E se nem todos aqueles turistas que vê nos cafés lisboetas, absortos nos seus computadores e iPads, fossem afinal turistas, e estivessem sim a trabalhar para uma qualquer empresa sediada noutra parte do mundo? E se eles pertencessem, afinal, ao nomadismo digital, um movimento que vai ganhando dimensão e que lhes permite andarem a saltitar de cidade para cidade, de país para país, conforme lhes apetece, enquanto vão trabalhando, numa startup ou por conta de outrem, como qualquer trabalhador normal?

A ideia pode parecer tão absurda quanto irreal, mas é bem mais verdade do que imagina. Nos últimos anos, tem crescido o número de nómadas digitais: pessoas que, trabalhando à distância — isto é, sem estarem obrigados a trabalhar num escritório ou espaço físico circunscrito. Decidem juntar o útil ao agradável, e viajar mundo fora sem sair das suas rotinas de trabalho.

Pelo menos desde os anos 60, altura em que o filósofo e teórico da comunicação Marshall McLuhann popularizou a metáfora do mundo enquanto “aldeia global”, que a tecnologia tem abolido as barreiras físicas que separam os povos. É a tecnologia que permite que hoje alguém possa, por exemplo, estar a trabalhar em Portugal para uma empresa espanhola, usando a tecnologia como meio. Há cada vez mais programadores, escritores, bloggers e publicitários — entre tantos outros profissionais — a poderem trabalhar à distância, usando um computador como ferramenta. A poderem sair de casa e ir viajar constantemente enquanto trabalham. São os nómadas digitais.

Os nómadas digitais não querem viajar como os turistas — querem visitar as cidades, ir a eventos culturais, conhecer pessoas e ter rotinas diárias (de vida social, de trabalho) semelhantes às dos locais. Só que em vários pontos do mundo. Querem aproveitar o fim da segurança e da estabilidade (o emprego para a vida, a certeza de que não precisam de emigrar) a seu favor e explorar o mundo como as tribos passadas.

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“Há uns dias tivemos mais de 300” nómadas digitais em Lisboa

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Ioannis Papoutsis sempre gostou de viajar. Hoje, concilia as viagens com o trabalho e tem uma empresa no Reino Unido, para a qual tem trabalhado a partir de Lisboa

Há ainda pouca informação estatística sobre o número de nómadas digitais que existem pelo mundo. Sabe-se, isso sim, que são cada vez mais, entre os que adotam o estilo de vida por gostaram de viajar com grande regularidade e o seu trabalho o permitir e os que estão obrigados a viajar constantemente porque o próprio trabalho assim o exige.

Ioannis Papoutsis está entre os primeiros. Tem 26 anos e chegou a Lisboa em setembro do ano passado, para trabalhar com a Beta-I, depois de ter participado no programa EU Brazil Connect, no Brasil, onde colaboração na “promoção de parcerias e colaboração entre empresas brasileiras e europeias”. Quando lá chegou, “não conhecia a definição de nómadas digitais”, conta ao Observador. Rapidamente ficou “com o bichinho” de viajar.

Quando viajas ficas com o bichinho. E quando chegas a casa é difícil enquadrares-te. Algumas pessoas [entre os nómadas digitais] andam à procura da sua casa — como eu”, diz.

Apercebeu-se cedo, contudo, que para viajar precisava de trabalhar — mas que o podia fazer em simultâneo. E viu que, como ele, muitos também o podiam fazer. Ioannis encontrou nesta nova moda uma oportunidade de negócio e lançou a sua própria empresa, juntamente com a britânica Mevish Aslam. Chama-se Terminal 3, tem sede no Reino Unido e vende um serviço destinado a nómadas digitais: um programa de seis meses a viajar por outros tantos países (Marrocos em julho, Alemanha em agosto, Hungria em setembro, Coreia do Sul em outubro, Tailândia em novembro e Indonésia em dezembro), que providencia aos clientes os voos, o alojamento, os espaços de coworking e o Wi-fi que estes nómadas digitais precisam para conciliarem as viagens com o trabalho que já fazem à distância. Em Lisboa, Ioannis diz ter conhecido muitos nómadas digitais.

Há uns dias éramos mais de 300, porque tivemos três ou quatro comunidades de nómadas digitais presentes em Lisboa em simultâneo. Os picos [em Lisboa] são por volta do verão, presumo, porque é uma cidade atrativa para os nómadas, especialmente nessa altura: é um país low-cost, com boas temperaturas, boa comida, etc”, explica.

Para as empresas, este modelo de trabalho também tem os seus desafios, diz. E exemplifica dois: a comunicação interna e a importância de estas assegurarem que, independentemente de um funcionário não trabalhar num dos seus escritórios, não deixa de estar comprometido com o trabalho. “Isto vem trazer uma mudança à gestão de recursos humanos, mas estes problemas podem ser na sua maioria resolvidos. Um dos segredos é a comunicação e muitas das empresas que têm estas equipas comunicam muito [com os seus trabalhadores] e mais e melhor” do que muitas outras.

Conciliar o trabalho com o facto de estar em permanente viagem, diz, é uma realidade que também tem os seus desafios. Ioannis Papoutsis lembra que é preciso ter cuidado “com as diferenças horárias”, por exemplo, para que tudo corra bem. O principal problema que se coloca no dia-a-dia de quem trabalha fora do seu ambiente natural é, contudo, “o Wi-fi”, garante, porque este é essencial para o trabalho. “E há as relações, que são difíceis de manter [à distância]. Depois há o facto de teres de planear tudo, cada vez que viajas. Encontrar bons espaços de trabalho, alojamento, eventos interessantes, meetups [encontros com outros nómadas digitais], demora muito tempo”, acrescenta ainda. Quanto aos benefícios que o nomadismo digital pode trazer a países como Portugal, aí não tem dúvidas.

Imagina que 10.000 americanos, em vez de viverem nos Estados Unidos, decidem ir viver [temporariamente] para Portugal. O que achas que acontece a Lisboa? Essas pessoas passam tempo aqui, compram coisas aqui, contratam pessoas aqui. Quando és um nómada digital, também te tornas um morador local, mais ou menos. Não gastas dinheiro apenas em centros comerciais, como os turistas; vais a pequenas lojas, a lugares menos conhecidos, ficas durante mais tempo”, defende.

“Estás a viajar… mas tens de manter o foco no trabalho”

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Uma das comunidades de nómadas digitais que passou por Lisboa em junho foi a da Toptal, uma empresa de recrutamento de talento freelancer nas áreas da programação e design, em que toda a equipa trabalha à distância. A empresa norte-americana juntou, entre 28 de maio e 12 de junho, mais de 15 membros na Surf Office Lisbon, um espaço de alojamento e coworking situado na capital portuguesa, para workshops, palestras e convívio entre membros.

Asael Arenas foi um deles. Ao Observador, conta que já concilia o trabalho com as viagens há mais sete anos. “No início comecei com o desejo de conhecer o mundo”, conta. Também com ele o bichinho foi crescendo. Para poder continuar a viajar, teve de seguir uma carreira de freelancer, o que, garante, ajudou até a conhecer mundo, porque “quando se está a trabalhar e viajar em simultâneo, há menos preocupações com o dinheiro que se gasta nas viagens, porque se continua a receber”. Como já faz isto há muitos anos, Asael Arenas não deixa de fazer um alerta: conciliar o trabalho com as viagens implica não esquecer a palavra “trabalho”.

Um dos principais desafios é teres sempre em consideração que, mesmo que estejas a viajar pelo mundo, tens de te focar no teu trabalho, tens de gerir muito bem o teu tempo”, nota.

Em relação à possibilidade de se trabalhar a partir de vários pontos do mundo, o responsável da Toptal não tem dúvidas de que ela será cada vez mais comum. “A tendência será essa, porque, para qualquer profissional que possa fazer o seu trabalho a partir de um computador, qualquer lugar com Internet permite fazê-lo” bem. O seu colega Dejan Milosevic concorda mas diz que, em termos legislativos, há muito a fazer, porque “não há nenhuma lei” que os enquadre.

Para a lei, ou és um turista ou és um cidadão que vive de forma permanente num sítio. Nós estamos entre uma coisa e outra e não há nenhuma lei que cubra nenhuma área da nossa vida. Em termos de vistos [específicos], seguros de saúde, impostos, tudo o que possas imaginar, em termos de legislação, está muito atrasado para o que acho que é expectável existir no futuro. Em termos de iniciativas privadas que te facilitam a vida — desde as ferramentas de comunicação até ao aluguer de espaço para trabalhar, coisas desse tipo —, houve uma explosão nos últimos dois, três anos”, diz.

“Gosto do facto de poder conhecer pessoas em todo o mundo”

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Como para chegar aos 300 nómadas digitais não chegam as quatro comunidades que em junho chegaram a Lisboa — a Nomad Cruise, a CODINO, a Toptal e a Dynamite Circle —, muitos foram aqueles que, trabalhando à distância, chegaram a Lisboa sozinhos, como habitualmente viajam. Matous Vins, por exemplo, chegou à capital portuguesa no final maio, depois de sete meses fora da Europa — ele que nasceu na República Checa e já não vive hoje, propriamente, em nenhum lugar específico.

Não tem nenhuma profissão fixa mas trabalha em várias áreas: em publicidade no Facebook, para empresas que tem como clientes, num site criado devido a um livro que publicou recentemente, “Travel Bible” [em português, “a Bíblia das viagens”] e a escrever artigos para revistas — “maioritariamente, mas não só, sobre viagens”.

Ao Observador, conta que um dos principais fatores que o leva a escolher um destino é a meteorologia. “Como qualquer nómada digital, ou como a maioria dos nómadas digitais, viajo porque não gosto do inverno. Gosto mais do verão”, atira, sorridente. Mas há mais fatores que estes trabalhadores-viajantes têm em conta, aponta: “A comunidade de pessoas que trabalham na mesma indústria, a comunidade de nómadas digitais de cada local — e acho que essa é uma das razões pelas quais Lisboa é tão popular, porque aqui está cada vez maior —, o custo de vida — que não considero o principal fator — a segurança, a comida e a cultura”.

Para ele, contudo, o custo de vida tem mais importância do que para muitos dos seus colegas. “Não ganho muito porque a República Checa é… bom, mais ou menos o mesmo que Portugal. Não sou o tipo americano que fica na Tailândia”, atira com ironia. “Claro que mesmo assim ganho muito mais que os tailandeses, mas tenho de gerir bem o meu dinheiro, não gastar mais do que ganho. Essa é uma preocupação. O primeiro problema até começou por ser a relação com os meus clientes [pelo facto de estar a viajar], mas depois de dois anos neste registo as coisas já estão tranquilas”.

Nisto de viajar, gosto mesmo muito do facto de poder conhecer pessoas de todo o mundo, com interesses e princípios semelhantes. E gosto muito de poder explorar mais as comunidades locais do que um turista: posso ficar mais tempo e ter o mesmo ritmo de vida — trabalhar durante o dia, ter as noites e os fins de semana livres. E conhecer os locais, não apenas os nómadas”, acrescenta, explicando ainda que enquanto cá esteve alugou um espaço no Cowork Lisboa, porque em lugares como esses “é fácil conhecer pessoas e é mais fácil estar concentrado do que em casa — é estranho sentares-te ali e andares a ver o Facebook, o que facilita a concentração”.