O caso de condenação do Estado português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) por não respeitar a liberdade de expressão e de imprensa da revista Visão não é único. Desde 2005, Portugal já foi condenado 20 vezes por violar a Convenção dos Direitos do Homem no que respeita à proteção desses direitos.

Segundo o relatório “Criminalização da difamação em Portugal”, elaborado pelo International Press Institute (IPI) e revelado pelo jornal Público, o Estado português já tinha sido condenado 18 vezes entre 2005 e 2015. Esse valor que aumentou para 20 após novas condenações conhecidas em março (relativa a uma queixa da SIC) e hoje (que diz respeito à revista Visão).

As condenações do Estado português, contudo, são reduzidas face às queixas apresentadas. Francisco Teixeira da Mota, advogado do jornal Público que acompanha de perto os trabalhos daquele tribunal europeu, confirmou isso mesmo durante uma conferência realizada em 2011 sobre o TEDH. Citado pela TVI 24, Teixeira de Mota referiu naquela altura a existência de 13 condenações entre 2000 e 2011, tratando-se essencialmente de “casos à volta de condenações de jornalistas ou de políticos”. Neste último caso, estamos a falar de “críticas políticas e de expressões violentas e contundentes utilizadas, como aldrabão ou grotesco”.

A violação da liberdade de expressão não é, contudo, o motivo mais evocado pelo cidadãos portugueses que se queixam no TEDH. De acordo com um levantamento realizado pelo jornal i em novembro de 2015, das 289 queixas apresentadas contra Portugal desde 1978 (ano em que Portugal subscreveu a Convenção dos Direitos do Homem), a morosidade da justiça e a proteção da propriedade (particularmente durante o período revolucionário) são os motivos mais vezes evocadas para a abertura de um processo naquele tribunal.

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O que é o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem?

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Ao contrário do que se julga, o tribunal não tem nenhuma relação com a União Europeia. Foi criado em 1959 pelos membros fundadores do Conselho da Europa e zela pela aplicação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Portugal subscreveu esta Convenção em 1978 e obrigou-se a aplicar desde então as decisões daquele tribunal. Qualquer cidadão que esgote os meios judiciais ao seu dispor em Portugal, pode recorrer ao tribunal para tentar reparar eventuais danos sofridos por conta da violação dos seus direitos. As condenações judiciais ou a morosidade da justiça são a principal razão dos processos intentados contra Portugal.

Os casos mais relevantes: Pinto da Costa e os jornalistas

José Manuel Mestre, jornalista da SIC, foi protagonista de um caso raro: foi processado por difamação por Pinto da Costa, presidente do FC Porto, por ter feito uma pergunta. Mas nem sequer foi uma pergunta àquele dirigente do clube. O caso remonta a 1996, quando Pinto da Costa acumulava as funções de chefia do seu clube de sempre com a liderança da Liga de Clubes. Mestre questionou Gerhard Aigner, presidente da UEFA, sobre se era possível que um presidente de um clube, que ao mesmo tempo era líder da estrutura que organizava o campeonato, se sentasse no banco de suplentes à frente do árbitro, de quem era, por inerência, patrão. Pinto da Costa recorreu aos Juízos Criminais do Porto por se sentir difamado e ganhou: o jornalista da SIC foi condenado ao pagamento de uma multa de 3.990 euros. A estação de televisão e o jornalista recorreram para os tribunais superiores mas perderam sempre.

A SIC e Mestre recorreram ao TEDH que, em 2007, deu-lhe razão por entender que a decisão era “ilegítima, injusta e infundada” por violar um “direito fundamental do cidadão”: o da liberdade de imprensa.

Mais tarde, o tribunal de primeira instância que tinha condenado José Manuel Mestre retificou a decisão e absolveu o jornalista.

Afonso de Melo foi outro jornalista a ter problemas com Pinto da Costa. Condenado pelos Juízos Criminais do Porto e pela Relação do Porto a pagar uma indemnização de 7.600 euros ao presidente do FC Porto por, num livro, o ter apelidado de “campeão nacional dos arguidos” e “inimigo fidagal da seleção nacional”, viu o TEDH dar-lhe razão por os tribunais portugueses não terem reconhecido a importância da liberdade de expressão.

O Sporting e a verdade material

Um dos casos mais relevantes prende-se com outro clube desportivo: o Sporting Clube de Portugal. O jornal Público divulgou a 22 de fevereiro de 2001 um documento da Direção-Geral de Finanças que comprovava que o Sporting devia cerca de 460 mil contos (cerca de 2,2 milhões de euros) ao Fisco.

O clube, que alegava que tal informação era falsa, recorreu aos tribunais. A primeira instância absolveu o diretor da publicação e os jornalistas que assinaram a notícia mas o Supremo Tribunal de Justiça condenou-os ao pagamento de uma indemnização de 75 mil euros ao Sporting. Apesar de reconhecerem que a dívida fiscal existia, logo que a notícia era verdadeira, os juízes conselheiros que julgaram o caso entenderam que o direito ao bom-nome do Sporting tinha sido violado com a publicação daquelas informações.

O TEDH discordou totalmente da Justiça portuguesa por considerar que o artigo do Público era “manifestamente de interesse geral” e tinha uma “base factual”, como era comprovável pela documentação fiscal apresentada. Portugal foi condenado a pagar uma indemnização de mais de 83 mil euros, acrescidos de mais 6 mil euros relativo a custas e a despesas.

A violação do segredo de justiça na imprensa regional

Também a imprensa regional portuguesa tem sido protagonista de queixas relevantes apresentadas no TEDH. Duas delas foram conhecidas em 2014.

A primeira está relacionada com uma notícia do Jornal do Centro, de Viseu, que em 2002 revelava em manchete que o Tribunal de São Pedro do Sul tinha transmitido boa parte do mobiliário antigo à Santa Casa da Misericórdia local mas também a alguns dos seus próprios funcionários. Este alegado caso de favorecimento levou a uma queixa apresentada no mesmo tribunal contra o autor da notícia (Fernando Giestas) e a diretora da publicação de Viseu, tendo o processo terminado com a condenação dos jornalistas ao pagamento de uma indemnização de 7.500 euros devido a “insinuações maliciosas” e a “falsidades”.

O TEDH decidiu dar razão aos jornalistas por considerar como imprescindível o papel de escrutínio da imprensa e a liberdade de expressão como “um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática”. O Estado foi condenado a pagar uma o mesmo valor das multas aplicadas, além dos honorários do advogado dos queixosos.

Outro caso relevante prende-se com o “Notícias de Leiria”. António José Laranjeira, então jornalista daquele semanário e hoje diretor-geral de uma agência de comunicação, foi condenado pela Justiça portuguesa por alegadamente ter revelado em 2000 pormenores de um processo judicial relativo a “agressões sexuais” que envolviam um médico e um político local. Em virtude da alegada prática dos crimes de violação do segredo de justiça e de difamação, foi condenado pelo Tribunal de Leiria ao pagamento de uma indemnização de 5.000 euros.

O TEDH entendeu, como costuma fazer quando dá razão a jornalistas, que o Estado português violou o artigo 10.º da Convenção dos Direitos do Homem e que a condenação imposta em Portugal era “excessiva”, pretendendo igualmente “dissuadir” o exercício da liberdade de imprensa. O Estado português foi obrigado a pagar uma multa de mais de 8 mil euros ao ex-jornalista.

Um erro judiciário censurado pela forma como foi revelado

Sofia Pinto Coelho, jornalista da SIC que acompanha a área da Justiça desde os primórdios daquela estação televisiva, defendeu em 2005 a inocência de Éder — jovem de 18 anos que tinha sido condenado pelo Tribunal de Sintra a uma pena de quatro anos e meio de prisão por roubo de um telemóvel e de um par de brincos.

Uma das provas essenciais da reportagem da SIC, inserida numa série sobre erros judiciários, prendiam-se com sons de uma audiências em tribunal, cuja divulgação apenas aconteceu após a leitura da sentença — mas que não tinham obtido a prévia autorização do presidente do coletivo de juízes do julgamento de Éder.

O juiz presidente do Tribunal de Sintra apresentou queixa no Ministério Público pelo crime de desobediência qualificada e a jornalista da SIC foi acusada e condenada ao pagamento de uma multa de 1.500 euros.

O TEDH veio a dar razão a Sofia Pinto Coelho em março deste ano, defendendo o Estado não defendeu o direito à liberdade de expressão e à liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias. O facto da jornalista ter utilizado gravações do próprio tribunal (com o cuidado de distorcer as vozes dos intervenientes) após a leitura da sentença, levou o tribunal a decretar que a reportagem “não influenciou negativamente a boa administração da Justiça”

Influência do TEDH na aplicação da justiça (2015)

Todas estas decisões do TEDH têm influenciado o Ministério Público e os tribunais portugueses quando analisam queixas ou situações onde o direito à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa estão envolvidos.

Não só as queixas contra jornalistas por alegados crimes de difamação e de abuso de liberdade de imprensa têm sido analisadas pelos tribunais tendo em conta toda esta jurisprudência fixada pelo TEDH, como também o próprio Ministério Público começa a apreciar os casos de alegada violação do segredo de justiça tendo em conta o pensamento dos juízes daquele tribunal europeu.

Um desses casos, por exemplo, prendeu-se com o arquivamento de um processo aberto contra 55 jornalistas a propósito das notícias publicadas sobre as primeiras detenções de arguidos do caso Vistos Gold.

A procuradora do DIAP de Lisboa que arquivou o caso alegou precisamente que a jurisprudência do TEDH e o facto de o Estado português ser regularmente condenado por ter uma visão restritiva da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa. No caso em apreço das notícias sobre os Vistos Gold, que se iniciou com a detenção de altos quadros da administração pública, a procuradora Josefina Fernandes entendeu que existia um claro “interesse público da informação” revelada, sendo por isso legítimo o exercício da liberdade de expressão e de imprensa por parte dos jornalistas ao abrigo do “direito de informar”.