A bem ou a mal, do sublime ao tosco, ver o que acontece é o mote que rege as vidas da Cafetra Records, editora que agita uma certa independança lisboeta há mais de dez anos. Para os mais distraídos, é normal que Sallim tenha passado despercebida entre o desfolhar de carreiras e canções da Cafetra, concertos comunitários de “salve-se quem puder”, microfones vagamente ligados e uma vontade tremenda de expurgar a alma juvenil em canções — mais uma prova, como diria Tom Jobim, de que os desafinados também têm um coração. Despercebida para muitos, no turbilhão sempre esteve a pequena Sallim, de maquilhagem delicada e afinado corte e costura, melodias com início, meio e fim, uma crença arcaica na narrativa popular das canções.

“A Ver o que Acontece”, de Sallim (Cafetra Records)

A ver o que acontece é o novo disco de Francisca Salema, da artista Sallim, que após anos em cantigas de fotossíntese, dá corpo ao jogo da composição pop, revela o florescer de uma nova voz. No limite, as cordas vocais persistem num agudo de fulgor primaveril, passíveis a quebrar a qualquer momento, exigentes na insistência de fazer estas canções até ao fim. “Sou teimosa eu admito”, confessa na primeira do disco, “Primavera Nova”, à solta desde o ano passado. É teimosia, não se contenta com o fado, acredita que lhe cabe uma parte maior da vida, mesmo que, enfim, sejam modos de menina “mimada em demasia”. Amparada pela braguesa de Maria Reis — das Pega Monstro — acaba por ceder. Afinal, ninguém sobrevive sozinha, entrega-se por completo a ele, a nós, e ao seu álbum de revelação, A ver o que acontece.

A entrega é o resultado desta crónica de uma pessoa em maturação, dez músicas a superar o medo de errar, um conflito entre o orgulho imaculado e a coragem de se atirar para o abismo da canção, abraçar sem consequências o álbum que deve, por fim, apresentar ao mundo o que representa e quem é Sallim. “Dá-me vontade de chorar, mas não quero exagerar” conclui depois de pensar durante “O Dia Todo”, meditação de sussurros a perseguir uma única linha de guitarra. O orgulho não é o único entrave, ou sequer o medo de parecer desesperada, é o desconforto que sente quando está sozinha, com a guitarra ao colo e voz no alto, desconforto que se estende a todos os outros, às pessoas estranhas. O incómodo com a própria pele é eterno, segue na trova de “Quarto Sem Coisas”, harmonia de voltas lusitanas, que estes miúdos, mesmo na gentrificação lisboeta, têm sempre uma antena ligada às Beiras, ou melhor, ao ABC do mentor B Fachada.

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Sallim descomplica canções, tem uma facilidade invejosa na composição, burla as nossas expectativas como poucos. Aparentemente, “Não Vale a Pena Pensar” é mais um desses folclores modernos de alegria contagiante que hoje enche festivais, frases ligeiras cheia de certezas. Porém, a compositora é descrente deste mundo que “toda a gente adora”, e ao mesmo tempo, sem extremismos, que isto de amor e namoro tem a sua pertinência, sobretudo como “remédio para quem não quer pensar”. “Mais Ninguém” adensa a trama, aos estalos e beijos, será esta a Angel Olsen portuguesa? Ou a Deslandes hipster, de roupa e jeito vintage, a embalar uma brisa leve de babies e juras? Apesar das melodias sorridentes, a nossa pequena heroína lisboeta não consegue atingir o estado amorfo de felicidade que este folclore moderno promete, um verão imortal de sorrisos, concertos acústicos em rooftops. Esta ilusão não está ao seu alcance, foi barrada à entrada da discoteca do contentamento. Logo ela. Certamente “algo deve estar mal”.

A perspicácia ao longo de A ver o que acontece é como consegue transformar em pop esta forma desengonçada de fazer batidas, como em “Outra vez”, refrões emparelhado no resto da cantiga, de mão dada, à procura do mesmo chão para pisar. Na emoção deste pôr-de-sol, Sallim ainda não sabe quem é, o que sente, que música quer ouvir ou fazer, nem com a garantia que por detrás da cortina está o feiticeiro Eduardo Vinhas, o responsável pela crueza reveladora do estúdio Golden Pony, onde nenhuma melodia mal acabada sobrevive incólume ao raio-x.

É na contemplação, sentada em casa, que Sallim encontra o seu caminho. Na viagem estão as incertezas e descobertas que transformam esta compositora, o destino é indiferente, fica para outro disco, quem sabe, melhor que este. Os percalços anteriores, muros a passar por cima, músicas à deriva no Bandcamp, foram a escola necessária para aprender como colocar a voz, entre tons, entre espaços, desde o tilintim do seu glockenspiel aos teclados coloridos de Lourenço Crespo, irmão de armas da Cafetra, responsável pela — nas palavras de Observador, “indiepop com desabafos de eletrónica”. “Sem noção do que é bom pra mim”, Sallim explora este desamparo, o terror de falhar, e dá de caras com a sua melhor motivação para cantar, o convívio com o ouvinte, outro desencontrado na arte de estar vivo.

Na paragem final deste disco, “Hoje Fico em Casa”, debaixo do nevoeiro de teclas, confessa que não tem nada para dizer, está sem cenas para cantar, a ver o que acontece, “e se a canção tá mal, não sei se vale a pena”. Não Francisca, tudo vale a pena quando a Sallim não é pequena, a petiz cantora agigantou-se finalmente, sozinha ou acompanhada, em casa ou na escola, a cantarolar aos saltinhos pelas ruelas da incerteza, agarrada à magia das canções pop de outrora, a continuar nesta mania de escolher uma harmonia com seu nome. Acabaram as surpresas, já sabemos o que acontece quando ela pega numa guitarra, uma desconjuntura moral, uma almofada bem remendada, que mostra a vitalidade de uma juventude sem alento.