Num dos mais recentes vídeos do canal de humor Porta dos Fundos há um músico que chega a casa mais cedo e pergunta à mulher para quem é que ela está a cozinhar, uma vez que estão dois pratos na mesa. “Um é pra você”, responde ela, naturalmente. Gregório Duvivier começa então a procurar pela casa toda, sem sucesso,por um possível amante escondido, para logo depois se mostrar muito desiludido por todos os dias chegar ao apartamento mais cedo e nunca ter encontrado a mulher em flagrante numa traição. “Temos de terminar. Isso na minha profissão não dá, eu sou cantor de sofrência”, diz ele, queixando-se por não ter qualquer problema na vida que lhe dê inspiração para compor as músicas tristes e profundas de que vive.

Foi em 2011 que Lana Del Rey se tornou fenómeno. Primeiro à conta de “Video Games”, vídeoclip aparentemente caseiro colocado no YouTube que atraiu milhões pelo belo, triste e minimalista ambiente musical, a remeter para os anos 60. A beleza e o mistério em torno da cantora e protagonista do vídeo também ajudou. E ela, de jeito tão tímido quanto sedutor, abraçou o estrelato o máximo que pôde.

Só que os meandros indie em que Elizabeth Grant, nome verdadeiro de Lana Del Rey, se tentou encaixar com estratégias pop costumam ser habitados por melómanos que procuram com igual afinco melodias de qualidade e letras reais, capazes de passar emoções sinceras. Se o músico diz que um disco sofrido é autobiográfico, é bom que Lana De Rey tenha mesmo entrado numa cozinha, encontrado dois pratos e uma amante escondida no armário.

O problema não foi o nome falso — Sting, Iggy Pop e Bob Dylan fizeram-no, embora no passado esta prática fosse mais comum. O problema foi (é?) fazer-se passar por algo que não é, como mostrar uma vivência num trailer park quando, na verdade, Lana Del Rey é filha de um milionário, por exemplo. A desastrosa atuação ao vivo no programa Saturday Night Live, posar nua para uma revista, nada disto parecia fazer sentido com o que ela escrevia e cantava. O que se tornou um problema para uns e um pormenor irrelevante para outros.

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As capas dos quatro álbuns de Lana Del Rey.

Lust For Life ganha logo à partida por se focar mais no presente do que nas vivências pessoais do passado da cantora. É um prego a fundo no acelerador em relação aos três primeiros álbuns, Born To Die, Ultraviolence e Honeymoon. É curioso que, em todos eles, Lana aparece em destaque na capa, sempre ao lado de um carro ou de uma carrinha. Só que, desta vez, sorri. Quem lê os sinais e espera que Lust for Life seja uma coleção de canções uptempo vai ter uma desilusão. Lana Del Rey juntou 16 faixas que variam entre o ambiente dos anos 60, o R&B e o que de mais atual se faz no hip-hop, e pintou-as de melancolia, mostrando aos descrentes que, sim, é possível sentir um desejo pela vida sem ter de andar aos pinotes em cima de um palco nem recorrer à pop mais light.

Para “Lust for Life”, a canção que dá nome ao longo disco (1h12), foi buscar o fenómeno The Weeknd para juntos repetirem: And a lust for life, and a lust for life / Keeps us alive, keeps us alive. O desejo de viver mantém-nos vivos, até porque descobriu que we’re the masters of our own fate / We’re the captains of our own souls.

Em “Beautiful People, Beautiful Problems”, Lana cresceu. Está farta de se queixar de como é difícil viver (o que é bem diferente de dizer que a vida é difícil). It’s more than just a video game. Curioso. É o assumir de que, sim, tem problemas, mas problemas é o que toda a gente tem. But we gotta try / Every day and night, canta, na melhor companhia de Stevie Nicks, dos Fleetwood Mac.

Há mais boas companhias, para além de Nicks e The Weeknd. Nas duas canções mais hip-hop, “Summer Bummer” e “Groupie Love”, canta com o rapper A$AP Rocky. Quase no final do disco, ouve-se Sean Ono Lennon, filho de John e Yoko, em “Tomorrow Never Came”.

And I could put on the radio to our favorite song
Lennon and Yoko, we would play all day long
“Isn’t life crazy?”, I said now that I’m singing with Sean

“Love” foi a primeira revelação do novo disco e, agora que o temos todo disponível, não parece ser a escolha mais óbvia para conquistar o maior número de ouvidos. Os corações, pelo contrário, sim. Tranquila, é na voz de Lana Del Rey que toda a canção se sustenta, com uma mensagem de juventude, de amor, e que, tendo as duas, nos sentimos capazes de conquistar o mundo.

Quando canta “When the world was at war we kept dancing”, uma das melhores músicas entre as 16, há qualquer coisa que faz lembrar a PJ Harvey de Let England Shake — sendo possivelmente esta a primeira vez que se junta na mesma frase Lana Del Rey e PJ Harvey no que à música diz respeito. Is it the end of an era? / Is it the end of America?. É Lana a entrar na política, uma americana a perguntar se com Trump foi o início do fim mas, mais do que isso, se é possível continuar a sorrir e a dançar em tempos mais negros (a resposta está no sorriso da capa e é um sim).

Imediatamente antes, e motivada pelo mesmo medo, dá voz aos problemas das mulheres, que com Trump não parecem ficar mais perto de serem resolvidos, em “God Bless America — And All The Beautiful Women In It”. Quem diria que esta é a mesma Lana que no passado cantou o problemático verso “He hit me and it felt like a kiss”.

Será a mesma Lana? Sim e não. Foi há três anos que, numa entrevista ao The Guardian, disse “I wish I was dead already”, numa conversa sobre ídolos mortos demasiado cedo, como Amy Winehouse e Kurt Cobain, e num tom de glorificação da morte precoce que lhe valeu um sermão de Frances Bean Cobain. No ano seguinte, disse numa entrevista: “Sinto que os três discos foram muito pesados e autobiográficos. Tem sido uma catarse. Gostava de usar o meu precioso trabalho como um trampolim para fazer algo novo.”

Dois anos depois, nem sinal da garota problemática sem problemas reais. Hoje vemos uma mulher concentrada no Governo que a rodeia, ciente do que é trigo e do que é joio nesta coisa que é viver — e viver não é um jogo de vídeo, diz. Se esta Lana é mais verdadeira do que a outra? É difícil saber. Que soa mais madura e mais sincera, lá isso soa.

Também soa melhor. Se no primeiro disco algumas das críticas apontavam para uma excessiva linearidade nas canções, quer instrumental, quer vocal, em Lust For Life a cantora que se diz primeiramente compositora explora mais os seus dotes. E fá-lo bem. Rick Nowels (Adele, Sia, Lykke Li) voltou a ser o aliado na produção, tudo certo aqui.

Para aqueles que se perderam de Lizzy Grant / Lana Del Rey no início, seja por que motivo for, Lust For Life é a melhor tentativa de reconciliação. Se este disco é um ponto de viragem, o futuro parece risonho.