[artigo originalmente publicado a 29 de novembro de 2018 e recuperado a 3 de junho de 2019, a propósito da morte de Agustina Bessa-Luís]

“Dar valor a quem o tem enobrece mais quem reconhece do que quem é reconhecido. E por maioria de razão quando, em vez de valor, estamos a falar de génio”, afirmou o Presidente da República, numa mensagem que enviou à Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), na sexta-feira, por ocasião da atribuição à escritora do título de doutor Honoris Causa. Foi o encerrar do Ano Agustina, que partiu de uma ideia de José Silva Peneda, Presidente do Conselho Geral da Universidade (e ex-deputado europeu) e foi depois pensado, organizado e concretizado por um grupo de Professores da UTAD, com o apoio do Círculo Literário Agustina Bessa-Luís. Homenagear a escritora que durante toda a sua vida literária escreveu sobre aqueles lugares, fazendo dessa homenagem uma alavanca científica para a própria universidade era um dos objetivos.

Mónica Baldaque, representando Agustina Bessa-Luís na cerimónia na UTAD

O Ano Agustina culminou com o Colóquio Internacional “Toda eu sou Actividade — obras, relações, sentimentos”, que decorreu nos dias 22 e 23 e onde se reuniram vários pensadores da obra da artista, como Maria Filomena Molder, Álvaro Manuel Machado, Hélia Correia, António Preto, Guillaume Bourgois, entre outros. Em foco as diferentes facetas da escritora, como romancista, jornalista, a sua relação com o cinema, com a História, com a representação do feminino mas, sobretudo, a sua genialidade iconoclasta, a sua ironia, a sua milagrosa sabedoria. Foi ainda apresentada a reedição, pela Relógio d’ Água, do livro As Estações da Vida (com prefácio de António Barreto), um livro excêntrico à restante obra de Agustina, uma travessia nos comboios da linha do Douro, os seus painéis de azulejos, as memórias de uma infância e de um país, que Mónica Baldaque apresenta assim:

“‘As Estações da Vida’ é uma joia que apetece guardar num estojo de veludo, como uma joia de família. O António Barreto, porque lhe corre o mesmo sangue de Agustina, um sangue com terra daqueles montes, água daqueles rios, fumo das queimadas das vides, percebeu o texto como ninguém, no prefácio que escreveu para esta edição.É uma conversa sem interlocutor, é uma oração aos sinais de um quotidiano, que constroem caminhos, pontes, esperanças, belas ruínas, eternas.

O Colóquio tinha por mote uma frase de Agustina encontrada numa carta a José Régio, de 12 de março de 1960: “Eu dirijo-me sempre aos tíbios, quero sacudi-los, quero despertá-los— e se alguém de alma delicada me escuta pode cuidar que me alegro em ferir e que me divirto em provocar. Não é isso. Os meus gritos e ranger de dentes não são com criaturas que em si próprias estudam o caminho; são com os que vivem glutonamente no campo da morte, são com os sãos e com os hipócritas”. Assim, o “caminho” pela obra de Agustina Bessa-Luís esteve a cargo da escritora Hélia Correia que comoveu um auditório cheio de alunos, docentes e admiradores e estudiosos ao falar da “Improbabilidade de Agustina”, do espanto, do milagre e do terror desse “diabo de mulher” que escreve como se nunca fizesse qualquer esforço, como se todo aquele caudal de ideias, sabedoria, palavras, frases onde o mundo e a humanidade encontram a sua representação perfeita o que nos faz duvidar se Agustina realmente existe ou se é uma invenção da nossa imaginação coletiva.

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Em destaque no colóquio esteve ainda o menos conhecido (e reconhecido) trabalho de Agustina como jornalista. Ao longo de 56 anos a escritora colaborou em múltiplos jornais e revistas, fazendo da crónica o seu trabalho literário mais constante logo a seguir ao romance. Em 2016, todos os artigos foram reunidos por Lourença Baldaque e publicados em três grandes volumes, pela Fundação Gulbenkian, sob o titulo Ensaios e Artigos: 1951-2007.

Ensaios e Artigos: 1951-2007 (3 Volumes) Fundação Calouste Gulbenkian, 90 euros

Ao longo de mais de cinco décadas, Agustina passou por dezenas de jornais e revistas: Diário Popular, Diário de Notícias, Expresso, o Jornal, o Independente, revista K, Público, Visão, O Liberal, O Semanário, Jornal de Letras, Colóquio, Comércio do Porto, Primeiro de Janeiro, Grande Reportagem, onde fez de tudo um pouco: contos, crónicas de viagem, crónicas generalistas, obituários, ensaios, editoriais, comentário, perfis, crítica literária e de cinema. Porém, em qualquer formato, o que mais lhe interessava era a escrita e não os factos, muito mais a linguagem do que a realidade. Cada crónica é assim um texto literário riquíssimo, carregado de dimensões, de sabedoria, demoníaca inteligência, astúcia e sobretudo de uma vertiginosa atualidade.

O catedrático e ensaísta Álvaro Manuel Machado, autor de O Significado das Coisas (Prémio de Ensaio Jacinto do Prado Coelho, da Associação Portuguesa dos Críticos Literários), dedicado à obra de Agustina, mostrou como a escritora levava a sério o seu trabalho como jornalista e leu esta passagem escrita por ela numa crónica publicada no jornal Diário de Notícias, em 1991:

“Se um francês é jornalista antes de ser francês, eu acuso-me dessa cultura perniciosa antes de me viciar nos honestos textos dos clássicos. O que me fez vir para Lisboa foi a vocação jornalística. Não se pode ser jornalista no Porto, como não se pode ser profundo em futilidades, que é o que faz a fortuna do fazedor de artigos. As ciências morais e políticas só se exercem bem na capital, seja Paris ou Atenas. O tenor da folha de jornal tem que ser, como eu, provinciano. Só assim terá o tom virgiliano da écloga pastoril, que combina bem com a diatribe e a coragem parlamentar. Porque o jornalista, como eu, […] tem que ter, de vez em quando, uma opinião quase alarmante, uma sabedoria modesta, uma sublime condescendência que pareça reanimar os direitos atropelados, todos os dias, da pobre humanidade. […] um jornalista puro sangue, como eu, tem que vir para Lisboa. […] Esta espécie de jornalista […] tem algo de chefe, de especulador, de merceeiro e de mastim espiritual.”

Ao contrário de tantos cronistas atuais, Agustina nunca reuniu em livro os seus textos para jornais, pelo que só agora se percebe a dimensão literária e jornalística da sua produção onde Álvaro Manuel Machado destaca as crónicas de viagem:

 De facto, quer seja uma paisagem do Douro ou da França profunda, uma cidade ou uma aldeia, uma rua, uma avenida, um recanto de Paris, Roma, Londres, Berlim, Atenas, Recife ou Rio de Janeiro, tudo isso se transforma em espaço mítico através da imaginação da romancista, espaço relacionado com o tempo, inclusive com a história de um passado mais ou menos longínquo. Ou seja, todos esses lugares se situam ambiguamente entre a história e o mito, partindo das origens  da escritora no Douro e do Porto, onde vive. Sobretudo, note-se, nessas crónicas de viagem, as origens são um regresso constante do imaginário agustiniano.”

Os trabalhos passaram ainda por uma homenagem à docente da UTAD Laura Bulger, pioneira nos estudos agustinianos, uma análise dos mundo fechados criados pela autora quer no que escreveu para o cinema, quer nos romances, bem com as relações conturbadas com o cineasta Manoel de Oliveira.

Reitor da UTAD, António Fontainhas Fernandes, a entregar a Mónica Baldaque, filha de Agustina Bessa-Luís, o titulo de doutor Honoris Causa

Profunda como profundas são as águas do rio Corgo, que atravessa as escarpas de Vila-Real, tão profunda que não se pode tocar ou ver mas tão só sentir as manifestações da sua alma, assim é Agustina na palavras de Maria Filomena Molder, catedrática, filosofa e ensaísta, a quem coube fazer a última conferência do colóquio. O livro Um Bicho na Terra, que Bessa-Luís escreveu em 1984, contando a história do judeu Uriel da Costa. Portuense, converso, fugido de Portugal, várias vezes excomungado, suicidou-se em Amesterdão deixando publicados vários livros que terão sido determinantes para o pensamento do filósofo Bento Espinosa. Agustina escreveu sobre Uriel da Costa, pela primeira vez, ainda nos anos 60 e volta a fazê-lo mais vezes até  este romance. O caminho deste judeu em direção à luz, à iluminação através de várias metamorfoses do espírito é para Molder, também o caminho da vida e da escrita de Bessa-Luís; um caminho contra o medo, o temor, para se tornar uma livre pensadora, tão mais universal quanto mais  profunda é a sua singularidade.

As Estações da Vida, Agustina Bessa-Luís, na Relógio d´Agua

No final do colóquio, Mónica Baldaque destacou “a rara qualidade das intervenções – abordagens muito exigentes, completamente novas e inesperadas. Uma inspiração, e um novo discurso, sem dúvida. Senti que a obra de Agustina começa a ser lida à luz de inúmeras ciências, e isso é que a torna verdadeiramente universal. Foram dois dias densos e gratificantes. Destaco o profissionalismo da Comissão Organizadora, e o bom ambiente criado. A presença dos Amigos. Não daqueles que procuram o enfeite, mas daqueles que reconhecem em Agustina um tempo comum, em que eles próprios se encaixam e de que participam.”

Agustina, mais do que doutora, uma sábia

Não deixa de ser curioso que no país dos “doutores”, onde a demanda de um titulo académico leva muitos a quebrarem as leis mas poucos a serem sábios para fazerem da academia um lugar propulsor de um caminho moral e ético, tenha, entres os seus maiores escritores, pessoas que nunca frequentaram a universidade. Agustina fez apenas o 9.º ano, mas a sua sabedoria profunda, que só quem a lê pode compreender, não parece depender de qualquer circunstância exterior mas apenas interior. Por isso, é quase impossível falar sobre ela sem que ocorra a palavra “milagre”. Também por isso o texto do Presidente da República lido na sessão de atribuição do doutoramento Honoris Causa comece assim:

Recentemente, a propósito da atribuição de um Prémio Nobel da Literatura, um escritor disse, referindo-se ao galardoado: «É como se dessem uma medalha ao Evereste por ser a montanha mais alta». O Evereste não precisa de medalhas, porque é o Evereste, mas é bom que o reconheçam como a montanha mais alta. À escritora Agustina Bessa-Luís têm sido atribuídos inúmeros prémios e distinções, desnecessários, talvez, merecidos, sem dúvida. Dar valor a quem o tem enobrece mais quem reconhece do que quem é reconhecido. E por maioria de razão quando, em vez de valor, estamos a falar de génio. Não sugiro, espero que entendam, que a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro «se limitou» a fazer a sua obrigação, como se costuma dizer em jeito de remoque; estou, bem pelo contrário, a elogiar a universidade por ter feito a sua obrigação(…).”

Agustina Bessa-Luís, 96 anos, não esteve presente, uma vez que está retirada da vida pública desde que sofreu um AVC, em 2016 e foi representada pela filha Mónica Baldaque. Eduardo Lourenço, um dos primeiros a reconhecer e a escrever sobre a singularidade da obra da escritora, foi o padrinho escolhido para a cerimónia. Contudo, por razões de saúde, também ele não esteve presente. A sua presença foi contudo sentida no texto que escreveu sobre Agustina e que foi lido integralmente.

O reitor da UTAD falou de uma Agustina “lúcida e indomável”, no auditório desta universidade onde marcaram presença, além de Silva Peneda, Miguel Cadille, Valente de Oliveira, Braga da Cruz, Manuel Cabral e o ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho. Referindo-se ainda à mensagem de Marcelo Rebelo de Sousa, Mónica Baldaque afirmou que este “não é um mero gesto protocolar, é um gesto de generosidade e de reconhecimento da importância desta honra atribuída à Autora pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro”.

Ainda durante a cerimónia, a filha da escritora revelou ter sido contactada “pela diretora da revista literária Luvina da Universidade de Guadalajara, no sentido de enviar um pequeno conto de Agustina”, a propósito da feira literária daquela cidade mexicana (o maior evento do género na América Latina), que este ano tem Portugal como país em destaque e que decorre por estes dias. “Não acedi ao pedido por motivos que se prendem com o plano de reedição da obra e organização do arquivo de Agustina Bessa-Luís. Por outro lado, entendemos que dada a dimensão do evento, essa não seria uma representação expressiva do nome, obra, carreira e importância da autora“, acrescentou.

Como não tivemos o prazer de ouvir a própria Agustina, concluímos com as suas palavras citadas pelo presidente da República:

“O génio nunca se distingue por completo do génio do lugar. E o universal é muita vezes o local sem muros, como disse Torga. Homenageando Agustina Bessa-Luís, a UTAD distingue uma grande das nossas letras e uma poeta do Portugal antigo e profundo. «O rio Douro», escreveu Agustina, «não teve cantores». E acrescentou: «Mas, para além das cristas do Marão, em vez do alaúde e da guitarra havia o repique dos sinos ou o seu dobrar espaçado. Havia o tiro certeiro dos caçadores de perdiz, lá pelas bandas da Muxagata e do Cachão da Valeira. E o clarim das guerrilhas ouvia-se através da poeira de neve que cobria os barrancos de Sabroso. O rio Douro ficou banido da lírica portuguesa com a sua catadura feroz pouco própria para animar os gorjeios dos bernardins, que são sempre lamurientos e que à beira de água lavam os pés e os pecados. E no entanto, trata-se de um rio majestoso como não há outro”.