A escritora Dulce Maria Cardoso, autora de livros como “O Retorno”(2o11), “Os meus sentimentos”(2005) ou o “Chão dos Pardais”(2009), estreou-se a publicar, em maio, num género novo: o infantil. Com ilustrações de Vera Tavares, os dois livros primeiros livros da “Bíblia de Lôá”, editados pela Tinta da China, mostram uma menina deus que recria o mundo.

O Observador foi tomar um café com as duas.

Dulce, são os teus dois primeiros livros para crianças. De onde é que surgiu a ideia?

Dulce Não surgiu.

(Risos)

Dulce Foi uma encomenda da RTP2, para um programa que se chama Histórias Para Sempre. Foram eles que disserem que queriam histórias baseadas na Bíblia. E depois, aí, já foi minha ideia a Lôá.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Qual é a origem do nome Lôá?

Dulce Bom, Eloah é o nome do Deus criador da bíblia, portanto tirei só uma ‘letritas’ à frente e atrás, e ficou Lôá. Mas também há aqui jogo com lua e sol, por causa dos “ós” e “l”. Há um deus haitiano também chamado Lôá. E Lôá é também louvor, portanto é mais do que o nome certo.

Como é que foi escrever sobre o imaginário da bíblia?

Dulce À partida, fiquei muito apreensiva porque é sempre perigoso mexer em textos que já foram muito trabalhados. São muito importantes para muita gente, mas depois também achei que seria a melhor maneira porque acho que este preconceito judaico-cristão em que vivemos, este caldo preconceituoso, torna-nos pior pessoas ao crescermos. Por isso, achei que era bom trabalhar nesse grupo que são as crianças para atalhar o que pode ser tido como um preconceito.

Eu sou muito preconceituosa. Por exemplo, já dizia o Einstein que é mais simples desintegrar um átomo que um preconceito. Exatamente porque nós não damos conta deles, estamos armadilhados. Tenho sempre muito cuidado quando digo estas coisas, porque depois de repente quando isto não é contextualizado com estas palavras todas pareço assim muito arrogante e que quero refazer esta coisa, o que não é de todo verdade, é só porque vamos carregando ideias feitas atrás de ideias feitas sem sequer darmos conta delas. Porque crescemos com elas, formamo-nos, deformamo-nos, informamo-nos, portanto convém um olhar exterior que vá à procura disso. Obriguei-me a encontrar o preconceito.

Como é que foi o processo de colaboração com a Vera Tavares?

Vera Muito mau, muito mau.

(Risos)

Dulce A Vera já tinha feito outras capas dos meus livros para a Tinta da China.

Em experiências anteriores, como no “O Retorno”(2011) e o “Tudo são histórias de amor”(2014), já existia uma colaboração entre a autora e a ilustradora?

Dulce A Vera faz o que entende.

(Risos)

Vera Eu leio, eu leio o livro.

Dulce Ela faz o que entende, e eu gosto sempre muito.

Vera Há autores que dão indicações, mas a Dulce não.

Dulce Não é por mal, nem por bem. É porque não consigo.

Mas primeiro escreveu…

Dulce As histórias já existiam por causa da encomenda da RTP, a Vera ‘comprou’ as histórias. Quando vi as ilustrações podia ter achado: “Ah! era melhor ter ilustrado aquele bocado…” Mas a Vera, além de em termos estéticos ter um trabalho que qualquer um pode apreciar, acho que o melhor, para mim, nos livros, é a sensibilidade e a divisão na escolha do texto. Ou seja, se fosse ilustradora teria feito igual.

Vera Foi um processo longo. Houve uma grande dose de confiança por parte da Dulce porque, quer dizer, foi vendo o trabalho em várias fases que ainda não estava tão bem acabado.

Dulce E continua a haver [confiança].

Vão sair mais livros desta coleção?

Dulce As histórias já estão escritas. Agora isso é com a Vera…

Vera O próximo será em Outubro/Novembro, já não sei exatamente, mas é para sair antes do Natal.

Fazia parte da ideia inicial lançar logo dois livros?

Vera Depende um bocadinho das possibilidades, aqui dá-se o caso de, daqui para o Natal, não conseguir fazer dois, só conseguir fazer um. Aqui no início acho que era importante saírem dois livros para o lançamento da coleção e para se perceber que era um série.

Dulce E também porque o livro zero é mais estranho.

Vera Sim, é um bocadinho mais abstrato, é como se fosse um livro zero, em vez de ser um livro um.

Qual é o papel da personagem Eco, no primeiro livro? Onde é que se foi inspirar?

Dulce Aquele livro é todo sobre o capítulo da criação e dentro do capítulo da criação escolhi dar destaque ao começar da contagem do tempo, lá com aquele berlinde que anda de um lado para o outro. Começar também só acontece quando estamos em frente ao outro e quando o outro se autonomiza, neste caso Eco é diferente. ‘Não é falar, é reflectir’, portanto não é que me dê ou copie, é reagir à proposta. Isso também é uma brincadeira com arte em si mesma, quando nos propomos, eu a Vera neste caso, a resposta vem dos outros e é sempre diferente. Não é aquilo que nós propomos, é outra coisa que acrescenta seja para que sentido for. Mesmo que não se goste, acrescenta sempre.

Teve muitas dificuldades em adaptar o estilo de escrita para as crianças?

Dulce Não, porque eu também não escrevi para crianças. A verdade é essa. Mesmo quando escrevo sem ser para crianças não utilizo vocabulário que não utilize oralmente, é uma das regras que tenho. Acho que o que é importante é o que se tem para dizer, não é como se diz. Na verdade, podemos estar uma página inteira a dizer nada com vocabulário, vocabulário, vocabulário… Por exemplo, a maior partes das vezes, dizer a ‘lua é bonita’ é muito mais eficaz do que ‘a lua de alabastro que se deitava’. Nisso, a certa altura, já estou distraída… Portanto, na verdade, escrevo sempre para crianças nesse sentido.

Qual é o papel das crianças e adolescentes nos teus livros?

Dulce Bem, “O Retorno” é contado por um adolescente. Eu gosto muito de ser outros, se puder ser outros mais novos, ou mais velhos, ou de outro sexo, ainda melhor. Escrever é espreitar outras vidas — não é ter outras vidas porque isso é impossível, mas é espreitar. Neste caso, já que tenho o privilégio de espreitar outras vidas, tenho sobretudo o privilégio de ver o resultado das minhas espreitadelas de outras vidas, convém que saia um pouco de mim, não seja sempre a mesma. Pelo menos a mim, interessa-me muito fazer isso. Portanto as crianças e os adolescentes têm muita importância de me tirar de mim, sendo que estou lá eu sempre, porque tudo o que escrevo é autobiográfico, estou lá mascarada.

Era capaz de imaginar-se a ler estes livros?

Dulce Esse é o critério: eu escrevo tudo o que gostaria de ter lido.

(Risos)

Somos todos muito egoístas, muito egocêntricos.

Como é que a Vera digeriu as histórias para depois dar-lhes imagem?

Vera Foi um processo um bocadinho lento, nem sei bem explicar. Li as histórias muito antes de as começar a ilustrar e depois quando voltei a elas fiz uma coisa que faço muitas vezes: não voltei a ler de novo. Li um bocadinho assim inicial e vamos lá ver como é que faço esta cena. A primeira coisa a fazer foi construir a personagem da Lôá, fazer o boneco, que também foi mudando. Foi um processo muito longo, para começar a definir um caminho de imagem, também faço isso quando faço as capas para livros, tenho que me basear em alguma coisa que faça sentido em termos de iconografia. Então logo no livro inicial, na primeira ilustração, está muito ligada à coisa da iluminura.

A Lôá tem semelhanças com uma princesa…

Vera Sim, é medieval, inspirado na iluminura.

Mas tinha alguma indicação como devia ser a Lôa?

Vera Não. Havia uma indicação que a Lôá era uma menina loira de aparência frágil, no texto.

Dulce Depois a parte da Loira desapareceu, porque a Vera pô-la loira e já não valia a pena.

Dulce, foi mais difícil escrever o primeiro ou o segundo livro?

Dulce O primeiro foi mais difícil por várias razões. Para mim, a maior dificuldade é sempre ter a ideia, não é escrever nem executar, é ter a ideia e apanhar o tom. Depois posso fazer mil coisas a partir desse momento. Até ter pensado que tinha que inventar aquela Lôá foi muito complicado, porque nem sequer conseguia imaginar como é que ia escrever sobre tantos episódios da bíblia de forma solta. A proposta era fazer seis histórias à minha escolha. A bíblia é enorme, portanto pensei: o que é que faço disto? Criar a Lôá e criar aquela lógica foi o mais difícil. Depois, a partir daí, foi fácil.

A própria criação é uma ficção?

Dulce Não, mas é a nossa melhor ficção, evidentemente que é. A questão da expulsão do paraíso é um episódio que tem em termos de preconceito coisas terríveis, que levanta imensas questões como a do género, mas também, por outro lado, é extremamente rico, porque está lá a condição humana. Está lá toda a ambição, a desobediência, a solidariedade, está lá tudo. Não está lá só a serpente e a árvore. Portanto, foi muito engraçado inverter um pouco isto. E também foi muito engraçado dar a possibilidade das coisas serem exactamente aquelas e haver o ciúme e haver a insegurança, haver isso tudo, mas que isso possa ser reforçado. Eu acho que é muito importante crescer com essa ideia de que nem tudo são culturas terríveis, ou seja, esta fragilidade que todos nós de vez em quando sentimos não quer dizer um fim de percurso, mas pode até ser o início de uma coisa melhor.

Vera Uma ideia que também se pode gostar da falha no outro.

Dulce Exatamente, não só da coisa bonitinha, perfeita.

Agora está a escrever o quê?

Dulce Estou a escrever textos muito pequenos. Restos de encomendas: ensaios e contos. Por razões pessoais, estou afastada do romance, mas conto regressar a ele. Tenho muitas saudades do romance.

Qual é o teu método de escrita?

Dulce É o método mais absurdo do mundo. Ganharia o prémio, de certeza. É que tive um acidente com o meu segundo romance, em 2005: sem querer recebi um vírus no computador e não tinha gravação [do romance], então perdi tudo e estava quase pronto. Tinha demorado três anos. Entretanto, tive de decidir-me muito rapidamente se reescrevia o romance ou se me esquecia dele para sempre, sendo que eu sabia que não voltaria a conseguir escrevê-lo aos bocadinhos. E percebi que é exatamente isso que é preciso: apagar tudo para escrever de memória e livrar-me do que é palha.

Tenho ideia que havia outro escritor que também fazia isso…

Dulce Espero bem que não, porque é um método muito violento e disparatado. Agora não consigo não fazer, porque acho que fica sempre muita palha, muita coisa que não consigo apagar porque demorei muito tempo a escrever certa frase.

Como é que tem sido a recepção, tanto do livro como das ilustrações?

Dulce Tem sido boa. Eu gosto muito dos livros, – não estou a falar do texto evidentemente – estou a falar da parte visual. E vejo que as pessoas reagem bem.

Vera Algumas pessoas vão contando as reacções aos livros. No outro dia, a filha da Madalena [colega da Tinta da China], começou a dizer lhe: “Pára-com-isso”. Pára-com-isso? Ah! Paraíso! [uma piada no segundo livro]

Dulce Acho que é um texto muito amável.

Vera Tem um lado lúdico.

Dulce Preocupei-me muito com isso, porque eu entediava-me muito facilmente [em criança].

A Bíblia de Lôá – Lôá e a véspera do primeiro dia
Editora Tinta da China
Nº de páginas: 56
PVP: 12,9€

A Bíblia de Lôá – Lôá perdida no paraíso
Editora Tinta da China
Nº de páginas: 56
PVP: 12,9 €