Sem revogar o currículo nem alterar programas, o Ministério da Educação vai, ao invés disso, definir “matérias essenciais” a ensinar nas várias disciplinas. Sem tirar horas ao português nem à matemática, vai permitir às escolas gerirem 25% do tempo letivo total. Sem aumentar carga letiva no ensino básico, vai introduzir a área da cidadania no 2.º e 3.º ciclos e dar mais tempo às expressões físico-motoras e artísticas no 1.º ciclo. Estas são algumas das mudanças que vão avançar no próximo ano letivo num número de escolas que o secretário de Estado da Educação não quis ainda quantificar. Certo é que as alterações serão sentidas apenas nas turmas de inícios de ciclo: 1.º, 5.º, 7.º e 10.º anos.

Não haverá redução do número de horas em disciplinas específicas, nomeadamente em disciplinas como português e a matemática. Do que estamos a falar é da possibilidade de gerir a carga horária — que se vai manter igual para projetos educativos — para haver trabalho interdisciplinar, multidisciplinar e dedicação a temas em concreto.”

A mensagem, em jeito de resumo do que viria ser apresentado mais à frente, foi deixada pelo ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, logo no início de uma sessão de esclarecimentos sobre o Perfil do Aluno e o processo de flexibilização pedagógica, que ocorreu esta quarta-feira, no Ministério da Educação.

Fundir disciplinas ou uma semana a falar de um tema

Para explicar de que forma a gestão de 25% do currículo poderá ser concretizada pelas escolas, o secretário de Estado João Costa deu vários exemplos, partindo sempre de um cenário hipotético de cinco disciplinas, cada uma com 200 minutos semanais, num total de 1.000.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Num primeiro cenário, a escola poderá optar por fundir disciplinas. Por exemplo: os professores de História e Português podem juntar-se para ensinar aos alunos o tema dos Descobrimentos, que é abordado nas duas disciplinas. Também pode acontecer que os professores de Físico-Química e Ciências Naturais ou de História e Geografia trabalhem em equipa, articulando-se de forma a que os alunos durante uma semana tenham apenas uma das disciplinas e na semana seguinte a outra. São exemplos. “Não tenho ninguém a perder minutos nem horas”, garantiu o secretário de Estado da Educação.

Outro cenário: a escola está organizada com horários semanais e desde o início ao fim do ano, as semanas são sempre iguais. A ideia é que, com esta autonomia, as escolas possam, por exemplo, a meio de um período, interromper a rotina e dedicar uma semana ao estudo e discussão de um tema interdisciplinar, de preferência da atualidade, como por exemplo, a crise dos refugiados, a União Europeia, ou outro. “E para isto vão concorrer todas as disciplinas”, explicou João Costa, com cada uma delas a dar o seu contributo para o tema.

Toda a gente nos diz que o primeiro período é extenso e que fazia falta ali a meio fazer algo diferente. Este é um instrumento que pode ser, por exemplo, usado para isso. Quando tenho a perceção que há um momento em que é preciso quebrar algumas rotinas, posso usar este recurso”, declarou o secretário de Estado.

Um terceiro modelo de flexibilização passaria por dedicar uma parte do tempo letivo de uma disciplina para desenvolver projetos. Este esquema seria aplicado por todas as disciplinas, em momentos diferentes, ao longo de todo o ano. “A carga horária da disciplina não é afetada, é aproveitada de forma diferente.”

Ou ainda, e tal como já tinha falado na Comissão de Educação, optar pela trimestralização ou semestralização de algumas disciplinas.

No próximo ano letivo cada escola, no âmbito do reforço da autonomia pretendido, optará pela via que mais se adequar às necessidades dos alunos. “Flexibilidade e autonomia é deixar as coisas acontecerem”, atirou o governante.

Questionado sobre o número de escolas onde as mudanças irão avançar no próximo ano, João Costa não confirmou aquele que chamou de “número mágico de 50”, que tem sido avançado por alguns órgãos de comunicação social. Disse apenas que já existe um conjunto de “várias dezenas” de escolas identificadas e convidadas, mas que o Ministério deixará as escolas, “que quiserem participar, aderir voluntariamente”. “O número de escolas com que vamos começar vai depender também desta vontade das escolas.”

No que toca ao segundo e terceiros ciclos, haverá uma aposta na área da cidadania e desenvolvimento sustentável, que será integrada na área das Ciências Sociais e Humanas. Mais detalhes sobre esta matéria serão revelados “em breve” pelo ministro. Também as tecnologias de informação serão alargadas a todas as disciplinas e ciclos de ensino.

Mais tempo para as expressões e menos carga letiva no 3.º e 4.º anos

No caso do 1.º ciclo de ensino, a ideia é reduzir o tempo de aulas no 3.º e 4.º anos das atuais 27 horas para 25 horas, como já acontece no 1.º e 2.º anos. “É unânime que há um excesso de aulas no 3.º e 4.º anos”, declarou João Costa.

Este “reequilíbrio” não afetará as áreas disciplinares, isto é, português, matemática, estudo do meio e expressões não perderão horas.

“As duas horas são recuperadas através do apoio ao estudo e da possibilidade de optar entre uma hora de expressões e oferta complementar”, explicou, mais tarde, ao Observador, fonte oficial do Ministério da Educação, acrescentando que “assim, garante-se uma carga horária total mais adequada à faixa etária”.

Olhando ainda para o 1.º ciclo, haverá mais horas dedicadas às expressões físico-motoras e artísticas. Atualmente estas garantem um mínimo de três horas na componente letiva e passarão a ter cinco.

“Se quiserem pensar em abstrato, temos de pensar que se a semana tem cinco dias temos cinco horas de atividade. O ideal é que os alunos tenham pelo menos uma hora por dia a oportunidade de estarem a trabalhar de uma forma diferente, não terem sequências de aula com método passivo, mas poderem ter exploração de atividade física”, explicou o secretário de Estado da Educação.

Alunos do ensino secundário podem escolher disciplinas de outros cursos

Outra das novidades que vai avançar no próximo ano nas turmas de 10.º ano, num universo de escolas ainda a determinar, é a possibilidade de os alunos optarem, pelo menos, por uma disciplina de um outro curso que não aquele que escolheram frequentar. O secretário de Estado João Costa deu um exemplo de um aluno que esteja a frequentar um curso profissional, com a ambição de concorrer ao ensino superior, e que precisa de uma disciplina específica como a Matemática A. A ideia é este aluno poder substituir uma disciplina que tenha por essa.

A mesma “permeabilidade” haverá ao nível dos cursos científico-humanísticos. Isto é, um aluno que está na área de línguas e humanidades e está interessado em seguir um curso na área da conservação e restauro e precisa de Química. Esse aluno poderá ter a possibilidade de fazer, como opção, a disciplina de Química, desde que tenha horário e vaga.

João Costa não confirmou se esta “permeabilidade” no secundário servirá para substituir apenas uma disciplina ou mais do que uma.

Não haverá alterações de programas nem novos manuais

Quer o ministro da Educação, quer o secretário de Estado da Educação, deixaram claro que a flexibilização pedagógica que entrará em vigor em dezenas de escolas já no próximo ano não implicará alterações nos programas, nem revisão curricular.

Não haverá alteração dos programas das diferentes disciplinas, mas antes uma identificação de matérias e conteúdos verdadeiramente importantes em cada uma das disciplinas”, afirmou Tiago Brandão Rodrigues e repetiu-o mais à frente o secretário de Estado João Costa, acrescentando que este trabalho de identificação das “aprendizagens essenciais” está em curso entre a Direção Geral de Educação e as diferentes associações profissionais.

Para clarificar este ponto João Costa deu um exemplo: “É consensual que um aluno no final do 2.º ano tem de saber ler sem hesitações e com segurança. Agora se vai ler o livro A, B ou C ou esta frase ou aquela isso não é essencial”.

E este trabalho de identificação de matérias essenciais é importante, pois “há um problema, absolutamente consensual, de extensão dos programas, que coloca questões de garantir que os programas são de facto cumpridos e aprendidos”, frisou João Costa.

Mas para que este trabalho não afete os resultados da avaliação externa (provas e exames nacionais), o Ministério da Educação está a trabalhar em colaboração com o Instituto de Avaliação Educativa, responsável pelas provas e pelos exames nacionais. “Haver avaliação externa é absolutamente compatível com a flexibilidade curricular. O setor privado já faz isto.”

Com esta decisão, não haverá necessidade de adotar novos manuais escolares.

Ministro recusa que tenha havido qualquer recuo

Questionado sobre as recentes notícias que deram conta de que o primeiro-ministro António Costa terá dado orientações ao ministro da Educação para que não se avançasse com flexibilização curricular, e que, por conta disso, o Ministério teria dado um passo atrás, Tiago Brandão Rodrigues foi assertivo: “Não há nenhum recuo nem nenhum volte-face, há um trabalho de auscultação progressivo”.

Se me perguntam se falo sobre estas questões e outras com o senhor primeiro-ministro, naturalmente. Há um trabalho coordenado de todo o Governo. As questões são discutidas de forma aberta, dentro do Governo, de forma continuada, para que os processos possam chegar a bom porto, sempre auscultando os parceiros e quem verdadeiramente conta, para que a implementação se possa dar da forma mais sólida, coerente e progressiva, e sem imposições ou movimentos abruptos”, acrescentou o governante, rematando com a mesma ideia: “Não há nenhum recuo nem nenhum volte-face”.

E mesmo antes de ser questionado pelos jornalistas, o ministro da Educação já tinha dito que que este tem sido um “trabalho feito em continuidade, sempre com tranquilidade, apostando na estabilidade e apostando no gradualismo da implementação”.

“Gostava que ficasse muito claro o que não está neste momento nem esteve em causa: acima de tudo não há, nem nunca foi pensada uma reforma curricular imposta e abrupta. Não há nenhum tipo de revogação curricular. E este tem sido um processo de pensar esta gestão flexível pedagógica que não implicará a revogação nem criação de novos programas”, clarificou.