Parece uma memória distante, mas não foi assim há tanto tempo que o programa de sexta-feira à noite passava por dar um salto à Blockbuster para alugar uma cassete de vídeo – e trazer umas pipocas de consolação quando não encontrávamos o filme que queríamos.

Felizmente agora temos a Netflix – e a HBO, a Amazon Prime, a Disney+… – e todos os filmes e séries à disposição, a qualquer momento, na televisão, computador ou smartphone, e ainda por cima, pagando mensalmente pouco mais do que o preço de um aluguer na Blockbuster de outros tempos.

Uma “indústria” que praticamente não muda há mais de mil anos vai sofrer um grande abalo. Daqui a dez anos veremos que universidades souberam encontrar um nicho para sobreviver num ecossistema que vai mudar muito

É um nível de serviço incrível, que aliviou a quarentena de muita gente, mas que também deixou muitas vítimas pelo caminho: desde logo a Blockbuster, que faliu em 2010, mas também muitas salas de cinema que fecharam e a televisão tradicional que continua com muita dificuldade em reiventar-se de forma sustentável.

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Acreditamos que as universidades vão sentir o seu “momento Netflix” muito em breve. Uma “indústria” que praticamente não muda há mais de mil anos vai sofrer um grande abalo. Daqui a dez anos veremos que universidades souberam encontrar um nicho para sobreviver num ecossistema que vai mudar muito e quais as que ficaram pelo caminho.

1 A ameaça – concorrência global na educação online 

Nos últimos três meses, universidades de todo o mundo tiveram que reagir à pandemia covid, fechando os seus campus e passando a ensinar online. Foi uma mudança forçada, de contingência, em resposta a uma emergência. A maior parte transpôs rapidamente a sua atividade para plataformas de videoconferência tipo Zoom ou Teams, fazendo online o que antes se fazia na sala de aula.

Embora esta mudança não pareça especialmente grande, venceu uma enorme barreira na adoção de tecnologia na educação, quer do lado dos alunos quer dos professores. Mudou sobretudo a percepção de que é aceitável ter aulas online, quando antes isso era visto como educação de segunda. Vencida a barreira, vamos assistir nos próximos tempos a uma grande alteração de formatos de ensino potenciados pela tecnologia e veremos uma concorrência internacional acrescida.

Mas não confundamos a versão Zoom de aulas tradicionais com ensino digital de qualidade.

Um amigo aproveitou a quarentena para fazer um curso online em Harvard: com a duração de um mês, coordenado por uma professora famosa e com a participação de CEOs das maiores empresas do mundo. A plataforma de aprendizagem é, segundo ele, “simplesmente fantástica”, permitindo muita interação, discussão de casos e até cold calling. E, no fim, recebeu um diploma de Harvard devidamente emoldurado. A avaliação e correspondente certificação é bem real.

Quem vai fazer um curso numa universidade de segunda linha, quando pode fazê-lo em Harvard a um preço razoável?

Tudo isto por apenas 1,100 dólares – preço muito baixo para um curso de executivos com um mês de duração, praticamente full time – e com mais de 700 alunos de todo o mundo a fazer o curso em simultâneo. O preço que a escala possibilita é imbatível face à alternativa tradicional “ao vivo”.

Perante isto, quem vai fazer um curso numa universidade de segunda linha, quando pode fazê-lo em Harvard a um preço razoável?

Este é um exemplo de formação de executivos que, muito em breve, se vai estender a mestrados e licenciaturas, oferecidos a alunos em todo o mundo. E as universidades de maior prestígio estarão especialmente bem colocadas para tirar partido desta oportunidade: têm marcas mundialmente reconhecidas e têm os recursos para investir.

A educação online tem vindo a ser sistematicamente melhorada do ponto de vista da experiência, com inovações nas metodologias de avaliação, estágios virtuais e simulações práticas de aulas laboratoriais. E o mundo da educação online continuará a evoluir rapidamente nos próximos anos.

Quem sabe se Harvard não decide fazer uma parceria com a Netflix para melhorar o nível de produção de conteúdos? Ou com o LinkedIn para reforçar a componente de networking? Ou com a Microsoft para desenvolver formatos imersivos em realidade virtual?

A criação de bons conteúdos e de uma experiência digital de qualidade exige um grande investimento inicial, mas depois é altamente escalável: pode ser oferecido a grande número de alunos em todo o mundo, a baixo preço. Universidades de segunda linha terão grande dificuldade em competir com formatos online de universidades de prestígio, possivelmente em colaboração com as big tech.

Para além das universidades tradicionais, vamos ver também novos players a entrar no mercado. A Coorpacademy tem um catálogo online, em regime de subscrição mensal, que inclui mais de mil cursos de fornecedores de excelência, multi-língua, permanentemente atualizados, sempre disponíveis. Em Espanha, o “The Power MBA”, captou 35.000 alunos em dois anos. E nem a regulação é uma barreira inultrapassável, a Hyper Island, uma escola inovadora na Suécia, presente em três continentes, contornou a falta de flexibilidade administrativa do seu país, oferecendo licenciaturas certificadas por uma universidade inglesa, país onde a certificação de novos cursos, mestrados e pós-graduações, é mais ágil.

E quanto à relevância da certificação, a verdade é que existem soluções alternativas credíveis de validação de competências que replicam o papel dos diplomas atribuídos por universidades. Vale a pena ver o que começa a fazer o LinkedIn através da ferramenta de certificação lançada no final de 2019.

Em Portugal muitas universidades funcionam como “cooperativas de professores” que pretendem perpetuar o atual modelo, seja por aversão ao risco ou para minimizar o esforço de mudança.

As universidades tradicionais terão que encontrar formas de inovar para resistir a este assalto conjunto. Terão que encontrar vontade e capacidade de experimentar. E terão que ultrapassar as inúmeras barreiras que limitam a sua capacidade de transformação. A educação superior é um ecossistema fechado, protegido por regulação estrita que limita fortemente a flexibilidade de recrutamento de alunos, a atualização de conteúdos e a aposta em experiências formativas diferentes. Em Portugal, por exemplo, a agência A3ES só dá acreditação a cursos superiores que sigam o formato tradicional em termos de números de horas de aulas, rácio de número de alunos por professor, exames, etc, o que praticamente impossibilita a inovação. Por outro lado, o próprio modelo de governance das universidades não as incentiva à construção de uma estratégia diferenciadora. Muitas universidades funcionam como “cooperativas de professores” que pretendem perpetuar o atual modelo, seja por aversão ao risco ou para minimizar o esforço de mudança.

Todas estas barreiras criam condições muito desfavoráveis à evolução das universidades tradicionais e aumentam, a cada dia, o risco da sua sobrevivência a prazo. Já vimos isto acontecer noutras indústrias. Para além da Blockbuster, a Kodak e a Nokia eram empresas muito fortes que desapareceram perante uma disrupção tecnológica. Demasiadas vezes, as organizações só mudam “in extremis”, quando essa mudança já vem tarde para lhes permitir enfrentar os novos concorrentes que entretanto ocuparam o mercado.

Neste contexto, não é difícil de prever que muitas universidades tradicionais venham a perder alunos e sintam muita pressão sobre as propinas que cobram. Muitas vão mesmo desaparecer. Só vão prosperar aquelas que sejam capazes de reinventar a experiência de aprendizagem presencial de tal forma que justifique o diferencial de preço para as melhores ofertas online.

2 A solução – educação transformacional 

A estratégia para estas universidades passa por apostar na componente física, experiencial, presencial da educação e fugir o mais possível da concorrência global no mercado online.

Vimos recentemente uma campanha de intervenção urbana em Lisboa do Tomaz Castelão, JetFighterTom, com o título “Online, Offlife”, com o alerta de que a vida online não substitui a riqueza da vida “onlife”. As universidades devem refletir profundamente neste facto. Aprender é um fenómeno eminentemente social, mas para competir com a alternativa online as universidades têm que melhorar muito a sua experiência de educação presencial.

Não estamos, por isto, a falar de voltar ao formato tradicional de aulas e exames – uma relíquia do passado, quando era o único formato possível – mas sim de repensar profundamente a pedagogia e, sobretudo, a forma de utilizar a tecnologia para melhorar a experiência de aprendizagem presencial dos alunos.

Os formatos de educação que garantem o desenvolvimento das competências do futuro são experienciais e experimentais, personalizados e self-paced, colaborativos e criativos, acessíveis e inclusivos, virados para o desenvolvimento de competências ao longo da vida. Porque só estes formatos preparam as pessoas para um futuro de mudança contínua, capazes de integração rápida em comunidades complexas à procura de soluções para problemas ainda não identificados.

Um exemplo de como a educação pode ser reinventada é a 42, escola com um modelo educativo alternativo onde se aprende entre pares, desenvolvendo projetos reais, suportado por uma plataforma tecnológica inovadora, que gere o progresso na aquisição de competências, integrando ritmos de aprendizagem distintos, apoiando a colaboração entre os alunos e promovendo a motivação contínua.

A 42 é já considerada pela indústria a melhor escola de coding do mundo, tendo-se expandido em 5 anos para quase 20 países. Os empregadores valorizam a maior capacidade empreendedora, a maior capacidade de trabalho em equipa, e a maior agilidade demonstrada pelos alunos desta escola na integração no mundo real do trabalho.

O modelo desta escola distingue-se em várias dimensões. Desde logo pela sua natureza filantrópica, em que os alunos não pagam propinas, sendo a escola inteiramente financiada por mecenas. É também uma escola inclusiva, aberta a todos, que não impõe restrições de formação prévia: qualquer um se pode candidatar, independentemente das suas qualificações académicas anteriores, e a seleção passa por um bootcamp de um mês que avalia não só a capacidade de trabalho e resolução de problemas, mas também a motivação e atitude colaborativa dos candidatos.

O modelo da 42 demonstra a possibilidade de um novo paradigma na formação presencial que promove, simultaneamente, a aquisição de conhecimento e o desenvolvimento das competências essenciais para o futuro.

Finalmente, o método pedagógico é profundamente inovador. É uma escola em que não há aulas, mas sim uma série de desafios aos alunos, cabendo-lhes a eles a responsabilidade de aprender o que for necessário para lhes dar resposta. Isto obriga a desenvolver nos alunos uma grande autonomia e capacidade de trabalhar em grupo. A plataforma que gere este percurso de aprendizagem tem uma progressão de níveis, oferece pontos e badges, junta os alunos em tribos que competem e colaboram. Tem, enfim, os elementos de um jogo de computador, que incentivam os alunos e lhes permitem gerir o ritmo do seu progresso.

O modelo da 42 demonstra a possibilidade de um novo paradigma na formação presencial que promove, simultaneamente, a aquisição de conhecimento e o desenvolvimento das competências essenciais para o futuro.

Prepara os alunos para os novos desafios do mundo do trabalho garantindo que aprendem através da concretização de projetos desenhados em parceria com potenciais empregadores, com regras de desenvolvimento e aprovação que simulam a realidade. Em vez de professores a dar aulas, há uma equipa pedagógica que melhora continuamente o percurso de aprendizagem dos alunos.

Promove a responsabilidade e o empreendedorismo, estimulando os alunos a estabelecer o seu próprio caminho e ritmo de aprendizagem. Garante o saber aprender em contínuo, sem medo do desconhecido, obrigando os alunos a procurar novo conhecimento para resolver os desafios que lhes são colocados, a colaborar uns com os outros e a desafiar-se a chegar mais longe, agregando o que cada um sabe. Desta forma criam-se as bases de uma atitude de lifelong learning e inovação colaborativa.

A 42 exemplifica como a tecnologia permite chegar mais longe na formação presencial do que o modelo de ensino tradicional de aulas e exames. E vai ser possível em breve chegar mais longe ainda. Seja através da captação de dados em tempo real que permitem ajustamentos precisos da experiência de aprendizagem de cada aluno, potenciando a sua produtividade e impacto. Seja através da criação de ambientes de aprendizagem imersivos, com recurso a tecnologias de voz, realidade virtual, jogos e simulação. Seja através do desenvolvimento de espaços flexíveis, interativos e criativos, que garantem maior eficácia, vontade de aprender e interação colaborativa.

Basta pensar que é muito melhor ver um curso em vídeo, bem produzido, com rewind e fast forward, do que assistir a uma aula num anfiteatro com 300 alunos e um professor a escrever no quadro lá bem ao fundo.

Se bem materializada, a experiência do mundo físico continuará a ter maior poder transformador, criativo e colaborativo do que a experiência puramente online. Mas isto não é verdade se as universidades optarem pelo simples regresso ao passado. Basta pensar que é muito melhor ver um curso em vídeo, bem produzido, com rewind e fast forward, do que assistir a uma aula num anfiteatro com 300 alunos e um professor a escrever no quadro lá bem ao fundo.

Mudar a universidade exigirá recursos e um espírito empreendedor, com coragem para experimentar novos formatos e capacidade para ultrapassar as barreiras à inovação. No fim, a transformação vai depender da capacidade que as universidades tenham para antecipar a pressão competitiva que vão sofrer no futuro próximo e para resistir ao conforto do status quo.

Melhorar a experiência presencial, experimental, e transformacional da educação e evitar a armadilha da concorrência puramente digital deve ser a aposta para as universidades que queiram sobreviver e prosperar na próxima década.