Título: “Último Caderno de Lanzarote”
Autor: José Saramago
Editora: Porto Editora

O diário é um dos géneros literários mais bizarros que podemos encontrar. Se excluirmos aqueles que, morto o autor, acordam de surpresa fora da gaveta, já em traje de cerimónia e clonados por milhares de páginas impressas, o diário tem um estatuto muito estranho.

Em primeiro lugar, porque a antítese entre as intenções do autor e do leitor é, na maior parte das vezes, completa. Se o escritor procura analisar-se a si próprio, à espera de encontrar o mais profundo do seu íntimo, o leitor pela-se é pela quadrilhice, pelas intrigas de cordel entre a alta cultura; se o leitor, impressionado pelo estilo de um romancista, leva a tineta de o seguir até aos diários, encontra o escritor em cuecas, despido do estilo que impressionou os seus leitores.

A verdade é que o diário costuma ter um interesse marginal: para os autores é um passatempo da verdadeira obra; se intuições verdadeiramente consequentes houvessem, dariam ensaios, figuras bem apanhadas dariam personagens, grandes inovações estilísticas, fariam romances; assim, o mais das vezes o diário torna-se uma colecção meio inconsequente das migalhas de um autor, escritas com a falsa intimidade de um reality-show, em que o escritor finge falar sozinho, sabendo que vai ser lido por todos quantos se interessarem pelo seu quotidiano.

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Claro que há exceções: o quotidiano inutilmente preenchido de Evelyn Waugh (que manteve um diário desde os 7 anos), o diário de Preces de Flannery O’Connor, até aquele ressentimento sinuoso que alimentou o Conta-Corrente de Vergílio Ferreira; os Cadernos de Lanzarote, porém, nunca foram uma destas excepções. Em primeiro lugar, porque estamos diante de um diário escrito com a plena consciência de que será publicado. É conversa de sala de espera, elogios de circunstância, recolha de elogios ao autor e, de quando em quando, uma benesse literária, uma ou duas páginas de descrições de uma vida de beneditino, entregue à Terra, para satisfazer os literatos mais romanescos.

Mas além disso, os Cadernos de Lanzarote têm outro problema. Da relação do quotidiano de Saramago, ficamos sempre com a impressão de que há um talento literário que está ali a ser sufocado por uma vaidadezinha e uma mesquinhez que não estão ao nível do autor. Há uma mestria literária entalada na descrição involuntária, nos ressentimentos contra quem critica os seus livros ou no contentamento com a mais louvaminheira enxúndia crítica.

E se isto já acontecia com qualquer Caderno de Lanzarote, mais se nota com este Último Caderno. Antes de mais, não estamos, neste livro, a ler propriamente o diário de Saramago; estamos a ler a agenda. Há páginas em que a entrada mais loquaz diz “almoço com…”. E no meio desta sucessão de entrevistas e encontros registados apressadamente, enche-se o diário com prosa já processada. Recicla artigos para a Visão ou para outros jornais, copiados integralmente como se quisesse apenas encher o croquete; plasma, linha por linha, cartas e discursos fortemente elogiosos à sua obra, sempre com uma modéstia pouco esforçada, que não resistiria inteira ao sopro cansado de um moribundo.

Tudo isto já chegaria para tornar o Caderno pouco interessante; mas pior do que isso, é que aquilo que entra é muito melhor do que aquilo que falta. Vemos como é raro Saramago comentar um livro, por exemplo – dá ideia de que os não lê, ao contrário do que faz com os jornais – e de que quando o faz é sempre por critérios de amizade, que se tornam o supremo juiz literário. Também o pensamento é quase nulo, vemo-lo “preocupado” com questões sociais, mas da maneira vaga e pouco comprometida que consiste em  “preocupar-se” e notar que está “preocupado”. Aliás, esta preocupação parece até pouco sincera, porquanto o grosso do diário se concentra nos elogios e na recepção à sua obra, nos elogios que recebe e nas recepções que ele próprio elogia, e no queixume brando de quem não é compreendido pela sua terra. É simplista nos juízos, um apóstolo convicto da excepcionalidade dos escritores e cuidado a ponto de não ofender ninguém nas suas opiniões previsíveis.

Para os leitores, resta o consolo de se tratar de um livro pouco trabalhado, em que não se vê ponta de esforço ou entusiasmo, e que por isso mesmo deve ser julgado segundo a importância que lhe deu o próprio autor. Marginália da mais recôndita, sem a menor importância.