“A minha família é de Braga, sou minhoto e dizem que se nota muito no meu sotaque”, graceja Philippe Esteves Mendes, ao telefone a partir de Paris. “A minha família está toda no Minho, vou lá todos os anos, e gosto muito de ir a Lisboa, tenho aí um apartamento agora.”

Historiador, negociante de arte e fundador da Galerie Mendes, tornou-se subitamente famoso por ter doado ao Museu do Louvre uma pintura de Josefa de Óbidos que ele próprio comprou num leilão. O gesto deve-se à “ligação muito íntima e muito forte” a Portugal, justifica.

“Maria Madalena Confortada pelos Anjos”, óleo sobre cobre de 1679, custou-lhe nada menos que 239 mil euros. Desde a semana passada, pode ser visto por qualquer visitante do Louvre. De resto, as doações são prática habitual em França e têm permitido ao museu enriquecer a sua coleção de pintura.

“Trata-se de um quadro de grande qualidade, feito numa época em que as mulheres não podiam pintar, ou só pintavam temas específicos, como naturezas mortas ou flores, muito de vez em quando retratos, mas nada de temas religiosos ou temas históricos”, explica Philippe Esteves Mendes.

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“Neste sentido, Josefa de Óbidos foi uma mulher emancipada: assinava a obras, tinha um atelier, vendia os próprios quadros. Foi uma das poucas pintoras do século XVII na Europa que o fizeram.”

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O galerista nasceu em Paris e viveu em Braga durante alguns anos até regressar a França

Na família de Philippe Esteves Mendes há uma tradição de médicos e farmacêuticos. Ele fugiu à regra. Nascido há 40 anos em Paris, cedo se fixou a Braga, de onde os pais são naturais, mas regressou a França aos 11 anos.

Vive no centro da capital francesa e foi aí, no número 36 da Rue de Penthièvre, que em 2007 inaugurou a galeria de que é o único proprietário – perto dos Campos Elísios e a poucos minutos do Louvre. Há um ano, na mesma rua, abriu um segundo espaço da mesma galeria. Aparentemente, foi tudo por acaso.

“Comecei por estudar Direito, gostava sem gostar, mas sempre me interessaram as exposições em museus, ia ver muitas com colegas da universidade”, recorda. “Tive a sorte de conhecer colegas fantásticos que já tinham coleções. Quando ia jantar a casa deles via sempre muitas pinturas e comecei a adorar aquele meio e a ler cada vez mais sobre arte.”

Um dia, um amigo falou-lhe da abertura de vagas na Escola do Louvre, que ele hoje descreve como a escola de arte “mais prestigiada em França e uma das mais prestigiadas do mundo”. Candidatou-se e entrou em História de Arte, vindo a especializar-se em pintura italiana do século XVII.

“Não procurei nada, achei que era um sinal e inscrevi-me”, relata. “Quando começaram as aulas, estava a começar o terceiro ano de Direito, mas gostei tanto da Escola do Louvre que não parei. Ainda fiz o quarto ano de Direito, depois desisti e fiquei apenas em História de Arte.”

A atividade de negociante de arte e galerista terá sido outro acaso na vida deste luso-descendente. “Queria ser historiador, passei alguns meses em Roma, depois trabalhei durante cinco anos no Louvre e nessa altura comecei a dar conselhos a colecionadores privados. Muitos diziam-me para abrir a minha própria galeria.”

A oportunidade surgiu finalmente em 2007. Os clientes habituais são agora museus públicos franceses e norte-americanos, assim como colecionadores privados franceses, americanos e italianos. A doação de “Maria Madalena Confortada pelos Anjos” surge nesse contexto de ligação próxima a instituições de arte.

“Quando trabalhei no Louvre conheci os conservadores todos de museus franceses, que entretanto se tornaram diretores, são pessoas da minha geração”, explica. “A política da galeria é estreitar cada vez mais a ligação entre os museus e o mundo do comércio de arte.”

A busca por um quadro “português e de grande qualidade”, que pudesse ser doado ao museu mais visitado do mundo, já tinha alguns anos. Um leilão na Sotheby’s de Nova Iorque, em inícios de 2015, marcou a decisão.

“A primeira vez que vi o quadro foi em Londres, onde esteve exposto antes do leilão, e depois fui a Nova Iorque e voltei a vê-lo. Fiquei muito apaixonado, não me saía da cabeça”, descreve. “Poderia ter encontrado um quadro primitivo, séculos XV ou XVI, mas foi Josefa de Óbidos e achei a oportunidade ainda mais interessante, por ser uma mulher pintora. Achei que a oportunidade estava a chegar e não poderia deixá-la passar.”

Josefa de Óbidos (1630-1684), impulsionadora do período barroco na arte portuguesa, inspira-lhe particular admiração. Considera-a “uma das grandes pintoras europeias”, caída em “relativo esquecimento”.

A doação teve, por isso, um objetivo de divulgação, diz Philippe Esteves Mendes. “A nossa pintura não é toda excelente, mas há autores muito importantes que merecem ser conhecidos através de grandes museus”, sublinha.

“Todos os anos a galeria tem feito mecenato para restauro de uma obra de arte de um museu francês”, acrescenta. “Há dois anos restaurámos um quadro do século XIX que estava nas reservas do Musée de Picardie, em Amiens. A diretora do museu, que conheço muito bem, ligou-me, disse que o museu não tinha meios para o restauro, mas que o quadro era importantíssimo, e perguntou se eu podia fazer alguma coisa. Imediatamente iniciámos o restauro”, exemplifica.

“No ano passado, voltámos a fazer isso com outro quadro nas reservas do Petit Palais, um quadro importantíssimo do século XIX, que estava completamente embrulhado há mais de um século. O diretor do museu ligou-me e sugeriu a colaboração. O objetivo é sempre este, tirar quadros das reservas e dar os meios necessários para que voltem a ser expostos”, conclui.

Aproveitando o momento em que “Maria Madalena Confortada pelos Anjos” passou a ser exibido no Louvre, o que acontece desde 24 de novembro, o negociador de arte organizou na galeria uma exposição de 75 peças de cerâmica portuguesa, intitulada “Um Século a Branco e Azul – As artes do Fogo em Portugal no século XVII”. A mostra tem a colaboração da Galeria São Roque, de Lisboa, e pode ser vista até fevereiro de 2017.

Entretanto, no início deste ano, o galerista voltou a comprar uma obra da pintora portuguesa, desta vez em representação do Museu da Misericórdia do Porto. “A Sagrada Família com São João Baptista, Santa Isabel e Anjos” custou 228 mil euros e também foi arrematada num leilão da Sotheby’s em Nova Iorque.

“Não é apenas outro quadro da mesma artista, é o par do quadro que foi doado do Louvre”, sustenta. “O tema é completamente diferente, mas têm as mesmas medidas, o mesmo cobre, a mesma data e o mesmo tipo de assinatura. Estavam os dois na mesma coleção particular, uma coleção francesa, mas foram a leilão em anos diferentes.”

Antes de contactar o museu portuense, que acabou por adquirir a pintura, Philippe Esteves Mendes tentou persuadir o Museu Nacional de Arte Antiga e o Ministério da Cultura.

“O Museu de Arte Antiga não podia, porque estava com o Sequeira [campanha de angariação de fundos para a compra de “A Adoração dos Magos”, de Domingos Sequeira] e o Ministério da Cultura não ligou. Foi então que contactei o provedor do Museu da Misericórdia, expliquei a importância do quadro e ele foi fantástico.”

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“A Sagrada Família com São João Baptista, Santa Isabel e Anjos”, de Josefa de Óbidos, pertence agora o Museu da Misericórdia do Porto

A resposta do Ministério da Cultura deixou Philippe Esteves Mendes “um pouco desiludido”: “Não tinham meios nem vontade para, em tempos de crise, estarem a dar dinheiro para [aquisição de obras que contribuam para o] enriquecimento do património português. Eles têm um dia de integrar esta ideia: investir na cultura e no património é investir em postos de trabalho e no turismo. De cada vez que o património está mais rico, as pessoas querem ir ver”, defende.

O Observador aguarda resposta do Ministério da Cultura a um pedido de esclarecimentos enviado na segunda-feira ao fim da manhã.

O dia-a-dia de um galerista em Paris, conta Filipe Esteves Mendes, tem tanto de encantador como de fatigante. “Uma pessoa levanta-se a pensar nisto, vai trabalhar e depois volta a casa e pensa nisto outra vez”, resume.

“Há quem pense que temos uma vida fantástica, e também temos, porque conhecemos pessoas extraordinárias, mas há um lado cansativo, porque só se pensa nisto o dia inteiro. Estamos a lidar com arte, são coisas muito interessantes, mas envolvem dinheiro, por isso o stress é contínuo e o erro é fatal. Avaliar mal uma pintura, comprar uma pintura cara que depois não se consegue vender é um peso enorme, muitos colegas meus acabaram por causa disso”, lembra.

“É preciso muito tempo de reflexão, temos de pesquisar e ler muito para não fazermos nenhuma asneira.”