Fernando Guedes, editor, poeta, ensaísta, estudioso, pugnou, com garbo de cavaleiro da Távola Redonda, tanto pela cultura como pelas ideias. Com garbo de cavaleiro da Távola Redonda porque foi na revista com este mesmo nome – ideia de António Manuel Couto Viana, autor de um poema que nomeou a revista, em que emparceirou com David Mourão-Ferreira ou Ruy Cinatti – que Fernando Guedes começou a ganhar nome.

Traduzia, para o primeiro número, saído a meio do século, Pound e Eliot, paixões que o acompanharam ao longo da vida; Da gesta que estes cavaleiros cantaram de si próprios, saíram vários comparsas da revista que Fernando Guedes fundou pouco depois. Já não seria poética, mas cultural e doutrinária. Guedes juntou aquela que viria a ser a plêiade da direita não democrática (de várias tendências) e, com António José de Brito, o também António Couto Viana, Goulart Nogueira e Caetano de Melo Beirão, entre outros, fundou a revista Tempo Presente.

Nascido no Porto, há 87 anos, Fernando Guedes foi uma figura de enorme importância no meio cultural português. Morreu este domingo.

Ainda a Tempo Presente. Que este tempo, agora presente, tenha esquecido a revista, não surpreende; mas esta foi um dos mais ambiciosos projectos que a direita portuguesa alimentou. Quando o SNI já pouco atraía, quando a sombra do velho labelo de direita ignorante voltava a pairar sobre estes jovens, Fernando Guedes teve a argúcia de lançar uma longa resposta, de mais de cinquenta números. A revista recuperou o modernismo de Joyce ou Pound, pescou também na pouco estudada tradição portuguesa da sua banda – exemplo disso é a secção de polémica “A besta esfolada”, título tomado de empréstimo a José Agostinho de Macedo por Goulart Nogueira –, voltou ao Integralismo Lusitano, publicou a Agustina Bessa-Luís, o Agostinho da Silva, filosofia portuguesa e reaccionários dos mais inveterados, e lançou também as bases para a mundividência da Futuro Presente, de Jaime Nogueira Pinto e da Nova direita, com os autores da guerra ou a tradição da direita intelectual francesa, como Drieu de La Rochelle, Barrès ou a vítima da democracia Brasillach.

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Se a convivência com tão altas sensibilidades literárias não chegasse para afastar o trauma da direita órfã de ideias e ideólogos, haveria mais. Fernando Guedes foi também uma importante figura das semanas de Estudos Doutrinários, cuja importância Ricardo Marcchi já estudou, e que procuravam pelo menos arraçar remotamente os vários gatos postos no saco do regime. A tarefa não era fácil: Guedes, por exemplo, fez uma comunicação sobre a necessidade da democracia enquanto António José de Brito conferenciou a urgência de uma guinada em direcção ao fascismo.

As actas das conferências não foram publicadas pela Verbo, ainda no princípio; mas devem ter sido das poucas coisas que, durante anos, lhe escaparam. A importância da Verbo, quer se goste quer não se goste do estilo, nunca poderá ser menorizada. Dizia um padre, no tempo de maior pujança da editora, que os grandes órgãos de comunicação da Igreja eram a Universidade Católica, a Rádio Renascença e a Verbo, com a particularidade de a Verbo não pertencer à Igreja. E, de facto, em tempos de sanha revolucionária, de PREC e de purgas, a Verbo funcionou como única hipótese de direito ao contraditório dos vencidos.

Vencidos esses que, menorizados pela moda neorrealista, pelos tronos agora oficiais de Alexandre Pinheiro Torres ou pelos tronos populares de uma catrefada de revolucionários em atraso, continuavam a ser consultados, a ponto de fazer da Verbo uma editora poderosíssima. Além de publicar os escritores ostracizados pela política, ou os políticos escritores, sejam eles Fernanda de Castro ou o marido António Ferro, Franco Nogueira ou o último Caetanista Veríssimo Serrão, lançou também uma belíssima colecção de ensaios (em que entraram os ensaios de cultura medieval do padre Mário Martins, sj, por exemplo, ou ensaios camilianos de Bigotte Chorão) e uma fortíssima secção infanto-juvenil, autêntico bodo literário das crianças que, de estrangeiros, chegou a publicar o Tintim e de autores portugueses quase tudo o que faz parte do imaginário infantil de uma criança nascida nos anos noventa – acrescente-se, minudência curiosa, que o próprio Fernando Guedes é personagem literária de uma dessas séries infantis publicadas pela Verbo, Objectivo Golo, como avô de um protagonista com sonhos de jogador de futebol.

A aventura da Verbo está narrada num livrinho de entrevistas com Sara Figueiredo Costa – Fernando Guedes – o decano dos editores, as outras, no círculo Eça de Queirós, na APEL, na pele de estudioso da História do livro, circularão à boca pequena entre amigos, conhecidos e curiosos.

Quanto ao seu papel na cultura portuguesa, esse deveria estar impresso em letra grande. Porque mesmo que um tição ideológico vá atravancando o reconhecimento de escritores com tanta valia como outros que andam nas palminhas dos jornais – falemos dos mais obscuros Rodrigo Emílio ou Goulart Nogueira, ou de outros que não tanto, como António Pedro, António Manuel Couto Viana ou Malheiro Dias; mesmo que a tolerância política não permita reconhecer inteligência ao Integralismo Lusitano, ao grupo da Cidadela ou à revista Tempo Presente, o legado de Fernando Guedes é demasiado grande. Porque os expôs a todos, numa lógica de editor que é verdadeiramente cristã: não como aquele que se impõe mas como aquele que, na sombra, exalta os outros. Não dará glória, não dará certamente a glória merecida; mas dá um Homem que, sem vergar nas suas convicções, sabe tratar com todos. Como um verdadeiro senhor.

Carlos Maria Bobone é licenciado em Filosofia. Colabora no site Velho Critério.