De que maneira resiste uma família à morte prematura e violenta do filho e irmão mais amado, aquele em quem reconhece o génio, o desassombro e a entrega dos artistas maiores? Como se resgata o talento de um escultor voluntarioso a quem faltou tempo para quase tudo? Por quantas gerações fica a ecoar o desarranjo?

Nos anos 30, num domingo de agosto ao cair da tarde, a moto de Ruy embateu frontalmente com um automóvel numa curva da Estrada de Sintra. Por terra, ao lado da ARIEL 500cc, ficou o talento enorme do escultor Ruy Roque Gameiro, então com 29 anos, e um amor que transbordava paixão. Ruy teve morte imediata mas a sua mulher, Maria Helena, um ano mais nova, ter-lhe-á sobrevivido por alguns minutos, nesse 18 de agosto de 1935.

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Um memorial sóbrio assinala o lugar do acidente, hoje submerso no IC 19, ao lado do qual foi plantado um pinheiro bravo. Créditos: Joana Leitão Barros.

É preciso olhar para as fotos de ambos na praia, tiradas no ano anterior, ou para aquelas em que o casal está junto do clã familiar Roque Gameiro/Castello Branco, para acordar a confiança desses anos e o amor que contaminava tudo à volta. E isso não se faz sem nos darmos conta da têmpera de Ruy, rebelde e insatisfeito, ou sem ouvir as vãs certezas de Maria Helena. Faz-se, tenta-se fazer, olhando também a pedra singular do jazigo da rua 8 do Cemitério dos Prazeres, projetado por Cottinelli Telmo, com imagens esculpidas do voo de pássaros, do arco-íris e de folhas de árvores, dispensando a segurança da simbólica cruz.

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Em papel quadriculado, preso a lã azul, Maria Helena dedicou-se a esboçar os primeiros anos do namorado, partindo de fotografias e episódios pueris, mas em crescendo o caderno acaba por se transformar num diário íntimo, guardado pelas sobrinhas até aos dias de hoje. No caderno amarelado é assim traçada a personalidade de Ruy adolescente: “Veludo macio, pensavam todos (…) Aquela meiguice escondia uma vontade de ferro. Caráter arrebatado, facilmente encolerizado, cego na ira (…) Mas caráter nobre, muito nobre, capaz de grandes atos (..)”.

Ruy tinha crescido na Venteira, hoje Amadora, numa casa traçada segundo os cânones da “casa portuguesa”, assinada a quatro mãos pelo pai, o mestre da aguarela Alfredo Roque Gameiro, e pelo arquitecto Raul Lino. Um outro amigo, Rafael Bordalo Pinheiro, desenhara os azulejos da sala de jantar. O futuro escultor habituara-se a ver como visitas frequentes da casa os escritores Afonso Lopes Vieira e Delfim Guimarães, assim como o escultor Teixeira Lopes e os pintores José Malhoa e António Carneiro, entre outros. O pai Gameiro, republicano e anticlerical, era conhecido por ser um homem tolerante, sendo grande amigo de Carlos Marques Leitão, professor dos Príncipes, e do padre Araújo Lima, com quem o clã privava assiduamente.

Ruy gostava de vaguear pelos campos saloios, tanto como de vestir-se como um pescador. Amava os seus cães, o mar e o sol mais ardente, perdia-se pela caça.

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Ruy e os seus cães, uma ligação forte que a família homenageou, mandando esculpir no seu caixão as cabeças dos dois cães. Créditos: Joana Leitão Barros.

Via-se como um operário, interessa-lhe a “arte viva”, quem o diz é José Amaro Júnior, amigo de infância e seu biógrafo. As pretensões intelectuais dos pares faziam-no rir, pouco lhe interessava pertencer a grupo ou corrente artística. Muito menos as referências românticas. “Vou mostrar ao mundo quem eu sou”, lê-se no diário de papel quadriculado, um pensamento que lhe é atribuído, com alguma ironia, pela namorada.

Maria Helena, cresceu em Inharuca, na província de Tete, na região central de Moçambique, e é uma jovem mulher bronzeada, o que não será de bom gosto no final dos anos 20, sempre rodeada dos sobrinhos que não a largam, muitas vezes descalça, seguindo o hábito mal visto do clã Roque Gameiro. Será seu o torso de uma das melhores figuras femininas de Ruy.

A história deste amor é contada por si, em palavras inesperadamente lúcidas: “Ruy prometeu ser um bom rapazinho (…) Encontrou uma rapariga que só se tornou notável pela exagerada afeição que lhe tem (..)”. E muitas páginas depois, em dia magoado: “(…) sabendo que há alguém para quem és tudo (…) porque te mostras tão brusco? Não te basta saber que és adorado? Que mais queres, Ruy (…)?”.

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Os dois formam uma dupla que festeja rodopiando, de mãos dadas, as vitórias do escultor, segundo conta Amaro Júnior.

Em outubro de 1934, ainda antes do seu casamento fazer dois anos, Maria Helena respondia docemente à carta do sogro, o mestre aguarelista Alfredo Roque Gameiro, que viajava pelo Minho, numa caligrafia redonda: “Querido Pai (…), No atelier do Ruy trabalha-se com afã. Um rapaz chamado Tocha há uma semana que ajuda o Ruy porque o baixo-relevo é bastante grande e difícil para uma pessoa o começar. A maquete da estátua para o Parlamento está pronta. Falta o Francisco Franco vê-la. Creio que deve ir ao atelier ainda esta semana, e naturalmente o Ruy começará logo a fazê-la em ponto grande (não sei se este é o termo próprio). Acho-a linda e estou ansiosa por vê-la no lugar que há de ocupar (…) Quanto ao trabalho para o monumento, nada se pode dizer por enquanto. Está apenas principiado, mas é de tanta responsabilidade que não permite a mínima distração. (…)

A figura que aguardava a opinião de Francisco Franco era a «Força», destinada à escadaria da Assembleia Nacional, que não chegou a ser executada em pedra, “por não estar no espírito da conceção do conjunto. Ruy, de facto, também não gostava dela, mas é no entanto uma estátua no mais elevado sentido, (..) com pormenores de real valor, aliados a uma realização vigorosa no sentido da sua representação” escreve José Amaro Júnior.

Mais dúvidas existem sobre qual seria o monumento que requeria então a sua atenção no atelier e que estaria a principiar. Com alguma probabilidade seria o monumento ao Infante D. Henrique, destinado a Sagres, concebido em colaboração com os arquitetos Carlos e Guilherme Rebelo de Andrade. Embora tenha sido escolhido, não chegou a ser construído, se bem que a escultura tenha sido apresentada nos pavilhões portugueses das Feiras Internacionais de Paris (1937) e de Nova Iorque (1939).

Franca e tranquila, a carta prosseguia, aludindo porventura às críticas favoráveis de José de Figueiredo ao escultor: “Enfim, espero que a Boa-Sorte continue pelo nosso lado. Dos novos, o Ruy é o que se encontra em melhores condições e confesso que o futuro não me assusta (…)”

O namoro de ambos começara uns anos antes, na Amadora, onde viviam. Maria Helena era filha de Ana Luísa Chaves, cujo pai era padre protestante, e de Vasco Trigueiros de Sampaio Castello Branco, que regressara à metrópole e dirigia a filial da açucareira «Sena Sugar States Limited». Mário Castello Branco, irmão de Maria Helena, tinha casado com Ana Ottolini, a filha mais velha de Raquel Roque Gameiro, irmã de Ruy. Entre o escultor e Raquel existia uma diferença de 15 anos, nos quais tinham nascido Manuel, Helena e Mámia, todos eles pintores.

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O patriarca, Alfredo Roque Gameiro, e a a mulher, Assunção, já a viver em Lisboa. Aqui estão rodeado pela filha Mámia, casada com o pintor Jaime Martins Barata, por Ruy e Maria Helena, e ainda pela netas, Ana (casada com Mário Castello Branco), Guida e Néné Ottolini. As crianças da foto são os primeiros filhos de Mámia. Créditos: Joana Leitão Barros

Em pequeno, Ruy era dado às engenhocas, criando continuamente pequenos brinquedos. Preocupado pelo seu desinteresse pelos estudos e aversão às rotinas escolares, Mestre Alfredo Roque Gameiro chegou a vislumbrar no filho mais novo um mecânico de automóveis. Foi assim inscrito na Escola Industrial Marquês de Pombal, em curso dirigido por Sanches de Castro. A destreza manual e a resistência física do desportista acabaram por prepará-lo, afinal, para o trabalho duro da escultura.

A curta vida do filho mais novo de Alfredo Roque Gameiro está bem documentada em “O escultor Ruy Roque Gameiro – Subsídios crítico/biográficos” de José Amaro Júnior, editados em 1943, pela Junta de Providência da Estremadura, onde o autor faz sobressair a “graça onde havia bondade”, “a enérgica vontade”, traçando o retrato de um “artista voluntarioso” de “mãos de gigante”. Conta José Amaro, sobre os tempos em que os dois estudavam em Belas Artes: “(…) onde havia o rigor da bitola e fio de prumo na cópia em claro-escuro de carvão e esfuminho das cabeças clássicas (…) Ruy, consolidada já a sua aspiração de modelar, entra no curso especial, dirigido por Mestre Simões de Almeida, tendo como companheiros de aula Júlio de Sousa, Barata Feio, Norte de Almeida, Macário Dinis e Albuquerque de Bettencourt, o mais romântico e literário de todos (…) No terceiro ano recebe a primeira medalha do curso especial, com a classificação de 20 valores.

Nessa altura terá nascido a sua proximidade com Henrique Albuquerque de Bettencourt, também desaparecido precocemente. A tríade assombrada, já que nenhum dos três chegaria aos 30 anos, completava-se com a amizade do pintor José Tagarro, de quem modelou a cabeça, em bronze (hoje em depósito no Museu do Chiado), corria o ano de 1927. Um ano depois, José Tagarro retribui e retrata Ruy, a óleo, obra também integrada no acervo do Museu do Chiado.

Todas as mulheres vestidas de azul são bonitas

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Maria Helena, mulher de Ruy Roque Gameiro, numa fotografia em perfil. Créditos: Joana Leitão Barros.

A escultura “Abel e Caim” marca o fim do curso da Escola de Belas Artes de Lisboa, em 1928. No ano seguinte, Ruy expõe pela primeira vez, apresentando uma estilizada “Salomé”, na Sociedade Nacional de Belas Artes. Segue-se a participação no I e II Salões dos Independentes, e depois disso, Paris e Berlim.

Os primeiros anos da década de 30, que são os seus últimos anos, seriam de intenso trabalho. Em 1931 cria os dois monumentos aos mortos da Primeira Guerra Mundial, em Abrantes e Lourenço Marques, hoje Maputo. O trabalho de Abrantes é o primeiro da escultura portuguesa a ser fundido em cimento. “A ele se devem, em parte (…) os primeiros arrojos, as primeiras oposições à estátua de «pirueta», de rendilhado (…) assim como a cenografia de apoteose plástica género «mágica», — e o seu primeiro trabalho nesse sentido foi o sólido, o arrogante e sentidamente nacional monumento aos mortos da Grande Guerra, em Abrantes (…)”, afirma, em 1946, José Amaro Júnior. A escultura de Maputo, projetada em colaboração com o arquiteto Veloso Reis, foi exposta na Avenida da Liberdade, em 1934, e entregue à cidade moçambicana no ano seguinte.

Quase na mesma altura, recebe da Direção da Exposição Ibero americana de Sevilha a medalha de ouro, “atribuída pela colaboração artística de escultura”, um galardão que premiava o busto de Bartolomeu Dias, que figurou no Pavilhão de Portugal.

Um ano depois, Ruy comemora o primeiro lugar no concurso para a figuração dos monarcas D. João II e D. Manuel I, organizado pela Câmara Municipal de Lisboa, destinadas à Avenida da Índia. Para além de Ruy, participaram Maximiano Alves e António da Costa, que apresentaram um total de seis maquetas. Desta representação de D. João II, hoje perdida, é possível apenas localizar a maquete em gesso, à guarda do Museu da Marinha. Passada a pedra, em tamanho monumental, a figura foi instalada entre o Mosteiro dos Jerónimos e o rio Tejo e, durante a Exposição do Mundo Português, exposta na sala dedicada ao monarca.

Em 1933 volta a expor, na Sociedade Nacional das Belas Artes, no «Salão dos Independentes», dois trabalhos que merecem a Artur Portela, no «Diário de Lisboa», o comentário: «artista cheio de juventude e originalidade, com uma estátua que é um prodígio de graça e uma figura decorativa modelada com humano calor».

Ruy é generoso com a figura feminina, radiosa e solar, em que Maria Helena é musa inconfessada. O episódio é relatado por José Amaro Júnior, ele mesmo o segundo interveniente: “(…) falávamos do estetismo feminino: belezas clássicas e antigas à Vénus de Milo ou à Rubens, modernas e contemporâneas, nas esguias personagens de Despiau ou Van Dongen, e ultra-modernas, nas falsas magras em voga (…). A conversa, sendo simples, parecia complicar-se…E a discussão terminou assim: chamou-nos a atenção para a influência da cor e disse: «todas as mulheres vestidas de azul são bonitas». Ficámos surpreendidos com a afirmação (…) Exultámos pelo avanço dos conceitos criados; deveria ser assim, com certeza.”

Serei digna de tanta ventura?

O caderno de Maria Helena acaba com estas linhas, sem data : “A vida é tão curta, Ruy, de que vale estares triste? (…) Não desanimes, peço-te. Lembra-te que há uma vida melhor e mais longa do que esta, crê e serás salvo, amor. Ruizinho, estas linhas não as verás tu, esse cuidado terei eu, porque enquanto as escrevo os olhos mal veem papel e caneta, tantas são as lágrimas!!!(…) Basta tanta fé como um grão de mostrada e seremos salvos! Serei digna de tanta ventura? Deus é Justo e Todo-Poderoso!!!”

Depois do acidente de 18 de agosto, Vasco Castello Branco, o pai de Maria Helena, não mais se separou da gravata preta, contam as netas.

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Alfredo Roque Gameiro e o filho mais novo, morreriam apenas com alguns dias de intervalo, em 1935. Créditos: Joana Leitão Barros.

A segunda Helena da vida de Ruy, a minha avó e a sua irmã, guardou religiosamente os cinzéis, cada uma das fotos, cartas e documentos do irmão, doze anos mais novo do que ela. Helena, que foi uma segunda mãe para Ruy, casou em 1923 com o cineasta José Leitão de Barros.

Quase trinta anos depois, foi dado o nome de Ruy a um dos netos de Helena e José, o primo que nasceu antes de mim e a quem, tantas vezes, dou por mim a chamar mentalmente de Ruy Roque Gameiro. Em 1946, Helena tentava ainda salvaguardar e reunir a obra do irmão, pedindo ao Ministério da Marinha a restituição da maquete do monumento ao Infante D. Henrique, o que acabou por acontecer.

Por seu lado, José Leitão de Barros evocou o escultor em diversos dos seus “Corvos” domingueiros, as crónicas publicadas no Diário de Notícias entre 1953 e 1960, deixando transparecer uma admiração que perdurava.

No ano do acidente, Ruy aceitou o pedido do cunhado e assina a figuração escultórica da réplica do coche de Estado de D. João V, que seria uma peça relevante no Cortejo das Festas da Cidade, realizadas em junho com direção de José Leitão de Barros e sob encomenda de Pastor de Macedo. A tela de ouro veio de Bruxelas e a passamanaria foi feita na Escola António Arroio, com supervisão de Helena Roque Gameiro. A reconstituição reuniu uma lista de notáveis, como a de Carlos Melande, Raul Martins, Amadeu Gaudêncio, Agostinho Cabral e “entalhadores vindos de todo o país (…)” que trabalharam quase sem parar, durante 43 dias, segundo carta de José Leitão de Barros.

Esta não foi a sua única colaboração em projetos do cunhado, que frequentemente arrastava também os outros cunhados, o artista e arquiteto Cottinelli Telmo e o pintor Jaime Martins Barata, no turbilhão da sua produção. Nas anteriores Festas da Cidade, Ruy fora já desafiado a criar uma peça de barro, de cariz popular, para ser vendida a preço acessível, na reconstituição dum mercado português do século XVII. Assim nasceu um canjirão intitulado «Santo António de Lisboa», em barro cozido em duas tonalidades, em creme e numa cor quente.

A venda da casa lisboeta construída por Helena e José Leitão de Barros, em 2008, reservou-nos uma surpresa. Por baixo de uma tapeçaria estava um baixo relevo de Ruy, em que um homem e uma mulher dançam, em movimento e alegria transbordante, assinado, mas não datado. Ninguém se lembra de o ter visto um dia, mas ele lá estaria.

A descoberta aconteceu na véspera da entrega da casa e a sua retirada da parede, de forma a excluir o risco de vir a ser demolido, requereu improviso. Hoje está na Casa Roque Gameiro, a casa onde Ruy cresceu, em exposição permanente. Este baixo relevo é hoje pertença da minha filha Marta, a organizadora da operação da retirada, irremediavelmente convocada por Ruy e Maria Helena a vestir-se muitas vezes de azul e a dançar, dançar sempre, mesmo sobre a serra de Sintra.

Texto de Joana Leitão Barros, sobrinha-neta de Ruy Roque Gameiro.