Já se passaram 20 anos desde a primeira aparição de Lara Croft num videojogo. Ela foi a primeira grande protagonista feminina num videojogo, considerado um blockbuster. Todos os que conhecem a indústria poderão dizer que Lara Croft não foi a primeira, já anteriormente houve outras protagonistas femininas, tal como Veronica de Resident Evil ou Carmen Sandiego de Where in the world is Carmen Sandiego. Concordarei com esse detalhe – não foi a primeira protagonista num mundo até então quase exclusivamente masculino.

Mas Lara Croft não foi uma personagem feminina qualquer. Lara não é uma personagem selecionável e opcional num jogo em que podemos optar pelo personagem masculino. Lara é A personagem – a pele que o jogador veste no momento em que opta por se aventurar no mundo de Tomb Raider, quer o jogador queira, quer não.

Quando Lara ainda era… um homem

Começando a ser desenvolvida por Toby Guard em 1993, num trabalho de design gráfico para a Core Design, uma empresa subsidiária da Eidos, Lara começou por sem um homem de chapéu e chicote, na mente do seu criador. Com os primeiros desenhos apresentados ao gestor do projeto, era mais do que obvia a semelhança desse personagem com o mítico Indiana Jones. Temendo as repercussões legais que tais semelhanças pudessem trazer à sua empresa, o co-fundador da Core Design, Jeremy Smith, pediu a Guard para alterar o desenho, pedindo-lhe para ser mais original. Como resposta ao pedido, decidiu que um personagem feminino seria mais eficaz, quer do ponto de vista do design quer na forma como a sua criatividade iria ser avaliada.

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Jeremy Smith aceitou com ceticismo esta drástica mudança de género na personagem principal, sobretudo porque não sabia como os jogadores masculinos iriam reagir perante uma heroína que se afastava de todos os estereótipos até então criados sobre mulheres. Toby Guard defendeu a sua decisão, alegando que uma mulher seria o isco perfeito para o jogador-homem. Afinal, esta é a dualidade mais antiga do Mundo.

Tomb Raider (3)

A criação de Lara não foi linear. Toby experimentou uma aparência militar nazi e também algo semelhante a uma dominatrix, mas tudo lhe parecia exagerado. Depois de consultar muitos outros desenhos, nomeadamente criações de bandas desenhadas, Toby encontrou na sexy Tank Girl, a inspiração para a Lara Croft. Na imaginação de Toby, Lara chamava-se Laura Cruz, era proveniente da América do Sul e a sua história era de luta e rebeldia. Jeremy Smith pareceu não concordar… uma personagem feminina já era arriscar muito nesta indústria, pelo que dois riscos em vez de um não era algo que Jeremy estaria interessado em investir. Laura Cruz torna-se então britânica, de forma a apelar mais facilmente ao jogador europeu. Assim nasceu Miss Lara Croft, uma arqueóloga proveniente de uma família aristocrática de terras de Sua Majestade, com um físico invejável, muito inteligente e carismática, que adora explorar os grandes mistérios do universo sozinha.

Tomb Raider tomou o mercado de assalto

O primeiro jogo, lançado em 1996 para PC, Sega Saturn e PlayStation, foi um sucesso imediato e estrondoso, foi aclamado por críticos e jogadores e atingiu, na altura, vendas milionários na casa das 7 milhões de cópias – um sucesso extraordinário nunca sonhado pelos seus criadores. Mesmo com este sucesso, o criador abandona a Eidos e a Core Design por se sentir demasiado controlado e limitado criativamente.

A saída de Toby Guard foi bastante notada na qualidade dos títulos subsequentes, atingindo uma descida de qualidade catastrófica com a horrenda quinta iteração da série, Angel of Darkness, um título que quase pôs fim à aventura. Jeremy Smith pede (ou terá implorado?) a Toby Guard que regressasse à produção de Lara Croft, ainda que fosse apenas como consultor, para garantir que a personagem regressasse à sua glória. Com Toby Guard a supervisionar o processo criativo, a Eidos lança Tomb Raider Legends, Tomb Raider Anniversary e Tomb Raider Underwold, três títulos que regressam à qualidade original do franchise, com uma Lara mais modernizada e humana.

Em 2009, a Eidos é adquirida por uma das principais companhias de videojogos do Mundo, a nipónica Square Enix, responsável por títulos únicos como Final Fantasy, e decide dar à franquia um absoluto recomeço. Poderá mesmo dizer-se que foi um corte definitivo com o passado, o renascimento das cinzas de um título que procurava desesperadamente o brilho de outrora. Em 2012 esse renascimento acontece… e foi glorioso.

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Esta é a história cronológica de Lara Croft. A biografia, as fases principais da sua criação e desenvolvimento que podem ser encontradas, com alguma pesquisa, em todos os meios especializados nesta indústria. Não contei aqui nada que não encontrassem em qualquer página de wikipedia informada ou num site do género minimamente informado sobre o trabalho de pesquisa.

O que os sites não dizem é a verdadeira importância de Miss Lara Croft, para lá de números e vendas de um jogo. Para lá do sucesso comercial, da sua figura física que povoa a imaginação e fantasias de muitos, para lá do ícone dos videojogos, está um verdadeiro marco de inspiração para muitas mulheres (eu inclusivamente) e uma autêntica revolução feminista comprimida em 230 polígonos (no seu desenho original).

Lara Croft: a mulher, real e tangível

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Lara fez mais que ser uma protagonista. Lara cortou em absoluto com a imagem da “fêmea” que necessita da ajuda do “macho”, da mulher que não consegue lutar sozinha, da dama em perigo que necessita que um homem corra em sua salvação. Se Walt Disney povoou a infância de milhares de mulheres com a ideia que uma princesa nada consegue sem o seu príncipe, Lara mostra que uma princesa pode ser tão capaz como qualquer príncipe.

Lara não tem medo do escuro. Lara não tem medo de insetos nem se assusta com o oculto. Lara não é uma heroína invencível, como todos os super-heróis masculinos da altura. Não se transforma em algo superior a si para ultrapassar os seus obstáculos. Bruce Wayne, Clark Kent, Peter Parker… todos eles têm uma versão avançada de si mesmos, representados em Batman, Superman e SpiderMan. Lara é simplesmente… Lara. Não existe uma versão com força inumana de Lara – existe simplesmente ela, a sua coragem, o seu cérebro, a sua destreza e inteligência.

Lara consegue ainda uma façanha absolutamente única, frequentemente ignorada por todos. Com uns atributos físicos bastante generosos, que não poderiam ser mais sexualizados (principalmente nos jogos originais), Lara jamais utilizou a sua sexualidade para conseguir seja o que for. Lara é simplesmente linda, mas a sua beleza é apenas integrada como um isco para atrair o jogador – mas ele jamais poderá explorar essa faceta que a constitui, porque essa não é a característica primordial da personagem.

Parece um detalhe de somenos importância, não parece? E até que estou a sugerir que todas as mulheres utilizam o corpo para conseguirem o que querem, o que é totalmente errado. Mas no mundo dos videojogos, ainda predominantemente dominado por homens, haver uma mulher que povoa as fantasias de todos simplesmente sendo quem ela é, sem a necessidade de objetificação sexual, constitui um avanço de mentalidade que todas as indústrias deveriam seguir.

The Rise of the Tomb Raider

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Tal como já referi, 2012 foi o ano do renascimento de Lara Croft. Uma mulher real, que chora, sofre, luta e aprende com os seus erros – em suma, uma Lara mais humana (mesmo na aparência). Esta Lara renascida, embora assumindo um corte com a sua origem, não deixa de ser ela mesma – independente, intrépida e inteligente como sempre foi.

Num mundo em que muitas adolescentes têm como ídolos a Miley Cirus, Taylor Swift e outras artistas do género, que constroem a sua carreira mais preocupadas com o corpo e sexualidade do que com o talento, escrevendo milhões de canções sobre o facto de os homens as terem largado e de como não conseguem sobreviver sem eles, é absolutamente curioso e intrigante, já para não dizer irónico, que o grande ídolo verdadeiramente feminista no mundo do entretenimento seja construída por polígonos e píxeis.

Nesta época em que muitas jovens mulheres defendem uma visão deturpada do feminismo, que não é mais do que o machismo vestido de outra maneira, é certamente irónico ver como uma mulher virtual nos mostra o que a inteligência, coragem e independência conseguem conquistar e até que ponto podem ser um símbolo feminista.

Lara Croft não é uma mera personagem de um jogo. Tornou-se, com muita rapidez, um símbolo de uma geração. Uma Mulher, ficcional, mas de um realismo tangível.

Alexa Ramires, Rubber Chicken