Título: “Anedotas do Nemésio”
Autor: Arnaldo Saraiva
Editora: Público e Exclamação
Páginas: 39
Preço: 6,90 €

anedotas do nemesio

Nas semanas em que o jornal Público publicitou a próxima saída deste livro, não consegui deixar de imaginar os motivos que teriam levado Arnaldo Saraiva, 77, a ocupar o seu tempo com isso. Parecia-me, desde logo, caso inédito ou raríssimo na história da universidade portuguesa que um professor de literatura viesse pôr a nu pequenas histórias dum prestigiado colega de ofício que como ninguém — incluindo ele próprio — ficou, fica e ficará na memória social como ave rara e homem de muitos e variados talentos.

Se o propósito fosse o de reclamar atenções devidas à figura do carismático escritor e professor, Arnaldo Saraiva podia ter escolhido outras vias de intervenção, desde logo recomendando — ou preparando — a edição das muitas centenas de crónicas e críticas literárias de Vitorino Nemésio que, quase quarenta anos depois da sua morte (1978), ainda continuam dispersas em jornais, revistas e separatas. Podia até, quem sabe, tentar focar nele uma atenção crítica que nunca lhe dedicou, em vez de preferir uma aproximação caricatural, ainda que embrulhada em elogios superlativos que, já tão gastos, nada dizem, esclarecem ou acrescentam.

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Mandaria a prudência e o decoro que esta compilação de fait-divers — nada ingénua ou inocente, e quase sempre desinteressante ou sem novidade — ficasse na gaveta como coisa de somenos, tanto mais que a ausência daquele resgate editorial duma parte substancial da obra nemesiana persiste, de facto, como maneira expedita de manter num limbo histórico um dos açorianos-portugueses mais admiráveis do nosso século passado, e como forma matreira de dissipar o seu extraordinário lastro para que outros, muito menos dotados do que ele, possam ser elevados a patamares exagerados.

E isso é tanto mais grave e pesaroso quanto, mesmo antes do 25 de Abril de 1974, Vitorino Nemésio já havia sofrido, no meio literário e universitário, um nítido menosprezo politizado, por exemplo por não ter aderido a iniciativas de frentismo oposicionista tão em voga nas décadas de 1950-60 ou por ter dado colaboração a revistas “do regime marcelista” como Observador de Artur Anselmo, e depois de Abril de 1974 por ter sido grosseiramente confundido com separatistas ferozes, quando o que sempre esteve em causa para Nemésio — e muito bem — era que os Açores, que ele tanto amava, não fossem contaminados pela loucura gonçalvista ou subjugados aos interesses geoestratégicos da União Soviética (servidos por peões continentais e ilhéus), ou por, nesses tempos adversos, ter oferecido o seu trabalho e prestígio a esforços democráticos por uma imprensa livre de garrote estatal ou partidário de qualquer espécie.

Arnaldo Saraiva não se coibiu de passar a papel impresso este inesperado, subtil e ridículo ajuste de contas pessoal com um director de departamento académico que a dado momento não lhe abriu as portas que a sua vaidade petulante reclamava, da mesma maneira que, quiçá por idênticas razões, não deixou de tentar chamuscar a biografia de Jorge de Sena quando lançou num jornal a suspeição torpe de que o grande escritor havia sido afastado da Marinha por causa de um episódio homossexual ocorrido na sua viagem de tirocínio. É triste ver dois gigantes culturais serem atacados desta maneira, quando muito dificilmente haveria outra de atingi-los (e estando os dois mortos). Mas mais triste ainda seria deixar tais insultos passarem incólumes, sem que, aqui ou ali, se ergam gestos de indignação e repúdio…

O trabalho de Arnaldo Saraiva é tão mau que ele nem por um instante sequer equacionou — ou soube equacionar — quanto o especial humor de Nemésio pode ter origem na sua insularidade ou açorianidade (bastaria pensar no de António Dacosta, citado na p. 16, ou de Eduíno Jesus e de Onésimo Teotónio Almeida, entre outros), nem como a sua mundividência graciosa e espirituosa se nutria dessa tão invulgarmente superior “festa da linguagem” (p. 36) que o movia incessantemente. Mas não só os Açores foram esquecidos. Causa até perplexidade que o Brasil — que ambos conheciam bem, e que tão referencial foi para o Nemésio cronista de viagens e onde tanto conviveu com gente de primeira linha cultural — tenha ficado de fora desta “compilação anedótica”, seja em estórias seja em “informantes”, a não ser para lembrar o abacaxi que irritantemente faltou a Nemésio num almoço com Eduardo Lourenço na Bahia…

Que importa realmente que o professor traga um relógio despertador no bolso do casaco, uma gravata a mais no colarinho, assobie nas pausas dos exames ou diga que um certo vestido lhe lembra um embrulho de rebuçado, que barafuste com a empregada doméstica que lhe remexeu em livros e papéis espalhados, ou que use capelo e borla académicos oferecidos, ou demonstre distração (ou será abstração?), quando na verdade o que nós precisamos ou gostaríamos de saber — de sonhar saber… — é como é que este homem simplesmente pôde existir, como foi que nele se acumularam tão descomunais pirâmides de conhecimentos, poder descritivo fora de série e sinapses literárias e culturais plurisseculares, um homem dotado, além disso, de uma memória pessoal e cultural tão prodigiosa que podemos compará-lo a uma torre do tombo ambulante, favorecida por uma prodigiosa capacidade de linguagem e uma humanidade tão estofada.

Será uma “anedota” a pequena história contada por Maria Lúcia Lepecki (p. 9) segundo a qual Nemésio, “desinspirado de todo para a aula” que ia começar de ali a pouco, lhe pediu que “cantasse aí qualquer coisita”, e que no fim, tirando um livro da estante, foi falar sobre a fonte nas literaturas portuguesa e galega, deixando a assistente cantora “comovida até às lágrimas”?

Inversamente, merecerá o papel e tinta em que se imprime, contar que Margarida Jácome disse a amigos num almoço domingueiro em Borba que Nemésio “ressonou toda a noite passada”, ou que na Terceira familiares o acolheram com constrangimento quando chegou acompanhado pela sua famigerada amante, “marquesa, rica, culta e desinibida” (p. 23) e dezoito anos mais nova do que ele? Ou que ansioso pela chegada iminente de Margarida a Nice, deixou Eduardo Lourenço à espera dele para um almoço combinado, e que mais tarde “Eduardo e Annie iriam assistir a inimagináveis cenas amorosas representadas por dois velhos… adolescentes” (p. 22)? Ou que certa vez, numa refeição em casa, acabou distraidamente por comer a maçã que ficara de descascar para um filho pequeno?!…

Arnaldo Saraiva sentiu necessidade de justificar-se, desenvolvendo uma aliás apressada perspectiva histórica da anedota como género literário e uma superficialíssima recensão do humor na obra poética e ensaística de Nemésio (escapando-lhe a crónica, também essencial nesse contexto), para depois afirmar que “conseguimos reunir 47 anedotas de Nemésio, que decerto irão suscitar o aparecimento de algumas mais” (p. 34). Até nisso, o professor emérito da Universidade do Porto, que elenca as suas fontes impressas e os seus “informantes”, foi incapaz de lançar mão de mais bibliografia útil, conhecida por quantos se interessem consistentemente pela figura de Vitorino Nemésio, e de alargar a sua recolha a mais açorianos vivos (ficou-se por António Valdemar, cuja fotobiografia nemesiana tão-pouco inclui na bibliografia), como os acima citados Eduíno e Onésimo, mas também o historiador Artur Teodoro de Matos e o linguista João Saramago, ou já mortos, como Pedro da Silveira, um velho e enciclopédico contador de histórias. E isso é ainda mais surpreendente quanto a sua recolha agora publicada não é coisa recente, pois tanto os “informantes” (sic) Maria de Lourdes Belchior, António Manuel Couto Viana e Maria Lúcia Lepecki faleceram há já alguns anos (1998, 2010 e 2011, respetivamente).

Temos, portanto, na mão um folheto estranho que pretendeu apoucar um homem de grande envergadura que já não pode defender-se, mas faz ricochete sobre o seu autor, que não tem quem o defenda. “Ai, estes mosquitos!” (p. 7).