Os cancros digestivos, em especial o cancro colorretal, representa um dos maiores desafios de saúde pública em Portugal. Diariamente, 13 pessoas morrem devido a esta doença, e todos os anos são diagnosticados mais de 11 mil novos casos. Atualmente, estima-se que existam cerca de 80 mil doentes ativos no país, um número alarmante que reflete a gravidade deste problema.

Apesar destes números, 50% da população ainda desconhece os sintomas da doença, uma realidade que urge ser transformada através de campanhas de sensibilização e de um maior compromisso político. No entanto, este cenário pode ser alterado de forma substancial com uma medida simples, mas essencial: a implementação de um rastreio de base populacional.

A Europacolon Portugal tem desempenhado um papel fundamental na luta contra o cancro colorretal. Anualmente, organizamos rastreios oportunísticos com o apoio de farmácias comunitárias e lançamos, em outubro de 2023, a iniciativa “+INTESTINO”, em colaboração com a Global Healthcare Projects. Este projeto, realizado no concelho da Amadora, destacou-se por levar a prevenção e o rastreio diretamente até à comunidade afrodescendente, um grupo particularmente vulnerável em termos de acesso à saúde.

Através de uma Unidade Móvel, conseguimos abranger várias freguesias e bairros da Amadora, incluindo Cova da Moura, Casal da Mira e Alfornelos. Os resultados deste esforço foram impressionantes: envolvemos mais de 1.200 pessoas, das quais 653 realizaram o teste de sangue oculto nas fezes. Entre estas, 30 pessoas apresentaram resultados positivos e foram encaminhadas para o seu médico de família. A taxa de adesão de 75,4% foi histórica, superando países com rastreios de base populacional implementados há anos, como a Holanda e a Bélgica, onde a taxa de adesão ronda os 60-65%.

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Estes números revelam o impacto que iniciativas de rastreio podem ter na prevenção do cancro. No entanto, por mais que estas iniciativas oportunísticas sejam louváveis e essenciais, não substituem a necessidade de um programa de rastreio de base populacional devidamente implementado e coordenado pela Tutela. É aqui que a vontade política se revela crucial. Não podemos continuar a depender exclusivamente da boa vontade de associações e entidades privadas para suprir uma falha estrutural tão grave no nosso sistema de saúde.

Os dados são claros. De acordo com o último levantamento, o número de novos casos de cancro do intestino em Portugal aumentou de 10.092, em 2019, para 10.575, em 2022, representando um crescimento de 4,79%. O cancro do estômago teve um aumento ainda mais alarmante, de 26,7%, enquanto o cancro do pâncreas subiu 33,3%, valores que refletem um problema de saúde pública crescente. O aumento da mortalidade também é preocupante: o cancro colorretal registou uma subida de 14,12% nas mortes entre 2019 e 2022, seguido por um crescimento de 30,9% no cancro do pâncreas e 17,42% no cancro do fígado. Estes números confirmam o que já sabemos: sem prevenção eficaz, mais vidas serão perdidas (*).

A solução para este problema é simples e amplamente reconhecida: a implementação de um rastreio de base populacional. Vários países da Europa têm demonstrado que esta é a medida mais eficaz para reduzir a mortalidade por cancro colorretal. Um rastreio deste tipo permite a deteção precoce da doença, quando as probabilidades de cura são muito mais elevadas e os custos associados ao tratamento são significativamente menores.

A Europacolon Portugal tem apelado repetidamente à implementação deste tipo de rastreio em território nacional, mas a resposta tem sido insuficiente. Um rastreio de base populacional, universal e gratuito, asseguraria que todos os cidadãos, independentemente da sua condição social ou localização geográfica, tivessem acesso a este importante exame preventivo. A falta de um programa desse tipo é, na prática, um retrocesso na luta contra o cancro, ao mesmo tempo que perpetua as desigualdades no acesso à saúde.

Então, por que motivo Portugal ainda não tem um rastreio de base populacional implementado? A resposta é complexa, mas está enraizada numa falta de prioridade política. A alocação de recursos para um programa nacional de rastreio para o cancro colorretal é, acima de tudo, um investimento na vida das pessoas, que permitirá salvar milhares de vidas e reduzir o peso económico da doença no Sistema Nacional de Saúde.

Soluções existem. Precisamos de começar pela alocação de verbas específicas no Orçamento do Estado para este fim. O rastreio do cancro colorretal não pode continuar a ser encarado como uma despesa, mas sim como um investimento na saúde pública, com retornos imensuráveis a médio e longo prazo, quer em termos de vidas salvas, quer em termos de redução dos custos associados ao tratamento de doentes em estádios avançados. Além disso, é essencial que se crie uma estratégia nacional integrada, que envolva todas as partes interessadas, desde o Ministério da Saúde às autarquias locais, passando pelos centros de saúde e pelas farmácias comunitárias.

Para além da implementação de um programa de rastreio, é essencial que se aumente a literacia em saúde entre a população. Metade dos portugueses desconhecem os sintomas do cancro colorretal, o que contribui para a elevada taxa de diagnósticos tardios. Campanhas de sensibilização eficazes, aliadas ao rastreio, podem fazer toda a diferença, como já demonstrámos ser possível com o “+INTESTINO”.

Por fim, é fundamental que o rastreio do cancro colorretal seja uma prioridade política, um compromisso político que transcenda ciclos eleitorais e que coloque, em primeiro lugar, a saúde da população.

Vivemos numa era de avanços científicos e tecnológicos que nos permitem detetar a doença precocemente e, muitas vezes, preveni-la por completo. Não podemos, enquanto sociedade, desperdiçar estas oportunidades por inércia ou falta de visão. O Governo português tem a responsabilidade de agir agora, antes que mais vidas sejam perdidas desnecessariamente.

A vontade política tem o poder de mudar o rumo desta luta. Está nas mãos dos nossos governantes salvar vidas. O futuro da saúde pública em Portugal depende, em grande medida, da decisão de implementar ou não um rastreio de base populacional para o cancro colorretal. Não há mais tempo a perder. A ação é urgente, e a sociedade portuguesa merece nada menos do que isso.

(*) Globocan 2022