Foi no decurso de uma pesquisa para um filme passado em Lisboa durante a crise e com Portugal sob intervenção da Troika, e quando andava pelos ginásios de boxe em busca de histórias, que Marco Martins, o realizador de “Alice” (2005), percebeu que nesse meio havia muita gente metida no negócio das cobranças difíceis: “Comecei a descobrir que no universo do boxe, que era um universo que me interessava explorar, havia muitas histórias de cobradores, algo que nunca me tinha ocorrido. Nesses ginásios de boxe que comecei a frequentar nessa altura, encontrei muitos indivíduos que trabalhavam para empresas de segurança, que é o normal, mas muitos também para empresas de cobranças, a fazer a chamada ‘cobrança presencial’. Que era feita ou por estes indivíduos, ou por empresas com aquela do fraque, ou em que as pessoas iam cobrar as dívidas vestidas de coelho. E quando descobri estas empresas, mudei bastante o guião e comecei a escrever a história do ‘São Jorge’.”

Escrito em parceria com Ricardo Adolfo, “São Jorge” tem Nuno Lopes no papel de Jorge, um pugilista que vive num bairro social da margem sul do Tejo com a família e o filho que teve de uma brasileira que trabalha nas limpezas, da qual se separou, e que ameaça levar a criança para o Brasil. Sem dinheiro e crivado de dívidas, Jorge aceita ir trabalhar para uma empresa de cobranças para ganhar dinheiro para as pagar e poder alugar uma casa, tentando assim reconquistar a mulher e refazer a família. “A história do Jorge é a de alguém que vai cobrar dívidas para pagar as suas próprias dívidas, alguém que é apanhado numa crise, e de certa forma está centrado só sobre os seus problemas. E descobre um problema muito maior do que o que ele conhece”, explica o realizador.

Marco Martins no festival de Veneza

“São Jorge” está longe, muito longe de ser um filme de “mensagem”, de militância simplista e miserabilismo fácil. É, primeiro e acima de tudo, uma história de pessoas através das quais as circunstâncias, os efeitos e as consequências da crise se revelam. E é, do ponto de vista narrativo, visual e dramático, reminiscente quer do policial americano e dos “boxing movies” clássicos, quer de um cinema social que se fazia na Europa, nomeadamente em Itália e França, nos anos 50 e 60, caracterizando-se por um realismo muito raro no cinema português, tendo sido filmado nos bairros onde a acção é situada, e com a participação dos seus moradores, que se mesclaram com os actores (o elenco inclui ainda nomes como Mariana Nunes, José Raposo, Gonçalo Waddington, Beatriz Batarda, Adriano Luz ou Carla Maciel). O pequeno David Semedo, que faz de filho de Jorge, é um deles, por exemplo. “Era um trabalho e uma responsabilidade que eu também tinha, porque ao tocar em assuntos que eram muito actuais e falar com pessoas que eram pessoas reais, era como se eu tivesse o dever e a obrigação de tratar aquele universo tal e qual como ele existe, e falar daquelas pessoas.”, conta Marco Martins .

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Veneza. Nuno Lopes distinguido com o Prémio Orizzonti para Melhor Ator

“Fiz uma grande pesquisa naqueles bairros sociais da margem Sul, e fui visitar vários, alguns com a ajuda de instituições que trabalham no terreno. Quando os escolhi, foi de uma forma um pouco intuitiva, foram os bairros onde eu senti que tinha mais apoio, onde as pessoas aderiram mais ao processo”, prossegue o realizador. “O Jamaica foi o primeiro que escolhi, é aquele bairro de prédios que não chegaram a ser terminados e depois foram ocupados. É mesmo à entrada do Seixal e vivem lá cerca de 600 pessoas. Tinha uma grande urgência em filmar ali, tinha que ter uma personagem que morasse lá.

O bairro onde mora o Jorge é o da Bela Vista. Havia mais bairros com aquelas características mas foi uma escolha um pouco afectiva. Quando fiz o ‘casting’, acabei por o escolher o David Semedo, porque é de lá. É um bairro extremamente problemático, um daqueles projectos que não funcionou. Numa zona há uma parte de moradores de etnia cigana, noutra uma parte africana… Trabalhar no Jamaica foi óptimo, fui acolhido de uma forma extremamente carinhosa, estive lá há dias a dar os convites para a estreia do filme e continuo a ir lá muito, há um sentimento comunitário muito grande. Na Bela Vista, não. É um bairro mais difícil, há mais tensões.”

Marco Martins juntou então as pessoas que tinha seleccionado entre os moradores dos dois bairros e começou a trabalhar com elas, em sessões de improvisação onde falavam sobre os temas que lhes eram mais importantes e que queriam discutir:

“O desemprego, a Segurança Social, as falências das empresas, os bancos. Houve assim um corpo de não-ficção que foi ganhando importância no filme. O que para mim foi bom, porque o que no guião me assustava de alguma forma e me preocupava, é que a certa altura o ‘São Jorge’ era quase um policial negro. Nunca me tinha ocorrido fazer um filme de género e isso assustava-me. Mas a certa altura, com a pesquisa, o universo documental e o realismo foram ganhando muito força. E encontrei a estrutura do filme no quadro do cruzamento destes dois géneros”, conta.

Há várias afinidades entre “Alice”, onde um pai, também interpretado por Nuno Lopes, corre Lisboa em busca da filha desaparecida, e “São Jorge”: o cenário da cidade invernosa, a noite, a determinação solitária e laconicamente desesperada das duas personagens. O realizador concorda e acrescenta: “Há também, em ‘Alice’ como aqui em ‘São Jorge’, o cansaço de um corpo sempre em movimento, que nós acompanhamos.”

Esse corpo é o de Nuno Lopes, que treinou durante meio ano para poder interpretar o papel, dar total credibilidade a este Jorge que apanha pancada dos outros pugilistas no ringue, e da vida fora dele. Jorge, a quem, ao contrário dos colegas da empresa, repugna ter que bater nos devedores quando vai fazer as cobranças, porque tem escrúpulos e bom coração. E é um ingénuo que se deixa manipular por todos em seu redor, obcecado como está em não perder o filho, em ter um tecto só para si e para os seus, e assim convencer a mulher a ficar em Portugal. (Nuno Lopes, recorde-se, ganhou com este papel o prémio de Melhor Actor na secção paralela Orizzonti do Festival de Veneza, onde o filme foi exibido).

“A Noite da Iguana”. Com Nuno Lopes fomos ao abismo e voltámos

“O Jorge tem uma ingenuidade e uma crença que falta a todas as outras personagens”, adianta Marco Martins. “Ele, e o filho, também, mas este é quase mais adulto com o pai. É uma criança de bairro, e nas conversas entre os dois, o miúdo está a ver exactamente o que vai acontecer, ele diz-lhe ‘Mas olha que vamos para o Brasil…’. Ele está a ver para além do que o pai consegue. O Jorge é quase um ‘action hero’, que age mais do que pensa, é mais movimento que pensamento, e eu queria explorar esse lado dele. Deixa-se manipular, pela própria mulher, de alguma forma, pelo treinador, que o insulta, e nós compreendemos que isso está ligado a uma extrema bondade da personagem.

Nas primeiras versões do guião, ninguém percebia este lado dele. Liam o guião e diziam-me: ‘Então ele é pugilista e não consegue bater nas pessoas?’. E eu estava a conviver com pugilistas e sabia que o boxe é um desporto, não tem nada a ver com ir bater nos desgraçados que têm umas dívidas. Se calhar foi esse o primeiro ponto de construção da personagem. Ela praticava um desporto físico, mas era incapaz de agredir alguém fora de um ringue, verbal ou fisicamente.”

“São Jorge” é o primeiro filme feito por Marco Martins em digital, que gostou bastante da experiência: “Foi boa. É um material totalmente diferente, com as suas características. É como na pintura, nós trabalhamos a óleo, ou a acrílico, ou a pastel. Cada material tem as suas características e quando fui filmar em digital, o que mais me apaixonou foi a possibilidade de filmar à noite sem qualquer tipo de iluminação extra do que a existente nos locais. Trabalhei muito sobre essa ideia de fazer um filme que mostrasse uma Lisboa nocturna como nós a vemos. Porque o digital tem esta coisa fantástica: vamos para a rua e aquela coisa que dantes era impossível, filmar á noite sem qualquer tipo de iluminação, hoje em dia é possível. O ‘São Jorge” tem muito pouca luz artificial, um projector aqui, um projector ali, mas muito pouca coisa.”

A escolha da câmara foi, assim, muito influenciada pelo facto de “São Jorge” se passar quase todo durante a noite, e pela estética que Marco Martins queria que enformasse a fita, e que contribui muito para o forte efeito de real conseguido: “Essa escolha foi o que demorou mais, porque no digital há uma estética que é quase híper-realista, de que eu não gosto. Fizemos testes com várias câmaras, até chegar a uma que fosse o mais perto possível do nosso olhar nocturno, sobre a noite. E há uma lei, que não sei se ainda vigora, segundo a qual não se pode ligar ou ir a casa de ninguém depois das 22h00 para cobrar dívidas, e estas empresas de cobrança, ou a maior parte delas, faziam muitas visitas à noite a casa das pessoas, fora dos horários legais. Portanto, precisava de uma câmara que me permitisse fazer um filme de Lisboa à noite.” E dessa noite saiu “São Jorge”, que além de ser, com “As Mil e Uma Noites”, de Miguel Gomes, um dos raros filmes nacionais a usar a crise como matéria narrativa, é ainda um dos melhores filmes portugueses destes últimos anos.

O filme “São Jorge” estreia-se na quinta-feira, 9 de Março