O mundo em que vivemos “está a mudar a um ritmo nunca dantes visto”, sendo nós inundados por “quantidades assombrosas de dados, de ideias e de promessas”, salientando-se “o desenvolvimento ingovernável das tecnologias contemporâneas, em especial das tecnologias da informação e da inteligência artificial”, às quais se associaram a biologia e as nanotecnologias.

Encontramo-nos num contexto cultural novo, complexo e difícil, num “contexto descomandado”, com problemáticasque revelam a necessidade de procurar respostas para o desafio antropológico colocado à actual crise de orientação da cultura científica e tecnológica, em questões ligadas às neurociências, à bioética e à biotecnologia.

Exige-se, assim, uma profunda e urgente reflexão e uma tomada de posição,por parte,não só de cientistas e investigadores (a quem cabe uma grande responsabilidade ética, como exigência interna à própria investigação), mas tambémde filósofos, de políticos, de agentes sociais e de educadores.

Em ordem à instauração da verdade e a um compromisso responsável, é precisoanalisaras presentes revoluções científicas e tecnológicas, bem como as ideologias e as “correntes de pensamento extremamente influentes no actual contexto cultural”, isto é, as “marcas” vindas, quer da modernidade/iluminismo, quer da pós-modernidade.

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O predomínio da racionalidade tecnocientífica, orientada para o matematizável, para o calculável, para o imediato e para o pragmático, convida a relegar para segundo plano o simbólico, o relacional-ético e tudo aquilo que nos remete para a esfera do sentido e do ser. Sublinhe-se a notória tendência em afastar Deus ou as grandes narrativas na fundamentação do Bem.

Com a crise da razão, com o individualismo,com a alteração de conceitos e com a “relativização difusa de valores” que conduz a uma banalização das orientações e das decisões a tomar, à denominada “era do vazio” (que prescinde de normas e da busca da verdade), resta, apenas, a gestão da incerteza e um “niilismo existencial”.

Relativamente ao enorme progresso científico e tecnológico que tem vindo a desenvolver-se a partir das últimas décadas do século XX e, sobretudo, ao avassalador peso das novas tecnologias, sem menosprezar os seus aspectos positivos, há que atender às consequências negativas que delas derivam para os vários domínios da vida humana, afirmando-se já que “a crise das ciências sociais e humanas é o contravalor deste aparente sucesso tecnológico”.Foi, assim, preparado o terreno cultural para um “totalitarismo tecnocientífico”, apoiado financeiramente por grandes grupos, induzindo a “ideologia trans-humanista”.

Esta nova ideologia, que se vê a si própria como um novo movimento de libertação, tem, no centro dos seus valores, a autonomia (autonomia da pessoa, autonomia parental), escolhas pró-criativas e a modificação do próprio corpo; acredita no poder da acção directa sobre os mecanismos da vida e vê a morte não como um problema metafísico, mas “como um problema técnico que pode e deve ser resolvido”.

O “trans-humanismo” é um movimento cultural, intelectual e científico, racionalista e materialista, baseado na premissa de que a espécie humana, na sua forma actual, não representa o fim do nosso desenvolvimento, mas “uma etapa relativamente preliminar”; entendendo que o humano está em perpétua evolução, julga ser possível e desejável intervir, voluntariamente, nessa evolução, através da ciência e da técnica.

Evoluindo com as tecnociências, os seus instrumentos e os seus conceitos operatórios, o “trans-humanismo” pretende eliminar os aspectos não desejados da condição humana, inclusive a condição mortal; pretende, assim, vencer todas as fragilidades, lutando contra a finitude, melhorando, acrescentando e ultrapassando as actuais capacidades dos seres humanos, quer físicas, quer intelectuais, quer psicológicas e, por fim, vencer a própria morte.

A “utopia trans-humanista” reside no facto de se considerar o progresso como uma transformação da nossa concepção de vida e da própria “condição humana”, a fim de se obter um outro ser humano, um “homem novo” (o “trans-humano”). A inteligência artificial dirigirá o futuro deste homem robotizado, geneticamente modificado, o homem aumentado,uma espécie de ser que é, ao mesmo tempo, biológico e tecnológico, um “ciberorganismo”. 

Atingindo a natureza humana na sua “ipseidade”, aquilo que no “trans-humanismo” está posto em questão é o que nos define como seres humanos, uma preocupação que faz parte da história da humanidade, já presente em narrativas de tempos ancestrais. Refira-se o mito de Ícaro, mito no qual se entrelaçam duas perspectivas da natureza humana, a sua grandeza, até divina, e, ao mesmo tempo, a sua fragilidade. Ícaro, filho de Dédalo, descendente de Zeus, para fugir a um castigo, voou entre o Sol e o mar, com asas artificiais, coladas com cera para serem perfeitas. Porém, contra a recomendação do pai, aproximou-se demasiado do Sol. Deslumbrado com a bela imagem, sentiu-se, primeiramente, como deus, mas as asas derreteram-se e caiu no mar.

Na ânsia do seu endeusamento, de se tornar “homem-Deus”, “o homem trans-humanista”, ao querer sair dos seus limites, exercendo o poder da acção directa sobre os mecanismos da vida, através da tecnologia,pode cair na sua destruição; ao querer fazer-se “sobre-humano, desumaniza-se”. Segundo Pascal, aquele que “não é nem anjo, nem besta e que quer fazer o anjo, faz a besta”.

Encontramo-nos perante, não só, possibilidades, mas também, ameaças, dificuldadese problemasque emergem, no nosso mundo, como desafios com os quais temos de lidar com sabedoria, de modo a desenvolver as nossas capacidades, sem deixarmos, contudo, de nos  proteger dos “perigos inerentes ao nosso próprio poder”.

Neste sentido, em Maio de 2014, Stephen Hawking, um dos mais famosos físicos da actualidade, falecido no passado mês de Março, “avisa-nos das consequências irreversíveis da inteligência artificial”. No seu entender, “as tecnologias desenvolvem-se a um ritmo tal que, em breve, se tornarão ingovernáveis, podendo mesmo pôr em risco a humanidade. Hoje, ainda estaríamos a tempo de deter este processo; amanhã, será demasiado tarde!”. E, em Dezembro do mesmo ano, refere que “a inteligência artificial poderia conduzir à extinção da raça humana”.

EmJaneiro de 2015, importantes investigadores da inteligência artificial convidavam “à reflexão sobre os potenciais perigos dos computadores”, tomando em consideração “o bem-estar último dos homens e os benefícios para o conjunto da sociedade”.

Perante “os extraordinários progressos em matéria de inteligência artificial”, outros cientistas de renome lançam alertas: “as faculdades de aprendizagem automática das máquinas alimentadas por quantidades colossais de informação torná-las-ão, em breve, imprevisíveis”; e “a essa imprevisibilidade soma-se a sua crescente autonomia que faz com que nos escapem e exerçam um domínio cada vez maior sobre o homem. Então, chegaremos a um ponto de não retorno, além do qual nós, os seres humanos, correremos para uma catástrofe”. E apelando para a urgência de nos preocuparmos com isso, afirmam que seria “uma loucura optarmos por nos desinteressar deste problema”.

Vários pensadores e filósofostêm alertadopara o “declínio do ocidente” que tem vindo a transformar-se, progressivamente, numa “cultura dominada” epara os perigos que, perante a actual orientação da cultura científica e tecnológica, correa civilização europeia.

Martin Heidegger antevia já, nos meados do século passado, a situação da sociedade em que “a tecnologia e o dinheiro tivessem conquistado o mundo” e chamava a atenção para o perigo da tecnologia, considerando, como seu significado fundamental, a mudança de posição do homem no mundo; remetendo-nos para o futuro do ser humano, no âmbito da nossa civilização, referia tratar-se de saber se ainda continuaríamos a ser humanos, numa era em que a tecnologia “instrumentalista” passava a ser mais importante do que o próprio homem.

George Orwell fez um aviso à sociedade controlada pelo progresso científico e tecnológico. Imaginando a sociedade do futuro, apresenta-no-la como “Uma nova sociedade, em marcha: o reinado da Máquina, que tudo faz, tudo resolve e tudo prevê e em que o homem é dispensado de pensar”, devendo ser “nada mais do que uma das peças da gigantescaMáquina”.

Jürgen Habermas critica, na sociedade actual, a existência de um certo modernismo “ideológico” que hipostasiou a ciência ao fazer dela o equivalente de uma nova fé que busca, na ciência e na técnica, a resposta para todos os problemas dos homens, adquirindo a função legitimadora que outrora era determinada pela religião ou pela metafísica, até ao ponto de aparecer como a única actividade dotada de sentido; recentemente, lançou um grito sobre “a encruzilhada em que se encontra a Europa” e expressou a sua inquietação sobre o futuro da espécie humana; referindo-se à crise da humanidade europeia e aos recentes avanços da biotecnologia que estão na origem das “grosseiras manipulações do ser humano”, critica o desenvolvimento desumanizado da ciência e da técnica, fruto da acção de investigadores ou de cientistas desprovidos de moral e, até, de conhecimento; considera que a natureza humana é constituída por certas características que conferem ao humano vulnerabilidade e precariedade, mas que servem de firme fundamento para as nossas intuições morais, os nossos vínculos sociais e a nossa auto-compreensão ética enquanto espécie, bem como para a autonomia, para a dignidade e para a autenticidade humanas;principalmente preocupado com os limites daquilo a que chama “eugenia positiva da natureza humana interna”, sublinha que esta não pode ser considerada como uma “massa a modelar”, susceptível de manipulação e de design tecnocientíficos, programando a sua configuração futura.

Na verdade, a ciência e a técnica, como qualquer outra actividade humana, têm consequências que devem ser ponderadas e limites que devem ser observados, a bem da própria humanidade. Requer-se, por isso, um espírito crítico e uma responsabilidade ética, no sentido de uma clarificação de valores e de normas, fundadas em virtudes essenciais ao desenvolvimento humano, quer a nível individual, quer social.

Torna-se, assim, urgente examinar as consequências irreversíveis e “os riscos que as máquinas implicarão para o homem, no futuro”, máquinas “que se criarão, crescerão e multiplicarão, que nos engolirão, primeiramente de uma forma imperceptível, mas, depois, de uma forma acelerada”.E o maior risco do actual aventureirismo tecnológico, desenvolvido pelo “trans-humanismo” (movimento já em desenvolvimento), é a saída programada e deliberada da condição humana.

Como afirmámos, é um facto que as tecnociências pretendem dominar a cultura ocidental; porém, os resultados a que tem chegado esta “mentalidade tecnológica”, com os novos dogmas do progresso e do tecnicismo, abrem caminho a uma discussão necessária acerca da melhor forma de compreender e de agir sobre a natureza como um todo e, de modo particular, sobre a natureza humana.

Perante os “logros do progresso científico-técnico” ea complexidade crescente das questões que rodeiam o homem contemporâneo, é preciso “medir sem demora os riscos que corremos e travar, ou até desviar, o curso do progresso”. É, por isso, urgente pensar-se se aquilo que parece ser “progresso” não será, afinal, um “retrocesso civilizacional”.

Professora da Universidade Nova de Lisboa