Apesar de terem sido escritas na década de 1960 e 70, as canções de Bob Marley são tão atuais como há 50 anos. Mensagens de esperança, dignidade, justiça, amor e união moldaram milhares de perspectivas, numa Jamaica pós-colonial, pobre e oprimida. Juntou políticos rivais (em plena guerra política) de mão dada em palco e alimentou pobres com royalties. São muitas as histórias na vida e carreira do músico jamaicano.

Dotado de um talento e estilo inconfundível, Bob Marley inspirou várias gerações com as suas canções. Mas, e essa é uma das virtudes da música, por detrás de uma boa canção estão (quase) sempre boas histórias.

Bob Marley morreu há 34 anos e o Observador recorda a vida de um artista intemporal que vai para além da sua música.

Stir It Up (1973)

Stir It Up é a primeira faixa do Lado B de “Catch a Fire”, disco de 1973 dos The Wailers. Ainda a sonoridade e história de Bob Marley estava a começar: a gravação original soava a rocksteady e Marley ainda só era conhecido como membro dos The Wailers (só em 1974, com o disco “Rasta Revolution”, proclamou a individualidade ao intitular o grupo de Bob Marley & The Wailers).

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Marley casou-se aos 21 anos com Rita Marley e, apesar dos vários affairs ao longo da vida, foi o relacionamento que o acompanhou até à morte. Em 1967, um ano depois de se casarem, Bob Marley escreveu “Stir It Up”. Apesar desta canção estar aberta a muitas interpretações — devido à ambiguidade da expressão “Stir It Up”, que pode significar mudar de posição/provocar/agitar/incitar — Marley escreve-a pensando em Rita. E isso não é novidade: Rita é a musa do cantor jamaicano em muitas canções.

Apesar de ter sido Bob Marley a compor a música, não foi ele que a celebrizou. Marley escreveu esta canção para Johnny Nash, cantor e ator texano conhecido pelo hit “I can see clearly now”, que ficou impressionado com o talento do jovem Bob. Esta foi a canção que fez a música dos Wailers chegar à Europa e ao resto do mundo.

Quando, em 1973, o disco da “Stir It Up” foi lançado, a reacção foi notável: foram em digressão abrir 13 concertos da lendária banda de soul Sly and the Family Stone. A qualidade e sucesso da banda de Bob Marley foi tanta que, apenas quatro espetáculos depois, os Sly and the Family Stone despediram-nos: estavam a ser eclipsados pelo sucesso da banda de Marley.

Jammin’ (1977)

Em 1976, uma tentativa de assassinato e o sucesso do disco “Rastaman Vibration”, a primeira abordagem política e espiritual de Marley na música, deu-lhe um lugar de destaque. O tiro que ia tirando a vida a Marley fê-lo fugir da Jamaica para Inglaterra. O contacto com outro continente abriu-lhe novas perspectivas e deu-lhe mais destaque. O sucessor de “Rastaman Vibration” foi muito antecipado.

Foi no verão de 1977 que saiu “Exodus”, o nono álbum de Bob Marley & The Wailers. O disco está dividido em duas partes: o Lado A explora temas políticos e religiosos e o Lado B aborda sentimentos, sexualidade e esperança. E “Jammin’” tem uma mensagem simples: “quero fumar marijuana contigo e conversar”. Mas aqui não há nenhuma má intenção, afinal de contas “Jammin’” é uma acção rastafariana de sentar, relaxar, fumar cannabis e, amigavelmente, discutir certos assuntos relacionados com a vida, filosofia e ética.

Em 1978, a circunstância política dava muito sentido à canção: a Jamaica vivia uma guerra civil política entre o partido trabalhista, liderado por Edward Seaga, e o partido social-democrata, liderado por Michael Manley. Para amenizar a violência, foi criado o One Love Peace Concert e o sucesso do evento dependia da presença de Bob Marley, que tinha exilado para Inglaterra. Marley aceitou o convite e, enquanto tocava a “Jammin’”, os dois políticos rivais deram as mãos num gesto de união, colocando-as no ar.

Enquanto ocorria o simbólico acontecimento, ao som da icónica canção, Bob improvisava: “Estamos a convidar alguns lideres a apertarem as mãos… Para mostrarem ao povo que estão a amar da maneira correcta, para mostrarem que vão unir as pessoas, para mostrarem ao povo que são cintilantes, para mostar ao povo que está tudo bem e que vai correr tudo bem.”

Waitin’ In Vain (1977)

Tanto a “Jammin’” como a “One Love” mereceram lugares de destaque em “Exodus”, um álbum que é, para muitos, o magnum opus de Bob Marley. Mas este disco deu mais canções intemporais. Uma delas é “Waitin’ in Vain”, sétima faixa do disco. É uma canção para apaixonados, como só Marley sabe fazer: 4 minutos de puro reggae inspirado pelo balanço soul, sensual e apaixonado de um Marvin Gaye, Al Green ou Barry White.

Esta canção foi inspirada na Miss Mundo de 1976, Cindy Breakspeare, com quem Bob Marley se envolveu. Isto gerou muita polémica entre a imprensa, acusando Marley de trair a mulher, Rita Marley. Apesar de ignorar publicamente os casos de Bob Marley, Rita recusou sempre cantar esta música ao vivo.

As saudades que Marley sentiu por Cindy Breakspeare foram escritas durante o seu auto-exílio, em Inglaterra. Porque, uns meses antes de abandonar a Jamaica, o tempo que Bob teve com Cindy Breakspeare serviu para fortificar o romance e conceber Damien Marley, o popular cantor Reggae. Outra faceta conhecida de Bob Marley é a sua extensa paternidade: tem (oficialmente) 11 filhos.

Redemption Song (1979)

Na etapa final da sua vida, Bob Marley enfrentou os dilemas da própria mortalidade. Quando, em 1979, lhe foi diagnosticado um cancro nos dedos dos pés, Marley recusou qualquer tipo de intervenção médica. Ele estava ciente de que, mais tarde ou mais cedo, o cancro ia espalhar-se e matá-lo. Mas Marley deixou o seu legado bem claro na última faixa do seu último disco, “Uprising”.

“Redemption song”, canção que fecha a carreira e vida de Bob Marley, é um dos melhores resumos da sua visão: “Emancipem-se da escravatura mental, só vocês o podem fazer”. Este pequeno excerto do tema é uma menção ao líder político jamaicano Marcus Garvey, conhecido pan-africanista e uma das principais influências de Marley.

Quando Marley foi entregar as demos para o disco “Uprising” à editora, um dos responsáveis da discográfica sentiu que faltava alguma coisa. No dia seguinte Marley apareceu com uma canção simples, fazendo-se acompanhar apenas por uma guitarra, uma mensagem forte e uns acordes trovados ao estilo de Bob Dylan. Era a “Redemption Song”, uma canção que demorou um dia a ser escrita.

Esta foi também a última canção que Bob Marley tocou ao vivo, em Pittsburg, em Setembro de 1980. Nos últimos dias converteu-se à religião cristã ortodoxa da Etiópia, sem nunca abandonar o rastafarismo.

Quem nunca abandonou Marley foi a mulher, Rita. Ela relembra, na January Magazine, uma das últimas memórias que tem de Marley. Ela estava com ele, segurando-lhe a cabeça enquanto cantava “God Will Take Care of You”, um famoso hino cristão. Rita começou a chorar, pedindo-lhe para não a abandonar. Ele fitou-a nos olhos e disse “Abandonar-te Rita? Porque é que estás a chorar? Não chores, Rita! Continua a cantar! Nunca pares de cantar! Canta, sempre!”.

E assim foi: a Rita e inúmeras pessoas continuaram a cantar, dando voz ao legado que Bob Marley deixou, um legado que é intemporal. Haverá sempre Bob Marley enquanto alguém cantar uma Canção de Redenção.

Texto editado por Pedro Esteves.