Quem caminha ao longo da Rua João da Regras, no Porto, não imagina que por detrás de um pesado e cinzento portão de garagem se canta ópera todas as segundas e quintas-feiras. É lá a atual sede “emprestada” do Círculo Portuense de Ópera (CPO), uma associação cultural que, contra as probabilidades, há 52 anos que persiste na missão de “fazer ópera com sentido de descentralização”, afirma Maria José Cordeiro, diretora da instituição.
Já não fazem grandes produções de ópera, como noutros tempos, mas continuam a trabalhar a música barroca, música sacra, a fazer concertos com a Banda Militar do Porto e galas de ópera, como aquela que os 50 elementos do coro do CPO e duas solistas vão apresentar no dia 15 de dezembro, este sábado, pelas 21h30, no Teatro Auditório Municipal de Alijó. A venda de concertos às câmaras municipais e as quotas pagas pelos sócios são as únicas fontes de receita da associação que, apesar de não ter fins lucrativos e a direção e o coro sempre terem colaborado em regime de voluntariado, não deixa de pagar aos profissionais que para ela trabalham – como os técnicos, professores, pianistas, solistas.
O orçamento é assim, apertado, desde 2008 – ano em que a Associação de Amigos do Coliseu do Porto recebeu a notícia de que as suas coproduções de ópera com o CPO e a Orquestra Nacional do Porto (atual Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música) deixariam de receber os 250 mil euros estatais anuais que, durante 10 anos, possibilitaram a realização de 50 récitas e levaram ao Coliseu cerca de 84 mil espectadores. No ano em que o CPO atingia o pico da produtividade e do reconhecimento internacional – quando se anteviam parcerias com o Scala di Milano, de Itália, com a Opernhaus Düsseldorf, da Alemanha, e com a Opera Holland Park, de Inglaterra – a produção operática própria na cidade do Porto findou. Pinto Ribeiro, na altura ministro da Cultura, argumentou que o financiamento dado à Casa da Música já contemplava as verbas destinadas à produção operática, apesar de a instituição não ter fosso de orquestra – “nem teia, nem cortinas”, acrescenta Maria José – o que impossibilita à partida a realização de espetáculos do género.
Mas, ainda antes do Coliseu, o CPO atuou em vários palcos. A primeira ópera apresentada foi “Rita”, de Donizetti, nos anos 60, no Teatro Vale Formoso, que mais tarde foi comprado pela IURD. Também subiram aos palcos “do velho auditório do Teatro Carlos Alberto e do velho Rivoli”, revela a diretora. Juntaram-se ao Coliseu e à Orquestra Nacional do Porto porque precisavam de “dar o salto” e, com o financiamento estatal e múltiplos patrocinadores que depois se juntaram à iniciativa, conseguiram chegar aos ouvidos dos teatros de Itália.
Em 2003, coproduziram com a Fondazione Arturo Toscanini, de Parma, a “Carmina Burana”, de Carl Off, numa versão encenada por Mietta Corli, que pôs cerca de duzentas pessoas em cima do palco do Coliseu, incluindo o coro e o coro infantil do CPO, os percussionistas da Orquestra Nacional do Porto e o grupo de bailarinos da escola de dança Ginasiano. Dois meses depois, o CPO atravessou, pela primeira vez, fronteiras e atuou no castelo medieval de Vigoleno, em Itália. “Foi um sucesso absolutíssimo”, recorda Maria José. Tanto que, após a empreitada, o Teatro Comunale di Bologna, um dos mais importantes teatros do género de Itália, entrou em contacto com a associação portuense.
Três anos depois, chegaram de Itália três camiões TIR só com cenários, para apresentar “O Trovador”, de Verdi, numa nova coprodução internacional que juntou o CPO, a Associação Amigos do Coliseu e a Orquestra Nacional do Porto ao Teatro Comunale di Bologna e ao Teatro delle Muse di Ancona. O Coliseu encheu e a produção pagou-se a si própria, conta a diretora:
“O cenógrafo, o figurinista e o guarda-roupa foram escolhidos por todos. Quanto aos cantores e às orquestras, cada um pôs o que tinha na sua terra. Isto ficou, durante 10 anos, propriedade de todos. Sempre que a ópera fosse alugada, cada um dos teatros e o CPO ia receber.”
Entre outras, ao longo dos anos, apresentaram óperas como a “A Flauta Mágica”, “Don Giovanni” e “As Bodas de Fígaro”, de Mozart, “Norma”, de Bellini, “Madama Butterfly” e “Tosca”, de Puccini. E, nas suas produções, sempre deram primazia aos talentos portuenses, adianta Maria José – “Se temos um conservatório excelente, se temos uma boa escola superior de música na cidade, só fazia sentido apostarmos nos talentos do Porto.” Elisabete Matos, José Corvelo e Paulo Ferreira são exemplos de cantores, agora com reconhecimento internacional, que deram as primeiras passadas no CPO.
Ópera e descentralização: quando o CPO e o São Carlos davam as mãos
Muito antes dos anos de ouro do CPO, em 1982, a associação cultural assinou um protocolo de colaboração com o Teatro Nacional de São Carlos (TNSC), que pressupunha, entre outros, que, sempre que o teatro nacional fizesse digressão no Norte, “a partir de Aveiro para cima, convidava o coro do Círculo Portuense de Ópera com um ano de antecedência” para o coro preparar as obras e, depois, apresentá-las com a restante equipa do São Carlos, recorda Manuel Graf, fundador e presidente do CPO. Hoje isso já não acontece.
No final de 2017, o TNSC deslocou-se até Norte, para apresentar “Turandot”, de Puccini, no Coliseu, primeira manifestação das novas parcerias estabelecidas entre o São Carlos, o Coliseu do Porto e o Teatro Nacional de São João. Neste outubro, o teatro nacional voltou à cidade para a récita de “La Traviata”, de Verdi, cujo custo de produção rondou os 150 mil euros. E tanto Maria José como Manuel Graf dizem não entender o porquê de se gastar dinheiro público nas estadias e deslocações do coro do teatro nacional quando existe uma “instituição de qualidade reconhecida como o CPO” disponível para colaboração. “Se a parceria se mantivesse, poupávamos todos, porque eles são um teatro nacional”, explica Maria José. De recordar que o CPO foi condecorado pelo Ministério da Cultura com a Medalha de Mérito Cultural em 1985 e, em 2001, recebeu a Medalha de Mérito Cultural – Grau Ouro da Câmara Municipal do Porto.
Contactado pelo Observador, Carlos Vargas, Presidente da OPArt, a empresa que gere o Teatro Nacional de São Carlos, revelou que “para 2019 estão em preparação projetos cuja natureza artística justifica que sejam protagonizados precisamente pelo Coro do Teatro Nacional de São e a Orquestra Sinfónica Portuguesa”. Acrescentou, no entanto, que “sem prejuízo da colaboração regular” que estão a “sedimentar com o Coliseu do Porto e com o TNSJ”, estão “disponíveis para equacionar outras parcerias”. “Contudo, não temos registo de qualquer contacto ou intenção do CPO no sentido de desenvolver projetos com os nossos corpos artísticos”, rematou no comunicado enviado ao jornal.
Já o presidente do Coliseu do Porto, Eduardo Paz Barroso, explica que recuperar a produção operática própria na cidade é, para já, algo “inviável” para a instituição – devido às “limitações de financiamento” e “dado o ritmo e a intensidade da programação do Coliseu”. “Além de o Coliseu ter uma estrutura artística residente, o Balleteatro, que ocupa vários espaços, no presente, o teatro não tem condições para afetar a sala aos ensaios durante pelo menos duas semanas consecutivas, como era prática”, adianta.
Questionado sobre a utilidade de um protocolo como aquele que foi estabelecido nos anos 80 entre o TNSC e o CPO, e referindo-se à logística dispendiosa que está na base da vinda do coro nacional ao Porto, Eduardo Paz Barroso afirma que “não se trata apenas de poupar dinheiro público”: “O único Coro Nacional tem de estar presente numa cidade como o Porto, assim como a Orquestra Sinfónica Portuguesa, naquilo que se conjugue com a vocação atual do Coliseu.” No entanto, não fecha as portas ao diálogo e assegura que a instituição está disponível para conversar com “todos os que queiram também dar um contributo à diversidade de programações que é uma das marcas do Coliseu”.
Mesmo na sua própria cidade, o CPO sente-se esquecido, admite Manuel Graf: “Convidámos o presidente da Câmara, como convidámos o Presidente da República e o primeiro-ministro, para vir aos 50 anos do Círculo Portuense de Ópera na Casa da Música. Todos responderam, menos o presidente da Câmara Municipal do Porto. Já pedimos várias vezes uma reunião com Rui Moreira, que também é vereador do Pelouro da Cultura, mas nem resposta temos.” “Se ele nos esquece, como é que Lisboa não nos há de esquecer?”, questiona Maria José. O Observador tentou contactar a Câmara Municipal do Porto, mas não obteve resposta às questões colocadas.
Com ou sem parceria com o teatro nacional, com ou sem apoio da câmara municipal, o CPO quer voltar à ópera – com bailarinos, cenários e tudo a que ela tem direito – após mais de uma década sem espetáculos do género. Ainda estão a juntar dinheiro, mas já há planos para apresentar “Orfeu”, de Gluck, no Teatro Sá da Bandeira. Até lá, vão continuar com os concertos espalhados por várias freguesias no Norte do país. Em Julho do próximo ano vão juntar-se à Banda Militar do Porto para o concerto “Marea Negra”, de Antón Alcalde, e trechos de “Zarzuela”, na Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão, adianta Manuel Graf: “Vamos a freguesias que estão muito mais abertas [à ópera] do que as grandes cidades.”