“Um candidato presidencial deve preservar a sua imagem, não podendo pronunciar-se sobre questões de política concreta todas as semanas”. Quem disse? Marcelo Rebelo de Sousa, em junho de 1996, referindo-se a Mário Soares. “Não há dúvida de que o aparecimento em excesso, a intervenção em excesso, acabam por revelar-se contraproducentes, não só para qualquer governante como para o órgão de que é titular. Admito, pois, que isto possa aplicar-se tão direta e tão imediatamente a um Presidente da República como a um membro do Conselho da Revolução, como a um membro do governo”. Quem disse? Sim, o mesmo Marcelo Rebelo de Sousa, em 1982, sobre Vasco Lourenço.

Um mundo separa o Marcelo-político que pedia recato aos candidatos presidenciais e aos membros do Governo do Marcelo-Presidente que anda a fazer, hoje, o completo oposto do que antes dizia. Os “ziguezagues” do político-comentador Marcelo Rebelo de Sousa são, talvez, os mais evidentes da história. Mas não são os únicos. “A política nada tem de inocente e é imprópria para ingénuos” — é esta a premissa do livro do jornalista Pedro Prostes da Fonseca, lançado esta semana, que põe a descoberto os principais “Ziguezagues na Política” explorando como os políticos portugueses foram mudando o discurso desde o 25 de abril até aos dias de hoje.

Desde Álvaro Cunhal a Zita Seabra, passando por Marcelo e António Guterres, Ramalho Eanes, Mário Soares ou José Sócrates e culminando nos “solavancos” que tiveram de ser dados até à formação da “geringonça” em 2015, o livro recorda várias frases de alguns dos principais intervenientes políticos para evidenciar como tiveram de moldar o seu discurso consoante as circunstâncias políticas. Marcelo e Guterres protagonizam um capítulo, “de vilões a heróis”, onde fica claro como nem uma amizade dos tempos da faculdade e do grupo de estudantes católicos sobrevive às exigências do combate político, sendo que, neste caso, tanto um como outro, foram alvos de mal-dizer até terem ascendido, ao mesmo tempo, a dois cargos de topo no cenário nacional e internacional: num caso, a Presidência da República, no outro, a secretaria-geral das Nações Unidas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Esta é uma história de dois portugueses que hoje ocupam altos cargos cá dentro e lá fora e fizeram amizade enquanto brilhantes alunos universitários. Um cursava Engenharia Eletrotécnica no Instituto Superior Técnico, o outro Direito, ali perto, na Faculdade de Lisboa. Em 1970 (…) fundavam um núcleo de reflexão católica que ficou designado por Grupo da Luz. Mas 22 anos depois da Revolução dos Cravos, o destino levou-os a reencontrarem-se”. Começa assim o capítulo que une Marcelo e Guterres: depois de terem seguido caminhos diferentes pós-faculdade, voltariam a cruzar-se quando um era primeiro-ministro, Guterres, e o outro, Marcelo, líder do partido da oposição. Marcelo acabava de tomar posse como presidente do PSD, em 1996, e foi a São Bento apresentar os habituais cumprimentos ao primeiro-ministro, mas o que ouviu do velho amigo foi um conselho que, na altura, Marcelo interpretaria como um conselho envenenado: “Só tens de te fazer de morto”.

“Se te fizeres de morto, se estiveres lá no sítio certo, no momento certo, vais lá. Ele era meu adversário, ele queria dar um conselho de amigo. Eu achei que era um conselho de adversário. Não sei se não me enganei”, contaria Marcelo no seu espaço de comentário na TVI, anos mais tarde, em 2013. A verdade é que Marcelo não “chegou lá”, nunca chegou a ser primeiro-ministro, e talvez tenha sido mesmo porque não conseguiu fazer-se de morto. Aí, Marcelo sempre foi coerente. Onde não há coerência, como se conta no livro, é no que Marcelo dizia, e no que Marcelo fazia.

Começou com a célebre declaração feita ao Público de que não seria candidato à liderança do PSD “nem que Cristo descesse à terra”, sendo que depois foi candidato sem Cristo precisar de descer à terra, e continuou nas várias declarações que fez, enquanto comentador, a sugerir recato ao candidato presidencial Mário Soares ou ao conselheiro da revolução Vasco Lourenço. “Um candidato presidencial deve preservar a sua imagem, não podendo pronunciar-se sobre questões de política concreta todas as semanas”, dizia o professor comentador, no Independente, em 1996. Certo é que, 20 anos depois, quando Marcelo foi candidato presidencial e se tornou o Presidente da República com mais selfies por metro quadrado, não fez uso do conselho que dera em tempos. “O Marcelo-Presidente que hoje está permanentemente em cena, criticou no passado quem, exercendo altas funções no estado, não cultivava o recato”, lê-se.

O caso de António Guterres também é paradigmático. Antes de chegar ao cargo internacional de topo que hoje ocupa, Guterres foi o “saco de boxe” de muitos políticos, incluindo socialistas — passando de “besta a bestial”. “Estou certo de que António Guterres tem as qualidades para minimizar as inevitáveis dificuldades do cargo: o equilíbrio, a moderação, a recusa dos extremos, a procura dos consensos e o gosto pelo compromisso”, dizia Durão Barroso no Público em 2016. Muito diferente era o que dizia em 1995: “Não acredito nada na sinceridade de António Guterres. Ele é 99% representação”.