Em Inglaterra, no início do século XIX, trabalhar 15 horas por dia era considerado normal para um adulto; uma criança trabalhava 12 horas por dia. Quando algumas vozes começaram a sugerir que talvez estas jornadas fossem algo exigentes, logo outras se opuseram: o trabalho impedia que os adultos se entregassem à bebida e as crianças à malfeitoria.

Na base deste argumento podemos encontrar várias crenças, mas aquela de que me pretendo ocupar neste texto é a seguinte: dispondo de mais tempo livre, não seremos capazes de encontrar formas saudáveis de o ocupar.

É uma teoria que tem vindo à superfície no contexto da discussão sobre a semana de quatro dias. À medida que empresas e governos em diferentes partes do mundo vão testando este modelo, começam a surgir avisos de que talvez os participantes nos programas-piloto não saibam o que fazer com o tempo que ganharam.

Há mesmo quem veja nesta aparente hesitação mais um argumento para convencer empresários relutantes e verbalize o que provavelmente estaria na mente de Henry Ford quando em 1926 reduziu a semana de trabalho de seis para cinco dias: trabalhadores desocupados são consumidores em potência.

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Seremos então incapazes de nos ocuparmos (ou de nos mantermos desocupados) de formas não relacionadas com o trabalho, com o consumo ou com a transgressão? Admiti-lo seria, como escreveu Bertrand Russell em 1932, a condenação da nossa civilização.

Parece-me no entanto que a realidade não confirma esta visão. Analisando relatos de participantes nas experiências em vigor, eis um retrato da forma como têm ocupado o seu “dia extra”:

A alimentar as suas relações

  • Levar e ir buscar os filhos à escola
  • Passar tempo com o/a companheiro/a
  • Marcar encontros com familiares, colegas e amigos

A descansar e cultivar os seus interesses

  • Participar em atividades que permitam desenvolver as suas capacidades (ex. tocar um instrumento, aprender uma nova língua)
  • Começar novos hobbies
  • Viajar
  • Ir ao ginásio
  • Visitar um museu ou fazer outra atividade cultural
  • Dormir até mais tarde
  • Relaxar e ler um livro

A realizar tarefas de manutenção

  • Fazer tarefas que habitualmente ocupavam parte do fim-de-semana (compras de supermercado, limpezas, cabeleireiro)
  • Recuperar compromissos pessoais adiados por falta de tempo (ex. check-up médico anual)

É importante referir que nem todos os participantes ocupam exclusivamente o seu dia livre com atividades de âmbito pessoal: há quem dedique parte desse tempo a gerir atividades relacionadas com trabalho, como resolver temas que ficaram pendentes, recuperar informação que não foi possível acompanhar ou preparar a semana seguinte.

Ainda assim, todos os que o fazem afirmam sentir uma redução da pressão no dia-a-dia, porque sabem que têm tempo sem reuniões e interrupções para absorver o impacto de imprevistos que possam surgir durante a semana, mas também para passar os temas em revista e planear próximos passos.

Em 2011, na empresa brasileira Semco foi criado um programa experimental que permitia aos colaboradores reduzir a semana de trabalho para quatro dias, a troco de 10% do seu salário. Ao refletir sobre a experiência, o empresário Ricardo Semler observava que as atividades a que as pessoas decidiram dedicar-se não eram tão inspiradoras como ele antecipava.

Em vez de praticar mergulho ou alpinismo, os colaboradores optaram por pôr a leitura em dia, inscrever-se em cursos online ou aprender um novo instrumento. Parecem-me ótimas formas de passar o tempo, mas talvez seja só eu.