A Câmara Municipal de Lisboa aprovou a adjudicação direta de uma obra de 5,5 milhões à construtora Teixeira Duarte, justificando essa decisão com a existência de uma “urgência imperiosa” para a reparação do Miradouro de S. Pedro de Alcântara. No entanto, o relatório do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) — elaborado a pedido da câmara — não refere qualquer urgência na intervenção naqueles terrenos, motivo com que a câmara justifica a adjudicação direta. A entrega da obra à construtora foi aprovada depois de o executivo socialista pedir um parecer ao relatório do LNEC. “Não se arrisca com a vida das pessoas”, justifica a câmara ao Observador.
O relatório do LNEC, a que o Observador teve acesso, foi concluído em março deste ano, depois de duas visitas que os técnicos do laboratório — uma referência no setor da engenharia — fizeram ao miradouro: a primeira a 23 de dezembro de 2016 e a segunda a 8 de fevereiro deste ano. Nesse relatório, constata-se que, desde 2006, ano em que a câmara começou a monitorizar o terreno, foram registadas falhas e movimentações em diversos pontos do miradouro e das suas estruturas de suporte.
Os técnicos do LNEC encontraram fragilidades no muro superior do miradouro, na plataforma inferior, no muro inferior do miradouro e nas juntas. “Os deslocamentos acumulados desde 2010 são reduzidos, mas revelam uma tendência evidente de deformação da estrutura e do terreno no seu tardoz, sempre no mesmo sentido”, aponta o documento que o Observador analisou. A base do muro e a zona de trás do terreno deslocaram-se, entre 2010 e 2016, “entre 1,2 e 2,3 cm e entre 2,3 e 4,8cm no topo”.
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No entanto, esses movimentos não foram constantes ao longo dos anos, “tendo sofrido uma redução significativa entre 2013 e o presente ano na quase totalidade dos dispositivos” de monitorização, com exceção de um, sublinha o LNEC.
Parecer que aponta “riscos iminentes” aparece no fim
Na proposta que levou a reunião de câmara em maio — e que todos os vereadores aprovaram, com exceção do CDS –, o vereador Manuel Salgado apresentou um cenário diferente: o documento refere que existe um “risco iminente de deslizamento de terras locais ou globais” na zona do miradouro de S. Pedro de Alcântara. Essa ideia de “risco iminente” não consta do relatório do LNEC e só terá surgido de forma mais evidente num parecer que incidiu sobre as conclusões dos técnicos do laboratório, pedido pela câmara a uma terceira entidade cujo nome a autarquia não divulgou na resposta ao Observador. No entanto, esse documento é assinado pelos engenheiros civis Alexandre da Luz Pinto e António Cristóvão, ambos gerentes da JETsj – Geotecnia, Lda, uma empresa da área da engenharia, conseguiu apurar o Observador.
Esse último parecer a ser requerido pela câmara, e que acaba por sustentar a adjudicação direta aprovada em reunião de câmara, conclui aquilo que nem as avaliações dos técnicos da autarquia (realizadas desde 2006) nem a inspeção do LNEC concluem. No documento, citado pela câmara de Lisboa em resposta às questões do Observador, diz-se que “as atuais precárias condições de segurança da encosta poderão vir a ser abruptamente agravadas em caso de ocorrência de intensa e prolongada pluviosidade e, sobretudo, de fenómeno sísmico, colocando em risco toda a encosta”. A autarquia refere ainda, voltando a citar o relatório do LNEC, que “os movimentos” registados até 2013 nas medições feitas no miradouro “poderão ser associados a um mecanismo de perda de estabilidade por deslizamento pela base e/ou por derrubamento de ambas as estruturas de suporte”.
As respostas enviadas ao Observador não mencionam, no entanto, uma passagem que surge logo a seguir no mesmo relatório. Nesse trecho, os técnicos do LNEC consideram que, “face aos reduzidos movimentos ocorridos” no terreno nos últimos quatro anos, “considera-se desnecessário o reforço das estruturas” de suporte e sugere-se que seja avaliada a reação a eventos sísmicos. É sobre esse ponto que o parecer dos engenheiros civis consultados pela câmara refere que, num cenário de “instabilização local, a estrutura deforma, formando-se no seu tardoz uma superfície de cedência que delimita uma cunha de solo que se desloca juntamente com o muro”.
Por outras palavras, onde o relatório do LNEC sugere monitorização, o parecer sobre o mesmo relatório do LNEC encontra riscos urgentes. “Tendo sido iniciado o mecanismo de instabilização, torna-se extremamente difícil prever a evolução dos movimentos associados a curto-médio prazo” e “nada garante que os movimentos não sofram um acréscimo abrupto num curto espaço de tempo, devido, por exemplo, a fenómenos originados pela ocorrência de águas infiltradas ao longo da encosta num ano de maior pluviosidade”, concretizam os dois especialistas consultados pela câmara.
Acima de tudo, a única coisa que pode ser feita por um responsável político nestas circunstâncias, em consciência, é avançar com a obra no mais curto prazo de tempo. Sobretudo, durante o período de época seca para estar pronto antes da época das chuvas. Não se arrisca com a vida das pessoas“, sublinha a câmara de Lisboa nas respostas ao Observador.
O Observador pediu uma análise ao parecer do LNEC a António Segadães Tavares, ex-professor catedrático convidado da Universidade Nova de Lisboa. Na leitura que faz do documento, este engenheiro refere ao Observador que “os elementos disponíveis, sendo embora de chamar a atenção para a ocorrência e evolução dos fenómenos aparentes, não são contudo de molde a criar alarme”.
“Não se trata de movimentos que anunciem uma catástrofe iminente”, considera Segadães Tavares. “Poderia afirmar-se que se trata de ocorrências normais numa obra deste tipo” e, como tal,”numa atitude prudente, deveria proceder-se ao reforço e extensão do sistema de observação e monitorização” — uma leitura que coincide com a posição adotada pelo LNEC.
A “urgência” do ajuste
Foi com um quadro de urgência de intervenção em cima da mesa que o vereador Manuel Salgado levou a reunião de câmara uma primeira proposta para que a obra fosse atribuída por ajuste direto. Todos os partidos e movimentos votam favoravelmente, exceto o CDS. “No relatório do LNEC, em nenhum dos pontos é dito que tem de haver uma ação imediata naquele terreno ou que existe risco para pessoas em bens”, sublinha o vereador João Gonçalves Pereira, em declarações ao Observador.
A questão suscitada pelo CDS para questionar a adjudicação direta — sem pôr em causa a necessidade da obra — é o facto de a autarquia saber “há anos” em que condições se encontra o terreno. Entre 2005 e 2008 (ano em que já estava em curso a monitorização dos terrenos), o departamento de Espaços Verdes da Câmara Municipal de Lisboa fez obras de reabilitação dos jardins no patamar inferior do miradouro. Foram recuperados pavimentos, foi feito um reforço estrutural do muro que separa os dois patamares, entre outras obras estéticas — mas nunca foi posta em causa a segurança dos terrenos.
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Agora, para justificar a adjudicação direta, a proposta do vereador do Urbanismo refere que “o risco associado à situação geológica e estrutural em presença não é compatível com um procedimento do tipo do concurso público, uma vez que este, a ser tramitado com início agora [em maio], implicaria um tempo procedimental perto dos 5/6 meses, retardando o início da obra por um período de tempo incompatível com a gravidade da situação no local e, assim, colocando em risco a satisfação do interesse público de proteção da vida e da integridade física de pessoas e de seus bens”.
Legalmente, o ajuste direto está previsto para os casos em que, na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”. Ou seja, se há um ano a autarquia não tivesse conhecimento do risco que o terreno representa, estaria justificada a convocação do modelo de ajuste direto — e, desse ponto de vista, só o último parecer, assinado por Alexandre da Luz Pinto e António Cristóvão, sugere a iminência do risco de derrocada.
À luz desse parecer, Manuel Salgado invocou a “urgência imperiosa” da intervenção. A jurisprudência (num acórdão do Tribunal de Contas que o Observador consultou) refere que esse princípio se verifica quando, “por imposição do interesse público, se deve proceder à aquisição de bens ou serviços com a máxima rapidez sem se realizar, quando a lei o prevê, concurso público (ou outro tipo de procedimento que garanta, de alguma forma, a concorrência). E recorre-se a tal solução, sob pena de, não o fazendo com a máxima rapidez, os danos daí decorrentes causarem ou poderem vir a causar prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação“, refere o Tribunal de Contas.
No entanto, a autarquia deveria ter cumprido um último passo, antes de avançar com a proposta de adjudicação direta à Teixeira Duarte. Confrontada com duas conclusões diferentes sobre a urgência da intervenção no miradouro de S. Pedro de Alcântara, “o mínimo que a autarquia devia ter feito era consultar, uma vez mais, a entidade pública, o LNEC, para que se pronunciasse sobre se pretendia reformular as conclusões do seu parecer original” à luz do parecer da terceira entidade consultada pela autarquia, refere ao Observador Paulo Otero, advogado especialista em Direito Administrativo. “Havendo contradição sobre a intervenções a realizar, era isso que, em termos jurídicos, devia ter sido feito”, diz o jurista.
Ainda assim, e apesar de a autarquia considerar que há “risco” para pessoas e bens, a zona do miradouro, por onde centenas de pessoas passam todos os dias, não deverá ser fechada ao público. “O acesso ao jardim na parte superior não será, em princípio, condicionado durante a obra, com exceção de uma faixa de proteção ao longo do gradeamento que dá para a plataforma inferior”, refere a autarquia.
A adjudicação direta da obra de 5,5 milhões de euros à Teixeira Duarte foi aprovada numa segunda votação, já no início de junho. Terão sido consultadas “quatro empresas” — quais, a autarquia não revela — e a construtora foi a escolhida para os trabalhos de colocação de “cortinas e contrafortes em estacas moldadas”, colocação de “vigas de travamento”, “reabilitação dos muros existentes com tirantes definitivos” e “implementação de um plano de instrumentação e observação durante e após a obra, com o objetivo de medir eventuais deslocamentos horizontais e verticais do talude”. Nessa segunda votação, também o PSD se opôs à entrega direta da obra à empresa.
Os motivos para a escolha da Teixeira Duarte foram, justifica a autarquia, o facto de a construtora apresentar “o melhor currículo” e de ter o “equipamento para fazer um trabalho” como o que se pretende realizar no miradouro de S. Pedro de Alcântara. “Embora não entenda as razões que ditaram o caráter de urgência na adjudicação da empreitada pela CML, a empresa selecionada é uma referência em Portugal para obras geotécnicas”, conclui Segadães Tavares ao Observador.