O rock já teve funerais suficientes, de tanta vez se disse que estava morto. O revivalismo do pop-rock psicadélico não foi por muito melhor caminho. Ou pelo menos quase todos o meteram na gaveta, depois de ouvirem os Tame Impala gravarem o dançável Currents, os Capitão Fausto deixarem de pesar o sol para começarem a contar os dias (mais sinfónicos) e os Temples provarem que afinal não eram assim tão bons (uma canção memorável, “Shelter Song”, não chega).

Até os Unknown Mortal Orchestra optaram por desbravar terreno novo com Multi-Love (de 2015), disco muito diferente (mais sério nas letras, mais brincalhão nas melodias) do álbum que os pôs na boca do mundo, II. Acontece que eles estão de volta, fizeram o melhor disco da carreira e seguramente um dos melhores álbuns dos últimos anos. Pronto, está dito.

[“Not in Love Were Just High“, canção do novo disco dos Unknown Mortal Orchestra:]

Sex & Food (em português, Sexo e Comida), acabado de chegar às lojas físicas e digitais, é um disco despretensioso e ambicioso ao mesmo tempo. Ruban Nielson, ao telefone com o Observador a partir de Madrid (tinha acabado de comer uma “tostada with tomato”, iguaria espanhola conhecida em Portugal por “pão com tomate”, ao pequeno-almoço), dá detalhes: “Tinha um outro título, que se adequava mais ao álbum, mas queria uma coisa mais divertida, que pusesse as pessoas a pensar em coisas boas. Achei que escolher este faria com que o álbum não fosse levado demasiado a sério e eu não queria que fosse considerado político ou sério, queria que fosse considerado humano.”

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Por outro lado, a ambição é assumida. O quarto álbum dos Unknown Mortal Orchestra demorou mais tempo a ser feito (chega três anos depois do antecessor, que saíra dois anos depois II) e custou mais dinheiro. Foi gravado em Seoul (Coreia do Sul), Hanoi (Vietname), Reykjavik (Islândia), Cidade do México (México), Auckland (Nova Zelândia) e Portland (Estados Unidos).

Acho que fui mais ambicioso, sim, em termos de criatividade. Sabia que o álbum ia demorar mais tempo. Também precisava de uma pausa porque tenho trabalhado de forma muito intensa, a digressão do Multi-Love foi longa. Dei-me perto de um ano e meio para fazer o álbum e trabalhei nele do início ao fim desse período. Acho que trabalhei mais neste disco do que em qualquer outro. Suponho que ter viajado mais também acrescentou tempo e dinheiro ao processo.”

Um disco moderno, futurista

Mistura, eis uma palavra que define bem Sex & Food. O ecletismo já havia sido explorado pelos Unknown Mortal Orchestra no álbum anterior mas neste é ainda mais evidente. As canções são melhores (são 11, tirando uma introdução instrumental, e nenhuma é dispensável, um feito pouco comum). Acresce que, ao contrário de muitos dos discos da tal nova vaga psicadélica (a palavra “revivalismo” não surge por acaso), Sex & Food só podia ter sido feito agora, porque não se limita a recriar e rever (com maior ou menor rasgo, com melhor ou pior uso da tecnologia hoje existente) os sonhos hippie dos anos 1960. É fruto da “modernidade líquida” de que falava o sociólogo polaco Zygmunt Bauman, que define este século.

Há uma geração nova que não está verdadeiramente preocupada com géneros. Quando este álbum começou a tornar-se mais eclético, permiti simplesmente que isso acontecesse porque a forma como o streaming e a internet funcionam faz com que as tribos — ser só fã de rock ou ser só fã de música eletrónica, por exemplo — se desagreguem. Achei que podia tirar vantagem disso para fazer um disco diferente”, aponta Ruban.

Exemplos desse ecletismo? Vamos a isso: “Major League Chemichals”, com Ruban a cantar palavras quase indecifráveis, abre caminho para a gentil “Ministry of Alienation”. De repente, aparece “Hunnybee”, que poderia surgir no último álbum dos Tame Impala se este fosse menos polido (mais lo-fi) e o volume estivesse próprio para música de fundo. Se a música disco entra (suavemente, a pedir licença), desaparece de repente logo a seguir para dar lugar a endiabrados riffs da guitarra de Nielson (um grande guitarrista, como aliás prova nos concertos da banda).

É engraçado, oiço tantos tipos diferentes de música que não separo o rock’n’roll do resto. Na minha cabeça tudo se liga. Mas muitos músicos abandonaram o rock, pelo que é divertido brincar com ele e mostrar o que eu acho que não pode ser substituído numa boa canção de rock’n’roll”, diz Nielson.

Seja o que for que “não pode ser substituído numa boa canção de rock’n’roll”, é difícil ouvir e não achar que Ruban acertou na mouche. Do rock, os Unknown Mortal Orchestra passam para uma descontraída mas belíssima “The internet of love (that way)”, que por sua vez dá lugar a uma música dançável, quase eletrónica (“Everyone acts crazy nowadays”). E as constantes guinadas continuam até fim do disco, sem nunca causarem estranheza ao ouvinte. É tudo diferente, é tudo Unknown Mortal Orchestra, faz tudo sentido.

[“American Guilt“, single e a canção mais rock’n’roll do novo disco dos Unknown Mortal Orchestra:]

O vegetarianismo e Portugal no top 5

Perguntamos a Ruban Nielson, 38 anos, como é que têm sido os seus últimos anos no que toca à comida e ao sexo. Afinal, em Multi-Love relatava uma experiência poliamorosa, que fez com que vivesse por uns tempos com a mulher, Jenny Nielson, com uma rapariga japonesa (que nunca identificou mas que marcou o casal) e com os dois filhos. Período sobre o qual falou aliás abundantemente nas entrevistas de promoção desse disco.

Acho que de certa forma as duas coisas estão estreitamente ligadas, pelo menos para mim. Nos últimos anos tive uma relação diferente e estando a ficar mais velho estou também a tentar tornar-me mais saudável [de bom humor, ri-se bastante, como aliás faz recorrentemente durante a entrevista]. Há dois anos, quando comecei a fazer o álbum, deixei de comer carne vermelha e agora sou praticamente vegetariano. Também na minha vida sexual tenho tentado tornar-me mais saudável [volta a rir-se muito].”

Se o disco era profundamente pessoal, refletindo a experiência triangular que terminou de forma abrupta quando a mulher japonesa que vivia com o casal em Portland não conseguiu renovar o visto de residência nos Estados Unidos, este não o é menos. Ruban está só a aprender a não o dissecar tanto nas entrevistas, garante-nos: “Acho que abordei estas canções de maneira parecida às anteriores e acho que fiz um álbum tão pessoal e autobiográfico quanto o último. Penso que confessei e revelei tanta coisa neste quanto no anterior. Acho é que quando dava entrevistas revelava demasiado sobre a minha vida, achava que devia isso às pessoas que gostavam de me ouvir, dava-lhes a minha vida toda.”

“Também me preocupa que falar sobre o porquê de escrever certas canções possa roubá-las de alguém. Quero que a canção seja sobre ti, não sobre a mim. E ao falar sobre o que me fez escrever determinada canção ou o que a inspirou, sinto que posso estar a fazer com que o álbum me pertença mais a mim e não é isso o que quero mesmo fazer”, acrescenta.

As muitas viagens que Ruban fez nos últimos meses (e que fizeram com que o álbum fosse gravado em tantos países) também se devem à situação política norte-americana. “Olho para trás, para o tempo do Obama, e vejo que havia mais otimismo nas pessoas. Daí para cá elas tornaram-se mais paranóicas e dividiram-se mais. É tudo mais confuso e eu senti que era importante sair dos Estados Unidos a cada par de meses. Estando preso o meio do turbilhão em que está os EUA era-me mais difícil ser criativo”.

Já pensou em mudar-se de vez, perguntamos-lhe? “Falo sobre isso [deixar de viver nos EUA] todos os dias [ri-se]. Mas não tenho a certeza que seja possível porque há tanta coisa a acontecer neste momento… seria difícil e custaria muito dinheiro mudar-me, portanto não sei, não faço ideia como o faria. Mas penso muito sobre isso [risos]. Acho que é até irritante a quantidade de vezes que falo sobre o assunto”. A confirmar-se a mudança, garante-nos Ruban, Espanha e Portugal estariam no seu “top cinco” de destinos. Dia 8 de junho, o neozelandês poderá matar saudades de Portugal e os portugueses da sua música: os Unknown Mortal Orchestra atuam no Parque da Cidade do Porto, em mais uma edição do festival NOS Primavera Sound.