que são prisioneiros que foram recrutados nas cadeias.
Na guerra da Ucrânia, os relatos falam num ajuste mais simplificado da hierarquia Wagner. A divisão foi feita entre os “A”, os mercenários mais valiosos (onde estarão os “M”), e os “K”, os menos valiosos e os recrutados nas prisões. “Eu era um K, claro”, explica ao Observador Vladislav, que tinha a alcunha de “White”, mas era conhecido entre os Wagner pelo nome de código “Goyder”. Apesar de mal treinados, a força dos “K” (também conhecidos como “zeks“) é que — por imposição dos comandantes — seguiam a tática quase suicida da “tempestade de carne”. “Vai um grupo de 10 atacar uma posição. Se esse grupo não tomar o objetivo, seguem mais 10 e assim sucessivamente até o objetivo ser alcançado”, explica o ex-Wagner.
A “tempestade de carne”, como reconheceram combatentes do lado ucraniano como Ahmed, Vitaly Slobodian, Bogdan Zikratiy ou Yurii Ruban — quatro que conheceremos mais à frente neste trabalho — torna os Wagner difíceis de bater no campo de batalha. Vladislav — que foi várias vezes um dos 10 a integrar a também chamada “onda de carne” — diz que não há outra opção para os combatentes senão chegar ao objetivo. “Se voltas para trás, levas um tiro. Se perdes contacto com o comandante, os que vêm atrás matam-te. A única hipótese de sobreviveres é continuares a matar e atingir o objetivo”, conta “Goyder”.
“Se a missão for muito prioritária, vai um segundo, terceiro, quarto, quinto, sexto grupo até à reserva e só acaba quando o ponto for conquistado”, conta. Depois de isso acontecer, os “sobreviventes” formam novos grupos de 10 que, como já passaram por uma “tempestade de carne”, acabam por ser considerados “bons, estáveis e experientes”. Quem vai no primeiro grupo e fica vivo sobe um patamar na hierarquia “e vai tendo direito a recuar nos grupos de dez no combate seguinte”. Cria-se assim uma nova hierarquia, mesmo no escalão mais baixo.
A “tempestade de carne” é uma tática que envolve o envio de grupos de 10 soldados de forma sucessiva para a frente de batalha de forma a provocar desgaste no inimigo pela insistência. Na linha da frente, como carne para canhão vão os ex-prisioneiros (“zeks” ou “K’s”).
Se o primeiro grupo que avança em direção às trincheiras não derrubar os ucranianos, segue logo um grupo de mais 10 que terá de eliminar tudo o que tiver à frente (se necessário, até os Wagner sobreviventes). É difícil resistir porque a defesa não tem tempo para descansar e as munições são limitadas.
Se a posição for muito importante para os interesses russos, podem ser enviados até 10 grupos de 10 (ou seja, 100 soldados) neste tipo de ataques.
A tempestade só termina quando os soldados do grupo Wagner tomarem a posição ou se a prioridade do objetivo não justificar mais baixas. Os sobreviventes são depois redistribuídos em novos grupos. Sobem na hierarquia e, no ataque seguinte, têm direito a seguir num grupo mais recuado, o que aumenta as hipóteses de sobrevivência.
A ida para combate é feita com pouca informação. Normalmente, os soldados estão na base, recebem ordens e “seguem nas pickups” para tomar uma posição. Não lhes é fornecido qualquer dado concreto, apenas recebem, conta Vladislav, “um telemóvel com GPS com o ponto onde está a posição inimiga e aquele que tens de tomar — a partir daí só tens de ir cegamente para lá”.
Vladislav combateu na frente de batalha em direção a Bakhmut. Aguentou um mês e meio até cair, literalmente, em Bilohorivka. Numa batalha “algures pelos vintes de novembro [de 2022]” viu todos os membros do seu grupo morrerem. “Só restei eu e estava ferido”, conta. Se voltasse para trás, já sabia o que o esperava: a morte. “Vi muitos colegas [Wagner] a cavar a cova para onde a seguir eram atirados”, revelou. Além dos Wagner mais experientes, mais recuados, atrás deles ainda estava a brigada “Akhmat”A Brigada Akhmat, também conhecida como Kadyrovites, é uma organização paramilitar chechena que tem como chefe o aliado de Putin Ramzan Kadyrov. A brigada é suspeita de cometer graves violações de direitos humanos, havendo suspeitas de que participaram no massacre de Bucha., a milícia chechena que faz parte das tropas de Ramzan Kadyrov (e que é suspeita de ter tido responsabilidades no massacre de Bucha) e que tomava as posições após serem conquistadas pelos Wagner.
Ferido, já sem hipótese de resistência ou de recuo, Vladislav foi capturado pelos ucranianos. “Eu não me rendi, fui capturado”, faz questão de dizer ao Observador menos de um ano depois, já em território ucraniano.
Após receber assistência médica, esteve detido durante mais de sete meses até que, a 11 de junho, Vladislav foi colocado num autocarro com mais quatro dezenas de prisioneiros para uma troca com as tropas do Kremlin. Era a oportunidade de voltar à Rússia. Perto da zona de troca, Denis KapustinCriou, em agosto de 2022, os Russian Volunteer Corps, um grupo de russos que combate ao lado da Ucrânia. Também conhecido como “White Rex”, chegou a ser apontado como um dos “mais influentes neonazis” pelas autoridades alemãs. Dá argumentos a Putin para dizer que há nazis do lado de Kiev., líder do Russian Volunteer Corps (o batalhão russo que combate do lado ucraniano), sobe ao autocarro para fazer uma proposta aos prisioneiros de guerra, a quem oferece três cenários: regressar à Rússia, ser reintegrados na sociedade ucraniana através do programa “Eu Quero Viver” ou combater na milícia russa chefiada por Denis ao lado de Kiev.
A milícia russa que combate pela Ucrânia gravou o momento e pôs a circular o vídeo pelos vários canais pró-Kiev nas redes sociais, em imagens que também cedeu ao Observador dias depois da entrevista a Vladislav — personagem principal de um momento que parece ter sido fabricado e pensado ao milímetro para servir a propaganda de Kiev.
Vladislav Izmailov, que agora recorda a história ao Observador, levantou o dedo como se estivesse na sala de aula e, após Denis lhe dar um microfone e lhe pedir para falar mais alto, apresentou-se: “Izamilov Vladislav Sergeevych, nascido em 30.10.96 em Samara”. E disse a palavra-chave, num momento que parecia estar previamente combinado: “Recuso-me a ser trocado e a voltar para a Federação Russa!”.
Denis perguntou então: “Em que batalhão combateste?” E Vladislav respondeu: “No grupo privado militar Wagner”. Nesse momento, a câmara foca-se agora no comandante dos Russian Volunteer Corps, que diz com ar provocador: “Prigozhin, mais uma vez o destino está a ligar-nos de uma forma tão bizarra.” E ainda acrescenta, falando para a câmara: “Aqui ele vai ser um combatente decente dos RVC”. A “escolha” de Vladislav voltava a mudar-lhe a vida. Começava ali o caminho para voltar a combater na guerra da Ucrânia, mas a partir dali, do lado de Kiev.
O vídeo de Vladislav chegou às mãos do líder dos Wagner, que fez uma ameaça pública no seu grupo de Telegram. Prigozhin difundiu um áudio onde confirma que se tratava de um seu antigo combatente: “Vladislav Izmailov é um traidor”.
Dois meses depois da ameaça, foi o próprio Prigozhin que morreu quando seguia a bordo de um avião a caminho de Moscovo e já com as relações completamente deterioradas com Vladimir Putin. Duas semanas depois da queda do avião, Vladislav está numa sala em Kiev com o Observador e, já depois de quarenta minutos de entrevista em russo, informa que afinal sabe falar em inglês. Fala quase sempre cabisbaixo, mas também sorri com algumas perguntas. É o que acontece quando lhe perguntam: “O que pensa da morte de Prigozhin?”. Vladislav lança um esgar e diz: “É-me indiferente. Genuinamente, não quero saber da morte dele. Tenho mais em que pensar”.
Vladislav revela que tem estado os últimos três meses em treinos e que ainda não combateu, mas que se sente “pronto”. A motivação: “É tempo de acabar isto. De mudar e começar pelo topo, de tirar de lá Putin“. Sabe que, mesmo com a morte de Prigozhin, não pode voltar a casa: “Sou traidor, sou considerado terrorista“. As opções não são muitas, mas, para já, é quase um trophy soldier: os ucranianos exibem-no como exemplo para outros russos que queiram mudar de lado.
Também sabe que ainda não tem a “confiança” dos outros soldados, mas acredita que a vai conseguir “ganhar em combate” quando voltar a disparar, desta vez contra compatriotas. “Sou russo. É como é. Mas encaro isso a sangue frio”. O antigo combatente das tropas de Prigozhin ainda tem na pele algumas marcas, como suásticas que, garante, fez antes ainda de saber o que era o grupo Wagner. Apesar disso, admite que muitos dos combatentes “têm símbolos nazis tatuados”, mesmo que estejam alegadamente a lutar pela “desnazificação da Ucrânia”.
Ao longo da entrevista com o Observador, Vladislav parece estar à vontade.
Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
O antigo combatente Wagner tem agora de provar que quer ficar a combater pela Ucrânia.
Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
No final da entrevista, levanta-se para mostrar algumas marcas da sua vida anterior que tem gravadas no corpo.
Num dos braços, meio escondidas, estão duas cruzes suásticas.
Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Vladislav acredita estar agora a fazer uma “boa ação” e a lutar do “lado certo”, encarando essa disponibilidade como “uma espécie de redenção”. Aos ucranianos não tem muito mais a oferecer “senão a guerra” e não teve problemas — quando foi questionado sobre se o conseguia fazer — em dizer para a câmara: “Glória à Ucrânia”.
O antigo combatente teve honras de ser ameaçado de morte por Prigozhin, o homem que lhe atribuiu, como K, o suicida dever de ir para a primeira linha. Algures em Kiev, não muito longe de onde está Vladislav, há um homem, antigo general, que dedica parte dos seus dias à procura de Wagners, mas dos que contam mesmo: os que usam letra M. É Ihor Huskov, o caçador de wagners.
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Em cima da mesa, num café nas traseiras de um prédio em Kiev, o antigo general dos Serviços de Segurança da Ucrânia (SBU)É a sigla de Sluzhba Bezpeky Ukrayiny, que significa Serviço de Segurança da Ucrânia. Esta é a principal agência de segurança e inteligência de Kiev e trata-se de uma instituição militar, sendo todos os seus membros considerados militares. Antes da independência, a antecessora do SBU era a filial ucraniana do KGB. Ihor Huskov está sentado numa mesa com um jovem ao lado, de frente para a porta. Nunca de costas. Junto a ele tem um computador e um bule de chá, que deixa arrefecer com o entusiasmo da conversa. Agora na reserva, o major-general, de 51 anos, utiliza as táticas que aprendeu nas secretas para encontrar combatentes Wagner que continuam as suas vidas calmamente pelo mundo fora.
Quando começa a conversa com o Observador, Ihor Huskov deixa um aviso: “Não estou aqui só para vos falar dos Wagner, estou aqui para vos mostrar. Foi para isso que trouxe o computador”. O major-general vira depois o portátil e mostra um excel repleto de hiperligações: “Esta base de dados inclui nove mil pessoas, todos combatentes Wagner do escalão M. Não apenas os que combatem agora, mas todos os que se juntaram desde 2013″. O “caçador de Wagners” (“é isso que eles pensam que eu sou”) não está preocupado com a arraia miúda, mas apenas com os “M”, os “mercenários profissionais”.
A base de dados tem quase tudo: o nome do Wagner, a alcunha de guerra, o número da placa de identificação que todos usam, a morada atual e as moradas passadas, link para todas as redes sociais, informação sobre quando se juntou aos Wagner, local onde combateu e as últimas aparições públicas. Além disso, são acrescentadas informações como o nome da mulher, ex-mulheres, pais, filhos. E mais: “Chegamos a ter o nome e a morada do médico em alguns casos”. Ao mesmo tempo que enumera a quantidade de informação sobre cada Wagner, Ihor Huskov vai mostrando fotografias e documentos desses combatentes.
A base de dados que Ihor nos mostra tem cerca de 9 mil entradas.
As entradas são todas de soldados Wagner com o escalão M. São os “mercenários profissionais” e estão na estrutura do grupo há mais tempo.
Colunas destacadas, da esquerda para a direita: divisão, cargo e nome completo.
Colunas destacadas, da esquerda para a direita: nacionalidade, alcunha, data de nascimento e passaporte/morada.
Algumas destas pessoas já morreram.
“Morreu no dia 19 de outubro de 2015 na Síria” e “Morreu o mais tardar no dia 29 de maio de 2020”.
Colunas destacadas, da esquerda para a direita: Myrotvorets, redes sociais e pasta.
Alguma desta informação está publicada no site da ONG Myrotvorets, uma organização ucraniana que divulga uma lista de pessoas consideradas “inimigas da Ucrânia”.
Como está perante jornalistas portugueses, começa por dizer: “Estão livres: não há nenhum Wagner em Portugal”. Mas logo acrescenta: “Mas há perto: há um que vive calmamente a algumas centenas de quilómetros da fronteira”. Trata-se de E. B. (o Observador opta por revelar apenas as iniciais do nome). Em pouco segundos, o major-general expõe no ecrã a vida deste combatente Wagner. Vive em Alicante, é natural do Azerbaijão, mas tem residência oficial na Rússia. Nos seus registos está uma morte por homicídio, da qual não foi condenado “porque os tribunais russos não conseguiram confirmar”.
A base de dados mostra que E.B. (placa de identificação número M1509) combateu e matou muita gente na Ucrânia em 2014 e na Síria em 2017 e, pelo menos em 2019, ainda tinha contrato com os Wagner. Apesar disso, vive tranquilamente em Espanha. Pelo menos por enquanto: “Na próxima segunda-feira vou enviar uma carta oficial à embaixada da Ucrânia em Espanha a informá-los de que há um terrorista a viver no país”, revela Ihor Huskov ao Observador. O “caçador” prefere lidar diretamente com serviços dos Estados, pois parece não confiar na “Interpol, que trabalha de maneira diferente”.
O objetivo de Ihor Huskov — neste como noutros casos que denuncia — é que “ele seja forçado a sair de Espanha”. Para o major-general, “não faz sentido que Espanha acolha refugiados ucranianos, mas também acolha um Wagner idiota”. Entre as informações que enviou para a embaixada estão dados sobre o paradeiro de E.B e também sobre a mulher dele e os filhos. “Este Wagner publica fotografias no Facebook e está num clube de combate em Alicante. Participa até em competições”, revela Huskov. Ao mesmo tempo, mostra uma coluna onde se veem as últimas aparições públicas de E.B.: “Olhem, a última luta dele foi a 12 de Abril de 2023, na zona de Valência”.
E.B. é só um de mais de 9.000 nomes que constam da base de dados. Incluindo os que já morreram. Yevgeny Prigozhin não está na lista, explica, porque “não é combatente”. Mas Dmitri UtkinDmitry Utkin é o fundador do grupo Wagner, que se chama assim porque era esse o seu nome de guerra. Foi o líder militar dos Wagner e terá morrido no mesmo avião privado que o CEO do grupo, Yevgeny Prigozhin. Antigo membro do GRU (Departamento Central de Inteligência do exército russo) era também conhecido pela simpatia pelas ideias da Alemanha nazi. está. A ficha, que mostra no computador, ocupa dezenas de páginas com informação sobre o médico, os filhos (conhecidos e desconhecidos) e sobre várias mulheres de Utkin. Fala da primeira mulher (a de Smoline), mas também de outras de que nunca ninguém ouviu falar: uma na Chechénia, e uma “amante” que trabalha na polícia em Lugansk.
Dmitri Utkin, um dos fundadores do grupo Wagner, morreu no mesmo dia em Yevgeny Prigozhin. Ambos estavam no avião que caiu entre Moscovo e São Petersburgo.
Foto: Alamy
A informação de que Utkin foi a Smoline, na Ucrânia, já depois da guerra no Donbass começar em 2014, é contestada por Ihor Huskov. “Os moradores estão enganados. Ele foi em 2013. Nós [os serviços secretos] até pensámos processar as pessoas que disseram isso na altura, porque o que queriam era desacreditar-nos”, lamenta. Huskov compromete-se a ceder toda essa informação ao Observador: “Ia publicar uma grande história no meu site, mas como ele morreu [no avião de Prigozhin] já não vou fazer”.
Durante anos, Ihor Huskov, que desempenhou as funções de alto funcionário do SBU, dedicou-se a investigar os Wagner. Fazia apresentações públicas (“até em Bruxelas”) sobre o grupo liderado por Prigozhin, mas deixou de confiar no sítio onde trabalhava. O “caçador de Wagners” explica agora ao Observador que se incompatibilizou com o então líder dos serviços secretos, Ivan BakanovO político e fundador do Servo do Povo — partido do atual Presidente ucraniano — foi o líder das secretas ucranianas entre 2019 e julho de 2022, altura em que o amigo de infância Volodymyr Zelensky o afastou do cargo por não conseguir impedir que o SBU tivesse funcionários russos infiltradas nos seus departamentos., amigo de infância de Zelensky, que acabou demitido pela incapacidade de travar a infiltração de espiões russos nas secretas ucranianas.
Ihor Huskov saiu do SBU, a secreta ucraniana, e foi praticamente apagado do mapa. Eliminaram as apresentações públicas que fazia sobre os Wagner (mas que o major-general na reserva cedeu ao Observador) e até as fotografias de conferências públicas que tinha realizado. O Observador tentou aceder a links que sobrevivem na pesquisa do motor de busca, mas quando tenta abri-los o resultado é o mesmo: Erro 404. É preciso ir a sites noticiosos como o KyivPost ou a agência Reuters para conseguir ver relatos das conferências de imprensa e fotografias do major-general Huskov. Depois de a liderança do SBU ter mudado (Vasyl Malyuk substituiu Bakanov), a colaboração voltou e o antigo responsável da SBU já cede à secreta informações que considere úteis.
Além do manancial de informação que trouxe em discos rígidos e pens (pois tinha medo que “os infiltrados russos a apagassem”), Ihor Huskov continuou a recolher novos dados e prossegue o trabalho de investigação ao Grupo Wagner, colocando alguma dessa informação (para que as pessoas saibam que são vizinhos de combatentes de um “grupo terrorista”) em sites internacionais de denúncia que têm ONG por trás como o Myrotvorets. Questionado pelo Observador sobre se faz o trabalho sozinho, o major-general aponta para o filho, que está perto da maioridade, e diz: “Tenho aqui o meu funcionário”.
Parte do trabalho de pesquisa do “caçador de Wagners” é feito no Facebook, no Instagram, no TikTok ou no Telegram, juntando a experiência adquirida nas secretas com a agilidade do filho a lidar com redes sociais, que utiliza para encontrar combatentes “M”. Numa análise rigorosa às fotografias de potenciais combatentes Wagner, há elementos que ajudam muito à identificação.
Todos os Wagner têm um número de combatente que está inscrito na sua “dog tag”, a chapa de identificação militar. Os mercenários mais experientes, e mais valiosos, têm a letra M (o W, de Wagner, ao contrário) seguida de um número. O fundador, Dmitri Utkin, tinha na sua chapa de identificação inscrito o número M-0209.
Os combatentes do grupo Wagner distinguem-se de outros militares pela particularidade de, por baixo da farda (que pode ter várias cores e formas), terem uma t-shirt interior às riscas, estilo marinheiro.
Os soldados que combateram com os Wagner receberam a medalha com a “cruz das trincheiras”, atribuída pelo serviço prestado na Ucrânia, na Síria, na Líbia, etc.
Modelos diferentes da mesma cruz.
Ihor Huskov conta até como às vezes uma investigação começa com recurso aos elementos mais mundanos e aponta para o ecrã: ”Aqui está o funeral de um Wagner, em que a fotografia é publicada no Facebook ou Instagram. Eu vou ver os comentários e, se alguém responder com o emoji da lágrima😢, é uma razão para começar a investigar essa pessoa”.
O major-general já foi ameaçado várias vezes, mas acredita que os russos têm outros alvos prioritários: “Não sou uma pessoa-chave neste momento”. Ainda assim, revela que anda acompanhado da arma de serviço, que usava no SBU, e não dispensa outras precauções de segurança, que não revela para não favorecer quem o queira atingir. Desconfia, inclusive, dos próprios SBU. Em Kiev, tudo é desconfiança. Durante uma conversa de duas horas, as funcionárias do café chamam o Observador: “Quem é ele e porque está a falar russo?”. Huskov nasceu ainda na União Soviética e fala de facto russo, mas o que as mulheres que lhe serviram o chá não sabem, nem podem saber, é que foi uma das mais altas patentes das secretas a defender a Ucrânia da Rússia.
O “caçador de Wagners” identifica-os a partir do computador, mas há outro tipo de caça. Há quem os combata no terreno, como é o caso do comandante Ahmed, que marcou encontro com o Observador no Donbass, mesmo junto da linha da frente.
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O encontro era para ser numa bomba de gasolina, mas, a dez minutos da entrevista, Ahmed envia a localização de um outro local. A entrevista que concedeu ao Observador realiza-se no Donbass, a cinco quilómetros da linha da frente e a cerca de 15 de uma Bakhmut ocupada pelos russos após ter sido tomada pelo Grupo Wagner em maio. Nos arredores da povoação na região de Donetsk — que não pode ser revelada por razões de segurança — há uma garagem em frente ao alfinete de destino que o Google Maps indica. Um homem fardado, com óculos de sol de ciclista e armado com uma Kalashnikov, abre o portão e espreita para os vários lados na rua. Após uma pequena vistoria, manda o Observador entrar na casa.
Segue-se um pequeno labirinto de quintais, garagens e construções precárias. Ao longe, ouve-se a artilharia a explodir, sem se perceber quem lançou os rockets nem de que lado estão a cair. Não muito longe dali, um míssil atingiria uma semana depois o mercado de Kostyantynivka, com Rússia e Ucrânia a acusarem o outro lado de responsabilidades e uma investigação do The New York Times a levantar suspeitas de que a responsabilidade pode ter sido de Kiev. Após uns passos com escolta, o Observador chega a uma casa e, numa das divisões, está o comandante da brigada Águia Negra, uma força especial que combate do lado ucraniano. O soldado dá a cara, mas não o apelido. É “apenas Ahmed”.
Na sala há uma ventoinha, uma fruteira, uma meia mesa de pingue-pongue a servir de zona de reuniões e, de frente para Ahmed, um ecrã gigante com várias filmagens de drones. Com um comando na mão, o georgiano vai mudando de câmara e observa os movimentos das tropas russas em direto. “Não filmem nem fotografem isto”, avisa em tom de ordem.
O comandante, que combate pela Ucrânia desde 2014, começa por dizer que o seu batalhão combateu os Wagner pela primeira vez em Kherson, depois nos arredores de Bakhmut, e admite que são “bem preparados” e estão “bem armados”. Para o comandante, “não faz sentido desvalorizar os Wagner”, porque mesmo os que não são profissionais, os tais K, “conseguem rastejar durante dias”. Diz que nunca viu ninguém aguentar tanto (“eles rastejam durante mais de 24 horas”) e atribui isso a “drogas e dopantes” que acredita que os Wagner tomam. Vladislav Izmailov, ex-combatente, nega ao Observador o uso dessas substâncias na unidade dele: “Só nos davam trimeperidina quando estávamos feridos”. Até porque, garante, há os chamados quatro pecadosOs contratos dos soldados com o Grupo Wagner identificam quatro pecados que os combatentes não poderão cometer e que, conforme a gravidade, poderão resultar em prisão ou mesmo em morte. São eles: desertar, roubar, maltratar ou violar civis; consumir drogas ou álcool e não cumprir a ordem de um superior. que os Wagner não podem cometer. Mas admite que exista: “Quanto aos outros, não sei”.
Apesar de as tropas da linha da frente não terem tido um treino intensivo, Ahmed (que diz que “gostava de enfrentar os mercenários profissionais”, que são “protegidos” e colocados longe da frente de batalha) diz que os combatentes “K” acabam por ser difíceis de bater pela técnica da chamada “tempestade de carne”. O facto de haver sempre uma onda de 10 combatentes coloca muita pressão sobre as tropas ucranianas. Além disso, explica Ahmed, “eles não fazem evacuações: 'Do lado ucraniano, quando temos um ferido, perdemos tempo a retirá-lo do campo de batalha. Eles não. São carne para canhão'”.
Ahmed continua a falar de forma enigmática quando as perguntas são mais pessoais. Diz que tem “mais de 30” anos, mas que na Guerra russo-georgianaTambém conhecida como a Guerra dos Cinco Dias, o conflito opôs Rússia e as regiões separatistas pró-russas da Abecásia e da Ossétia do Sul à Geórgia. Terminou cinco dias depois com a perdas territoriais para Tbilisi: a Geórgia perdeu 40% dos territórios da Ossétia do Sul que detinha e 25% da Abecásia. de 2008 ainda não tinha idade para combater (18 anos). Ou seja: tem entre 30 e 32 anos. Sobre a infância, “considera-se um rapaz normal, com uma infância normal”, mas que, “como todos os vizinhos da Rússia, em algum momento Moscovo tenta matar-nos e humilhar-nos”. Foi nesse agosto de 2008 que decidiu lutar quando tivesse idade e juntou-se ao exército da Geórgia logo que lhe foi permitido.
Lá fora, o homem dos óculos de ciclista continua a ronda de Kalashnikov em riste. O comandante prossegue com a sua história. Em 2014, o contrato com o exército georgiano acabou e Ahmed decidiu lutar ao lado da Ucrânia precisamente quando a guerra começou no Donbass. Esteve na 1.ª subdivisão do Batalhão AzovA brigada nasceu em Mariupol e foi lá, em Azvostal, que sofreu pesadas baixas em confronto com exército russo. Após dois meses de combates intensivos no cerco russo ao complexo de Azvostal, o grupo rendeu-se. A brigada foi fundado por neonazis e nacionalistas ucranianos e começou por combater no Donbass em 2014 contra as tropas pró-russas. É um dos grupos que serve de desculpa a Putin para dizer que está a desnazificar a Ucrânia., mas agora comanda a sua própria unidade, que é uma espécie de milícia internacional, composta, essencialmente, por georgianos, mas que também tem “colombianos”, “americanos” e chechenos independentistas (anti-Rússia e anti-Kadyrov).
Mesmo que considere os Wagner difíceis de bater, Ahmed mantém a confiança máxima. “Nós somos muito melhores”, atira. Garante ainda — minutos antes de mostrar ao Observador Kalashnikovs e lança-rockets — que tem “todo o material que precisa” porque o “exército ucraniano não falha aos batalhões que mostram resultados”. Entretanto, o comandante desliga as câmaras dos drones que filmam os russos em direto e começa a mostrar um vídeo de um combate em Kurdyumivka em que a divisão Águia Negra forçou os combatentes Wagner a fugir. O vídeo — mostrado em bruto no esconderijo de Ahmed — foi dias depois enviado ao Observador, mas com edições criativas: acelerações de tempo, música e emojis.
No início do vídeo editado enviado ao Observador, vemos uma zona num descampado a ser bombardeada. De acordo com Ahmed, esta cena foi filmada em Kurdyumivka, perto de Bakhmut, no leste da Ucrânia. Neste excerto, mantivemos a música original.
O bombardeamento continua e, a certa altura, vemos os soldados russos a fugir a correr. A edição criativa dos soldados acrescenta ainda um emoji com as cores da Rússia.
Estes vídeos são partilhados nas redes sociais. “Temos aqui material para rir”, conta Ahmed ao Observador.
Ahmed acredita que a morte de Prigozhin enfraqueceu os Wagner: “Se o dinheiro acaba, mais tarde ou mais cedo vai acabar a unidade”. E até apreciaria que eles corrigissem o caminho: “Gostava que eles fossem em direção a Moscovo [como em julho chegaram a avançar umas centenas quilómetros], mas não me parece que vão”. Já depois da conversa do georgiano com o Observador, 500 operacionais Wagner voltaram para o Leste da Ucrânia, havendo a possibilidade de se voltarem a cruzar. O batalhão Águia Negra não tem medo: “Eles são bons, mas nós somos melhores”.
Se os Wagner já não têm vontade nem força para ir até ao Kremlin, há quem queira ir. “Eu só sigo ordens [do exército ucraniano], por mim só parávamos em Moscovo”, diz Ahmed. O comandante desta força especial — que tem mais de 100 elementos e que só atua em situações específicas — diz que o fim da guerra é “muito imprevisível”, mas insiste que há uma forma. Contra aquilo que é a posição política e militar da Ucrânia, Ahmed não tem problemas em dizer: “Claro que temos como objetivo tomar Moscovo. Isso é óbvio”.
O comandante que viveu a maioridade quase toda em guerra, despede-se do Observador a desejar paz. Faz questão de agradecer ao ocidente pelo apoio militar e manifesta o desejo de Kiev aderir à NATO. “Isso era muito importante”, diz. Ao fundo, muito ao fundo, continuam a ouvir-se os sons das bombas. A guerra prossegue naquele canto do Donbass.
A caminho do Donbass, onde decorreu a entrevista com Ahmed.
Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Um tanque regressa da linha da frente, a cerca de cinco quilómetros do local da entrevista.
Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Um dos momentos de lazer no abrigo passa por rever as imagens de operações contra soldados russos.
Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Ahmed acredita que a Ucrânia tem tudo o que precisa não só para expulsar os russos do seu território como também para conquistar Moscovo.
Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Ahmed volta para a batalha, mas há quem tenha combatido os Wagner e acabasse capturado. Por sorte — que é preciso quando se é apanhado pelo lado de lá — Bogdan Zikratiy, o “rapaz de tatuagem”, e Yurii Ruban, um apreciador de maçãs, voltaram do cativeiro para contar as suas histórias.
Wagner
A três dias da passagem de ano de 2022 para 2023, Yurii Ruban – que estava há duas semanas preso pelos Wagner algures na Lugansk ocupada por russos — foi para uma sala à parte para uma troca de prisioneiros. A esse espaço chegariam três macas, com três combatentes ucranianos, também capturados, mas um deles chamou-lhe a atenção: era um jovem que tinha tatuado no peito a frase “Eu amo os Wagner“. É Bogdan Zikratiy, natural de Sumy, e ambos encontram-se ali por uma boa razão: vão ser moeda de troca e regressar a casa depois de serem capturados por combatentes do grupo Wagner. Até 30 de dezembro — dia em que um cessar fogo permitiu que fossem trocados em pleno terreno em Bakhmut — Bogdan e Yurii sofreram nas mãos dos Wagner.
Bogdan, de 30 anos, estava a combater em Bilohorivka a 23 de outubro quando passou a ser um 300“Carga 300” é um código, utilizado tanto por russos como ucranianos, que significa transporte de feridos. Mas há outros: o código “200” significa transporte de soldados mortos no campo de batalha. Já um “500” pode ser um soldado que se recusa a lutar. E um “600” um prisioneiro de guerra. (código para ferido). Estava baleado, com as duas pernas a esvaírem-se em sangue, mas continuou a rastejar. Encontrou depois um kit de primeiros socorros de um Wagner abatido com três ampolas e uma seringa e conseguiu injetar-se com o que, segundo as instruções, era um analgésico. Aguentou mais um pouco, mas depois restou-lhe esperar. Acabou por chegar aquilo que pensou ser ajuda de ucranianos. Mas, quando chegou a uma base, alguém lhe pegou na cabeça e disse: “Sabes onde vieste parar?”. Antes que respondesse, o carcereiro acrescentou: “Wagner. Estás em cativeiro“. Foi capturado pelo grupo Wagner em Bilohorivka, precisamente onde, um mês depois — numa inversão de papéis — os ucranianos capturavam o combatente Vladislav Izmailov.
O soldado ucraniano tinha combinado falar com o Observador em Sumy, onde vive, mas um tratamento de última hora obrigou-o a ir para Hostomel — cidade conhecida por ali se localizar o aeroporto onde a Rússia destruiu o AntonovO Antonov-225 Mriya era o maior avião do mundo e uma das jóias da coroa de Kiev. Mriya, em ucraniano, significa sonho. O avião foi destruído durante a batalha do Aeroporto de Hostomel, a 24 de fevereiro de 2022, dia em que começou a invasão da Rússia. Zelensky já ordenou a construção de um novo.. Aquela zona do oblast de Kiev cheirava a incêndio naquela manhã, pois tinha sofrido o “maior ataque desde a primavera”. Na periferia, Bogdan, com a ajuda de canadianas, caminhava como podia, indiferente ao smog de pólvora no ar. É em pé, apoiado nas muletas, que vai contando os detalhes do dia em que foi feito cativo.
Os Wagner levaram-no e começaram a fazer um interrogatório, pois queriam saber onde estavam os tanques e a artilharia ucranianos. Tal como aconteceu com Yurii, os operacionais do grupo de Prigozhin estavam muito interessados em saber se havia “mercenários de outros países” e também “onde viviam os comandantes”. Bogdan disse que era um simples “soldado” e que não tinha essa informação. Mesmo gravemente ferido, foi espancado.
De repente, pararam de lhe bater e um combatente Wagner sugeriu: “E se lhe fizéssemos uma tatuagem?”. Bogdan foi então colocado numa maca e começou a sentir a agulha a queimar na pele. “A dor era tanta que fiquei anestesiado”, conta enquanto olha para o céu num esforço para se lembrar de mais detalhes. Estava com os olhos tapados, mas quando lhe tiraram a venda leu o que tinham escrito do lado esquerdo do peito: “Eu amo os Wagner”. A partir daí, transformou-se numa espécie de atração de circo. “Os combatentes vinham tirar selfies comigo”, recorda.
De alguma forma, aquela tatuagem, que tanto animava as tropas Wagner, pode tê-lo salvo. A partir dali, ninguém mais lhe bateu. A violência era, acima de tudo, “psicológica”. Não só tinha tatuado o nome do grupo que o raptou, como eles repetiam frases como “isto [a Ucrânia] é a nossa terra”.
Ao fim de dois meses e meio no hospital, o “rapaz da tatuagem” saiu finalmente para uma prisão para a troca. Chegou de maca e foi para uma pequena sala de paredes de betão onde já estava Yurii Ruban. Ambos sabem agora onde estavam, algo que desconheciam quando se encontravam em cativeiro: na cidade de Pervomaisk, na região de Lugansk. É ao acaso que o Observador descobre que ambos se tinham cruzado. A entrevista a Yurii Ruban ocorre a mais de 500 quilómetros de Sumy e a mais de 350 de Kiev.
Yurii chega a conduzir um Lada azul, de fabrico soviético, e sem nenhuma mazela física visível. Existem, mas estão escondidas debaixo da roupa — como exibiria, a pedido, uns minutos depois. O encontro é junto à linha de comboio, o que é simbólico para quem trabalhou os últimos 33 anos (só com paragem na guerra) na estação de comboios de Pomichna.
Dois dias após o início da guerra, Yurii, que tem 54 anos, alistou-se, mas os serviços militares não o aceitaram, dizendo que o voltariam a contactar quando fosse preciso. Dois meses depois, regressou. O médico voltou a chumbá-lo, mas perguntou: “Queres mesmo ir, não queres?” Após ouvir o ‘sim’ do funcionário da ferrovia, passou-lhe o atestado. “Pronto, pronto”, disse o médico. Durante três meses não lhe ligaram até que, a 18 de julho, foi chamado. Esteve 40 dias a treinar até ir para a primeira missão, que passou por segurar uma posição na aldeia de Sukhyi Stavok, na direção de Kherson.
Tudo correu bem até que o enviaram para Bakhmut. O objetivo era manter o controlo de uma fábrica de vinho e, para isso, o batalhão estava a cavar trincheiras. De noite, cavavam os mais novos; de dia, os mais velhos. Foi assim até que, às 9h30 de 17 de dezembro, duas horas depois de trocar o turno, sofreram uma emboscada. Na retaguarda tinham uma mina de carvão — com túneis que serviam de esconderijo às tropas ucranianas — e, quando os disparos começaram, conseguiram recuar, mas acabaram cercados.
Como estava a chover, “as armas começaram a encravar com a lama nas balas e na própria arma”. Os russos insistiam: “Rendam-se”. Mas os ucranianos, recorda Yurii, devolviam com “coisas obscenas”. Na trincheira, só o “homem dos comboios” e um outro companheiro de batalhão sobreviveram, ambos inoperacionais e atolados em lama. Os Wagner chegaram e disseram: “Larga a arma”.
Depois disso, Yurii começou a levar coronhadas na cabeça, meteu-se em posição fetal para se proteger e acabou com a mão — com a qual protegia a cara — desfeita. Depois, ordenaram-lhe que se levantasse e um deles deu-lhe um tiro.
Apesar disso, a ordem que os Wagner tinham era para fazer reféns. Se Yurii aguentasse andar 2,5 quilómetros, talvez sobrevivesse. Pelo caminho, chegou a dizer: ‘Deem-me um tiro, que eu não aguento”. É então detido e enfrenta o chamado dilema do prisioneiroO dilema do prisioneiro é quando dois suspeitos x e y são detidos. Perante o interrogatório x pode comprometer y e vice-versa. Sem poderem contactar um com o outro, ambos têm o dilema moral de se protegerem a eles próprios ou também protegerem o colega. No caso de Yurii Ruban, se ele mentisse e o colega dissesse a verdade, ou vice-versa, o outro ficaria em perigo.. Os captores chamam o outro sobrevivente da companhia, que se chamava Serghiy, e avisam ambos: ‘Vamos fazer perguntas aos dois, se não coincidirem, morrem”. Era bluff. Apesar de não responder a nada, acabou por sobreviver e foi feito prisioneiro.
A cela tinha paredes de betão, menos de 30 m2 e alguns beliches que não chegavam nem para um terço do grupo. Então, os prisioneiros, que eram 30, dormiam no chão e faziam um sistema de cama quente: “Uns dormiam umas horas no beliche e depois trocavam”. A comida era racionada: os prisioneiros de guerra tinham direito apenas a um terço de ração de um combatente Wagner. Yurii e Bogdan perderam entre 10 a 20 quilos.
As necessidades eram feitas para dentro de garrafas ou metades de garrafões e, ao longo do período de cativeiro, nunca tomaram banho. Os prisioneiros eram forçados a falar russo. “Como nasci na União Soviética, falo russo, mas os rapazes mais novos têm dificuldade e eles batiam-lhes quando falavam ucraniano; obrigavam-nos a falar russo”, conta Yurii. Além disso, acrescenta, “diziam coisas como: nós somos irmãos, mas vocês são irmãos maus, sempre a puxarem-nos para a guerra”. O calor, a falta de higiene, os ferimentos, tudo pesou. As duas semanas pareceram meses.
Mas, a dois dias do Ano Novo (e a nove do Natal Ortodoxo), chegou o momento da libertação. Yurii e Bogdan foram então colocados num camião de transporte militar. Dá-se a troca algures em Bakhmut: ambos começam por relatar que são 50 para cada lado (cinquenta ucranianos por troca com cinquenta russos). A meio das declarações sobre o momento — como se se lembrassem de indicações superiores — emendam ambos e Yurii diz que foram “25 russos por 50 ucranianos” e Bogdan “mais ucranianos que russos”. O Observador entende que as primeiras declarações de ambos foram mais genuínas (as que dão conta de uma troca equitativa), mas não tem meios de comprovar qual dos números está correto.
Durante o processo, ainda do lado inimigo, ambos ouviram os Wagner a pedirem pela rádio que houvesse um cessar-fogo. Que foi respeitado pelos dois lados. E nova ordem: “Troca“. E assim foi. Com os saudáveis a carregar os feridos. Bogdan conta: “Quando houve o cruzamento a meio com os russos [que estavam detidos pelos ucranianos], dissemos olá”. Yurii emociona-se ao contar como foi ver, ao fim de um quilómetro, camiões Ford, “todos novos” (provavelmente cedidos por parceiros da NATO) e os acolhedores camaradas de armas. “Venham, rapazes, está tudo bem”.
Havia pequenos presentes à espera de quem tinha estado privado de tudo. “Quando chegámos, deram-nos para as mãos bandeiras da Ucrânia, desenhos que crianças fizeram para nós, cigarros e um telefone com um cartão SIM para ligarmos à família”, conta o soldado agora retirado. “Foi uma grande alegria, abraçámo-nos. Gritou-se ‘Glória à Ucrânia’, ‘Glória aos Heróis’”.
Dali, foram os dois conduzidos para um lugar seguro e, quando chegaram, conta Yurii, “estavam lá os serviços de inteligência, os SBU”. A ideia era que começassem a dar informações que ajudassem na linha da frente. Serhiy, o único (outro) sobrevivente do batalhão de Yurii e outros feridos mais graves seguiram de helicóptero para Kiev. Já Yurii e Bogdan foram levados para um hospital só para militares na zona de Dnipro. Yurii pôde concretizar o seu maior desejo, que se tornou quase uma obsessão durante o cativeiro: “Estávamos a morrer de fome, só pensava em comer maçãs“.
Bogdan disfarçou a tatuagem que os Wagner lhe tinham feito, transformando-a numa pomba da paz.
Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Outras marcas são mais difíceis de disfarçar.
Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Foi por insistência do próprio que Yurii foi parar à frente de batalha. Mas, agora, não pode voltar nem para a guerra nem para a vida que tinha antes.
Foto: JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR
Yurii regressou, mas já nada estava igual. Quando chegou, a mulher avançou para o divórcio. A debilidade física e o facto de ter “dois filhos gémeos de 12 anos portadores de deficiência” de quem tem de cuidar são as razões pelas quais diz que não pode voltar a combater. “Eles precisam de pessoas saudáveis. No exército, a arma ou a pá é praticamente igual. Sem a pá, não consegues sobreviver durante muito tempo. Tu precisas de cavar, algo que não consigo neste momento. Se fosse, ia simplesmente ser um peso”, justifica.
O cativeiro de Bogdan também lhe veio agarrado à pele: continuava com o nome dos seus carcereiros no peito. Depois de 10 dias hospitalizado em Dnipro, voltou a casa, em Sumy, e combinou de imediato uma viagem a Kiev para disfarçar a tatuagem. Uma amiga voluntária levou-o até a uma loja de tatuagens e pôde tapá-la no mesmo dia. O “Eu amo os Wagner” em russo foi substituído por duas mãos com um terço e uma pomba da paz.
Yurii e Bogdan foram torturados num primeiro momento, mas depois tratados por russos. Experiência contrária teve Valentina Nahorna, enfermeira ucraniana que, por um espírito de missão, teve de curar e cuidar de soldados Wagner capturados.
Wagner
É uma lição que fica da linha da frente: o ponto de encontro marcado nunca é o destino final. A 3.ª Brigada de Assalto, uma ramificação do Batalhão Azov, é tão profissional que tem assessoria de imprensa. A comunicação desta unidade — que foi formada a partir de veteranos do exército do Azerbaijão e que tem uma ligação umbilical com os Azov que combateram em Azovstal — apontou uma localização para o encontro com o Observador: a bomba de gasolina em Donetsk onde Zelensky se tinha encontrado semanas antes com militares na última visita que o presidente ucraniano fez ao Donbass. Na loja de conveniência, onde Zelensky tirou várias selfies com militares, havia souvenirs para todos os gostos, desde papel higiénico com a cara de Putin a sinais que diziam “Proibido russos”. Mas da enfermeira com quem o Observador marcou encontro, nem rasto.
Os postos de abastecimento no Donbass estão cheios de militares a descansar ou a comprar comida — algo que é conhecimento do inimigo. As forças russas, explicam operacionais do terreno, evitam bombardear bombas de gasolina, pois precisam das infraestruturas para se poderem abastecer se um dia conquistarem aquele território. Por isso, as tropas de Moscovo vão preservando as bombas de abastecimento e a Ucrânia aproveita os espaços como zonas mais seguras. Sempre com a consciência de que, por aquelas bandas, nenhum lugar é seguro. Os jornalistas do Observador recebem uma nova localização, a alguns quilómetros dali, ainda mais perto da linha da frente. Pelo caminho há tanques a acelerar e até equipas de artilharia prontas a disparar.
Valentina Nahorna começa por pedir que não se fotografe nada que identifique o espaço e a conversa acaba por decorrer num abrigo de betão. A enfermeira desta brigada Azov trata de situações de emergência que chegam das batalhas ali bem perto, na zona de Bakhmut. Faz suturações e outros procedimentos de trauma essencialmente a soldados ucranianos, mas também é chamada a cuidar do inimigo — e já tratou “uma dezena de Wagners”.
Há um dilema moral, que Valentina Nahorna não esconde ter quando lhe aparece um russo à frente. “Honestamente, não tenho vontade nenhuma de os ajudar, porque se vieram para a nossa terra, basicamente deviam ficar cá”, confessa. Mas depois há um sentido de missão: “Tento não pensar e simplesmente faço o que é preciso fazer”.
A enfermeira, tratada pelos outros soldados como “médica”, garante: os russos “têm exatamente o mesmo tratamento que os nossos rapazes [os soldados ucranianos], a única diferença é que só vamos cuidar do inimigo quando os nossos já têm todo o tratamento”.
Valentina Nahorna tem a alcunha de Valkyria e coloca no Instagram fotografias dos cuidados médicos que faz. É uma pequena estrela entre os militares: tem 19,1 mil seguidores. Partilha imagens de crânios abertos, de abdomens esventrados, mas sempre com uma confiança inabalável: “Ele vai ficar bem”; “Todos vivos”; “Estamos a trabalhar para que ele possa ir tomar o pequeno almoço com a mulher”. O tom é de superação e heroísmo, que contrasta com o lado mais sádico com que trata o inimigo. Depois da entrevista, Valentina faz chegar ao Observador fotografias que não colocou online: são selfies com combatentes do grupo Wagner que tratou.
Valentina garante tratar os soldados russos da mesma forma que os ucranianos.
Foto: VALENTINA NAHORNA/DR
Às vezes, os soldados dizem-lhe que vão voltar para apanhar os ucranianos.
Foto: VALENTINA NAHORNA/DR
As fotografias são uma forma de se lembrar dos soldados que tratou.
Foto: VALENTINA NAHORNA/DR
A aranha tatuada no ombro deste soldado é um símbolo bastante comum entre os antigos prisioneiros russos.
Foto: VALENTINA NAHORNA/DR
“Já recebemos aqui Wagners, mas são principalmente zeksZek é o nome dado a prisioneiros russos. O termo era usualmente mais utilizado para os prisioneiros dos gulag soviéticos, mas tem sido utilizado por ucranianos referem-se assim aos prisioneiros que combatem pela Rússia na Ucrânia (quer como K nos Wagner, quer na divisão Storm Z). [o mesmo que os K] e eram quase todos de Voronej [cidade russa]”, conta. Valentina explica que “90% dos doentes inimigos” que trata “mostram arrependimento” e só “um ou outro” é que foi “mais idiota” e disse que veio “pela adrenalina”. Ou ainda outro da mesma classe de “idiotas” que, já depois de tratado e enviado para a “próxima etapa”, disse: “Nós vamos voltar para vos apanhar”.
A maioria deles, porém, dizem que “não queriam ir para a guerra, mas foram obrigados”, “agradecem muito” e “até choram” por serem “tão bem tratados”. “Vocês tratam-nos melhor do que os nossos médicos”, diz a enfermeira dos Azov ter ouvido dos combatentes Wagner de quem cuidou.
O vermelho, o negro e o branco do logótipo do grupo Wagner é associado às cores da bandeira da Alemanha nazi, que era vermelha e tinha a suástica a negro sobre um círculo branco. No caso dos Wagner, as cores não têm o mesmo simbolismo que Hitler descreveu no “Mein Kampf”, mas a inspiração vem daí.
Yevgeny Prigozhin, que sempre teve ambições políticas fortes, acabaria por polir o símbolo que colocou na sede de São Petersburgo. Nesse caso, o logótipo da empresa era apenas negro com letras brancas, com o W grande e sem qualquer desenho.
PMC: o símbolo do grupo Wagner tem não apenas o nome da organização em russo, como a designação que o grupo paralimitar tinha para o mundo. Tanto o líder Prigozhin, como o comandante militar Utkin, faziam questão de utilizar a designação completa, que incluía a sigla PMC. Significa Private Military Company em inglês, no esforço do grupo de ser facilmente reconhecido e identificado a nível internacional como a norte-americana Blackwater.
Mais uma curiosidade: quando, já em 2023, foi registada uma entidade legal na Rússia e os Wagner passaram e ter sede em São Petersburgo, essa sociedade anónima (que tinha Prigozhin como CEO) tinha o nome de “PMC Wagner Center”. A sigla PMC voltava a estar presente.
Wagner Group: a seguir às iniciais que indicam o core da organização, vem então o nome do grupo. A escolha deve-se ao seu fundador e cérebro militar. Dmitri Utkin tinha como nome de guerra “Wagner”, numa homenagem ao compositor favorito de Hitler.
Utkin era assumidamente fã e saudosista do nazismo, tendo tatuagens com símbolos que o comprovavam. Há, por isso, no nome uma inspiração nazi. Não significa que todos os mercenários sejam neonazis, mas o próprio ex-combatente Wagner com quem o Observador falou admitiu que vários colegas defendiam ideologias nazis e, ele próprio, tem suásticas no braço.
Группа Вагнера: significa “Grupo Wagner” e está escrito em russo. É curioso que, na versão russa, os Wagner dispensam a designação de que são um grupo privado militar. Para os russos, os Wagner sempre tiveram ambição de ser mais vistos como heróis do que como mercenários.
Totenkopf: a caveira que se vê no centro do logótipo é um símbolo nazi. Os militares das SS (Schutzstaffel, braço armado de Hitler) utilizavam o totenkopf (cuja tradução literal é cabeça (kopf) de morto (toten) como símbolo. Uma das 38 divisões das SS, a 3.ª, chamava-se mesmo Divisão Totenkopf e tinha um crânio no símbolo, que agora aparece no símbolo dos Wagner (com a diferença de que não tem os pequenos ossos e tem um sorriso). Oficialmente, o grupo não assume esta ligação à simbologia nazi, mas Utkin não o escondia e terá sido ele a fazer o logótipo do grupo.
A mira que se vê no logótipo não tem um significado especial, mas apenas aponta para o lado belicista e militar do grupo.
Muitas vezes, Valentina consegue obter “informações úteis” dos doentes inimigos sobre “as posições onde estavam localizados e o tipo de equipamento que utilizavam”, mas confessa que não tem instruções específicas dos SBU para extrair informação. “Em geral, os nossos rapazes [dos serviços de inteligência] levam-nos para outra sala e é lá que eles falam”, explica.
A enfermeira dos Azov diz ao Observador que as situações mais “assustadoras” que vive não são aquelas em que tem de “colocar um intestino para dentro”, mas sim aquelas em que “trazem os teus amigos em sacos”. Conta, para balançar, um momento de felicidade: “Quando Prigozhin morreu, simplesmente rimo-nos. Só isso. Porque os russos são todos malucos, mesmo que Putin morra, [os russos] vão continuar a atacar-nos e a querer destruir-nos”. Sobre a longevidade do conflito, Valkyria, que está no local onde os combates são mais complicados nesta fase da guerra, mostra-se pessimista: “Isto vai durar muito tempo”.
O caminho para ali chegar foi quase tão sinuoso como o quotidiano que agora vive. Valentina era manicure e estava de folga no dia 24 de fevereiro. “A minha mãe não parava de gritar que a guerra começou”, conta. “Levantei-me calmamente, fiz o meu pequeno almoço, tomei banho, fiz a mochila e mandei mensagem aos meus amigos dos Azov: ‘Estou pronta, o que preciso fazer?”. Às 10h00 já estava numa base numa fila de recrutamento, mas disseram-lhe: “Não estamos a recrutar mulheres“.
A então manicure, que estava a estudar para técnica de desenvolvimento farmacêutico, é, após insistência, encaminhada para um mini-curso de primeiros socorros, onde aprendeu o protocolo M.A.R.C.H.Em situação de emergência, no domínio da traumatologia, o protocolo M.A.R.C.H. pode ser a diferença entre a vida e a morte, já que prioriza aquilo que o socorrida deve fazer. Cada letra é uma ação M, de Massive hemorrhage (controlo de hemorragia massiva, através de torniquete), A, de Airway (em que deve abrir e manter a via aérea), R, de Respirations (deve assegurar-se a ventilação e depois a oxigenação), C, de Circulation (assegurar a circulação) e por último o H, de Hipotermia (para controlar a temperatura corporal).. A partir daí foi para a frente de batalha, fez vários cursos e agora é uma espécie de cirurgiã na primeira linha. Só vai a casa a espaços, mas agora — fazendo parte da brigada que está na contra-ofensiva no Donbass — não visita a mãe desde maio.
Valentina apressa-se, no fim da entrevista, a seguir para o hospital de campanha, de localização secreta, que recebe todos os feridos da zona de Bakhmut. Não tem planos para os próximos meses. Nem anos. “Vou ficar pelo exército muitos anos”, reitera, na previsão de uma guerra longa. Mas não deixa de sonhar: “Quando a guerra acabar quero abrir uma cafetaria em Kiev”.
A enfermeira Azov só tem 28 anos e um futuro pela frente, mesmo que em muitos dias se choque ao saber que “morreu alguém com quem esteve à mesa dias antes”. Está nas imediações de Bakhmut, de onde promete não bater em retirada. Assume posições onde antes havia civis, como Tamara Nesterova, de 78 anos, que fugiu dos mísseis russos e dos Wagner depois de a sua casa ser destruída.
Wagner
Quase quatro meses depois do início da Batalha de BakhmutTida como uma das batalhas mais importantes no Leste da Ucrânia, começou a 1 de agosto de 2022 e, no entendimento ucraniano, ainda não terminou. Os russos afirmam ter capturado a cidade a 21 de maio de 2023, numa conquista realizada pelo Grupo Wagner. Prigozhin chegou a gravar um vídeo no centro da cidade, que — como o Observador verificou no terreno — continua ocupado por tropas russas. Kiev ainda mantém, como o Observador também verificou, várias zonas dos subúrbios da cidade sob controlo. A retirada forçada do centro de Bakhmut foi um dos maiores revés da Ucrânia desde o início da guerra. a rua já tinha ficado quase vazia. Os vizinhos não aguentaram o som constante das bombas e fugiram. Tamara Nesterova, de 78 anos, resistia — até porque não tinha para onde ir. E não tinha onde deixar a irmã, de 83 anos, que precisava de cuidados médicos e andava, a custo, com o auxílio de um andarilho. Mesmo com as bombas a explodir “a norte e a sul”, Tamara simulava a normalidade e estava a ler o jornal alto à irmã (que estava “boa de cabeça”) antes de ambas irem dormir. Despediu-se com um “boa noite” e foi para o quarto.
Por volta da meia-noite do dia 10 de novembro de 2022, Tamara sentiu um cheiro estranho. Dormia com a cabeceira da cama encostada ao quarto da irmã que, “se fosse preciso alguma coisa, batia na parede”. Percebeu que não havia luz e ligou a lanterna. Estava muito quente e viu que, no quarto da irmã, havia um “buraco com um metro de diâmetro a arder”. A própria irmã já estava no meio das chamas e Tamara teve de fugir para a rua, enquanto via o fogo a destruir a casa que o pai de ambas construira 80 anos antes, quando Bakhmut ainda tinha o nome soviético de Artemovsk. “Aquilo foi talvez uma bomba de fósforo, embora um rapaz me tenha dito que foi um drone. Os bombeiros quando lá chegaram encontraram o corpo da minha irmã queimado e a casa ainda ardeu durante dois dias”, conta, emocionada.
Tamara saiu de casa apenas com a bata que tinha no corpo e foi abrir a porta do galinheiro que existia na parte exterior da casa. “O galo fugiu, mas as galinhas morreram queimadas”. Com 78 anos, ainda aguentou ali horas. “Fiquei sentada durante a noite abraçada ao meu gato num celeiro que tínhamos no quintal até de manhã”, recorda. Ficou até o galo cantar mas depois tinha de descansar e foi acolhida por alguns dos poucos vizinhos que ainda resistiam naquele bairro. Enquanto isso, a casa continuava a arder.
Lamenta nunca se ter despedido da irmã: “Há dois cemitérios em Bakhmut: um na cidade e outro novo, mais lá para cima. Enterraram a minha irmã no novo, porque o outro já estava ocupado, mas nem para esse me deixaram passar. Não sei onde a enterraram“. Continuou a resistir. Já não tinha casa, mas ainda tinha um sentido: alimentar o galo, dois cães, também sobreviventes, e um gato. Mas um dia avisaram-na: “Tem mesmo de sair”. O inimigo estava a aproximar-se e foi levada para Slavyanka. Nunca mais voltou a casa.
Sobre os mais responsáveis pelo fim da vida como a conhecia, pouco sabia antes da guerra. “Para mim, Wagner só conhecia o compositor“, atira. Mas depois começou a ouvir falar deles: “Contaram-me que escreveram no nosso teatro lá em Bakhmut com letras grandes a palavra ‘Wagner’”.
Depois de mais de um ano de combates intensos, a destruição na cidade de Bakhmut é quase total.
Foto: Libkos/Getty Images
A cidade não tinha nenhum valor estratégico à partida, mas tornou-se fundamental para cada um dos lados poder declarar uma vitória.
Foto: Libkos/Getty Images
Em maio, o então líder do grupo Wagner, Prigozhin chegou a declarar a conquista da cidade, mas a região continua a ser alvo de batalhas intensas sem um vencedor claro.
Foto: Libkos/Getty Images
O que ficou por conquistar é uma imensidão de ruínas.
Foto: Libkos/Getty Images
Apesar do que sofreu, a Rússia é um inimigo difícil de odiar. Tamara fala russo e nasceu na União Soviética. “Eu tenho familiares na Rússia. Antes [na URSS] estávamos todos unidos”, conta. Quando casou, esta antiga técnica de telecomunicações (também foi telefonista e gestora de um centro cultural) foi viver na RDA, a Alemanha Oriental, já que o marido, que era militar, foi destacado para a metade da Alemanha controlada pela União Soviética.
Nessa altura, viveu a primeira experiência de uma Europa dividida entre soviéticos e ocidentais, mas estava então no mesmo lado de Moscovo. Por tudo isso, explica: “Eu não odeio o povo russo”. Sobre o regime de Putin já ensaia uma crítica, ainda que ténue e com correção: “É difícil ter sentimentos positivos relativamente [ao Governo da] Rússia”.
Tamara vive agora nos arredores de Kiev. Na verdade, quando foi trazida do Donbass, foi levada para um dormitório universitário, onde não havia privacidade e tinha de partilhar quarto com dezenas de outras pessoas. Uma vez, na rádio, começou a passar uma música russa de Alupka (cidade na Crimeia) que costumava cantar com a irmã. “Não aguentei e comecei a chorar. Sou uma chorona”. Sentia-se sozinha e exposta, até que um grupo de voluntários a fez chegar a uma família de acolhimento, onde se sente confortável. “Estou bem aqui, mas não sei até quando posso ficar”, conta.
Sobre o regresso a casa, diz: “Eu quero voltar, mas não tenho para onde”. Seis meses depois de Tamara abandonar Bakhmut, o então líder dos Wagner fez um vídeo do centro da cidade a dar conta do “controlo total”. Entretanto, Prigozhin morreu. Mas a esperança de Tamara em voltar a casa também. Na guerra dos Wagner, só há derrotados.
Reportagem
Rui Pedro Antunes e João Porfírio
Produção
Iaroslav Oliinyk
Tradução
Tania Oliynyk
Texto
Rui Pedro Antunes
Fotografia e vídeo
João Porfírio
Web design
Miguel Feraso Cabral
Edição multimédia
Teresa Abecasis
Imagens de arquivo
Alamy e Libkos/Getty Images
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