“Glockenwise” é impossível de traduzir. “Não quer dizer absolutamente nada”, diz-nos Nuno Rodrigues, vocalista da banda de Barcelos que acaba de chegar ao quarto disco e se atira para as canções em português, depois de três em inglês. Ainda sobre o nome escolhido quando tinham 15 anos, Nuno acrescenta: “Em retrospetiva acho que é um péssimo nome, difícil de decorar, difícil de dizer, graficamente feio, mas pronto, neste caso não é o nome que Deus nos deu, mas o que escolhemos. Isto só demonstra que quando temos o poder da escolha em nossas mãos isso não significa que o façamos melhor, bem nos queixamos dos nomes que os nossos pais nos deram”.

O nome da banda até pode ser impossível de traduzir, mas talvez isso possa aumentar o grau de singularidade deste conjunto, que sempre parece ocupar um lugar muito próprio, sem encaixar em nenhuma tribo ou estilo musical específico. A juntar a isso, agora, com este novo Plástico (que apresentam ao vivo esta quinta feira, dia 13, no Musicbox, em Lisboa, e sexta, dia 14, no Maus Hábitos, no Porto), atiram-se para um universo mais pop, ultra-atual, onde falam de pós-modernismo, individualismo, de um mundo postiço, que gera uma “vontade de mudar”, como dizem em “Corpo”, canção de arranque.

[“Corpo”, do novo “Plástico”:]

É nesse mesmo tema que dizem – sobre este mundo voraz, alucinante, cheio de luz branca e notificações – uma das frases mais marcantes de Plástico: “Quem me dera ter um sósia”. Afinal, quem não está farto de si próprio? “Então não… quem é que não quer ter alguém que vá ao trabalho todos os dias por ele, ou vá cozinhar, ou vá às reuniões de famílias, jantares de amigos. Talvez até para pensar, sim, se for um sósia muito bem reproduzido porque, não? Se for fiel à nossa personalidade, porque não deixar alguém pensar por nós? Não quero isso para mim, atenção, mas há tanta luz, há demasiados impulsos, tudo chama, tudo brilha, tudo tem que interagir, às vezes é preciso um sósia para lidar com isto tudo. Ainda agora estava a pôr as contas em dias, da eletricidade e da água, epá, isto foi um processo gigante de passar por quatro aplicações de telemóvel, quantas passwords é que já usei? Se tivesse um sósia para pagar as contas já ficava feliz”, desabafa Nuno.

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Não podendo ninguém almejar essa felicidade, sobra trabalhar, fazer algo com que nos possamos identificar. Neste caso, os Glockenwise não fizeram somente um disco, reuniram pessoas próximas – Francisca Marques (artista plástica), Miguel Felgueiras (realizador), Sérgio Couto (designer) – e pensaram isto como um processo, uma ideia de residência artística que gerou um objeto musical, mas que podia ter gerado um disco duplo, um filme ou uma peça de teatro. E que virou a banda para o português:

“Não terá sido tanto uma decisão, mas antes o resultado do processo de criação deste disco. Tínhamos uma ideia um bocado mais ambiciosa, que era fazer um disco duplo, em que cantávamos as mesmas canções, com arranjos diferentes, em inglês e em português. Reunimos um grupo de trabalho para pensar esta ideia do ‘Plástico’ e todas as pessoas foram vertendo coisas para ali”, avisa Nuno.

“Depois houve uma certa indisponibilidade emocional e financeira para levarmos esta ideia avante, e decidimos, como estava a correr bem, manter o português, isto está bem e é assim que as coisas que estão a fazer sentido. O inglês eclipsou-se das nossas vidas e a malta continuou a trabalhar os restantes conceitos, o azul dos fatos e dos vídeos e das fotos. Quase como se o inglês nunca tivesse existido”.

Convenhamos que não foi só a língua que se alterou na vida dos Glockenwise. Plástico segue um registo bem mais limpo, e que à primeira vista — ou escuta — se podia dizer menos rock, embora Nuno Rodrigues não concorde assim tanto e nos fale de uma mentalidade rockeira, uma aproximação às suas ferramentas por excelência, para depois ser outra: “É indiscutível que os Talking Heads são uma banda rock, mas eles não fazem bem rock, era um bocado essa a mentalidade”, explica. Para isso foi precisa a tal limpeza: “Diria que tem mais rock, de uma maneira diferente, ou seja, evidentemente que o que nos passou pela cabeça foi ‘como é que vamos fazer um disco de artpop’ mas para o fazer tivemos que agarrar as ferramentas fundamentais do rock, tanto que fizemos uma redução total em relação aos artifícios psicadélicos”.

[ouça ou álbum “Plástico” dos Glockenwise através do Spotify:]

E por falar em artifícios, será que essa limpeza tem que ver com o conceito que abarca o disco, esta ideia de plástico vem de onde? “O nome estava na minha cabeça há muito tempo e depois foi pensar o que queria dizer com plástico. Sempre fomos muito desligados dos aspetos plásticos da arte plástica, somos todos de humanidades, nunca nenhum de nós teve jeito para desenhar, então sempre almejámos ter uma aproximação, portanto haverá esta ideia de plástico enquanto cultura estética. Haverá a ideia de plástico enquanto artificialidade, portanto nós nunca falamos de plástico em termos materiais”, enquadra. Ora, pronto, já sabemos que aqui não estamos a falar da mancha de plástico nos oceanos, nem de reciclagem, embora Nuno não resista a contar que, num destes dias, para promover Plástico, foi convidado para o telejornal da manhã na RTP “e naqueles trinta segundos em que é possível fazer em televisão, a primeira pergunta que a senhora fez foi logo sobre ecologia”. Nuno explica: este é um assunto muito importante, mas não é disso que aqui se fala.

Portanto, Plástico é sempre figurativo, ao mesmo tempo que é real, bastante real, e é um dos discos mais interessantes do ano em Portugal, não só pela sonoridade, mas também pelas palavras.

“Há também esta questão da identidade plástica, num mundo pós-moderno onde a identidade está a ser mais falada que nunca, a cultura ultra-individualista que aparentemente tem a ver com a ideia de liberdade individual, mas que se formos assim aprofundar tem a ver com anarcocapitalismo. Comecei a ficar curioso: tantas ferramentas para sermos diferentes e parecemos todos cada vez mais iguais”, conta.

Quem não são iguais são os Glockenwise. Repetimos: escute-se o disco. Estão aqui todas as questões deste mundo com o qual todos, mal ou bem, compactuamos. Há um cinismo latente nos sorrisos, nas conversas circunstanciais, nos mails a que decidimos não responder (embora utilizemos sempre o argumento: “desculpa, não li”), uma ironia farta, até na forma como em “Muito para Dar” se diz “estou nesta vida convencido que tenho muito para dar” ou como em “Dia Feliz” se anuncia “hoje foi um dia feliz / tratei o que tinha a tratar”.

Curiosamente, também no dia desta entrevista, Nuno Rodrigues falou-nos em pagar as contas, uma atividade tão necessária e que pertence ao quotidiano. “É verdade, hoje já me sinto realizado, agora que já tratei das contas. Vivo eternamente dividido entre a vontade de ser normal e caseiro e a vontade de estrebuchar, então confesso que quando escrevi essa letra [‘Dia Feliz’] parte de mim estava convicto de que há dias em que fazer a cama e ir para o trabalho são pequenas vitórias, e outra parte de mim está a ser cínico em relação a isso. Há uma parte que não acredita na bondade desta ideia, de que cumprir com as pequenas coisas do quotidiano faz de mim uma pessoa concretizada”.

Dá vontade de dizer que ao ouvir Plástico reafirmamos a certeza de que estamos todos condenados. Mais ou menos amigos de tarefas domésticas, menos ou mais filosóficos ou individuais, mais ou menos cínicos. Mas a condenação não significa paridade, semelhança absoluta, os Glockenwise são diferentes, nem que seja por isto: “Nós somos uma banda de três miúdos brancos a tocar instrumentos, a coisa não poderia ser menos 2018, ainda por cima somos os três heterossexuais, não há aqui mesmo nada que tenhamos para oferecer de novo, não digo isto da pior maneira, acho que se tem falar destas questões todas, não posso é alterar a minha condição, sou um homem branco heterossexual e continuarei a fazer música sabendo que há outras linguagens que merecem ser destacadas”.