“Não está em cima da mesa” um pedido de Cabo Verde para que Portugal devolva bens culturais retirados durante o período colonial, afirmou na segunda-feira à noite o presidente da República da Cabo Verde, que se encontra em visita oficial a Portugal. Jorge Carlos Fonseca falou aos jornalistas em Oeiras, durante a apresentação do livro de poesia “A Sedutora Tinta de Minhas Noutes”, de que é autor. Como presidente em exercício da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), acrescentou que esta “não é uma questão na agenda ao nível das lideranças da CPLP”.

“Acompanho isso pela imprensa e no diálogo com alguns chefes de Estado.  Creio que pode ser legítima a reivindicação, mas, como homem de cultura, para além de chefe de Estado, espero que, a realizar-se esse tipo de transferência legítima, ela se traduza em benefícios para os países e povos que querem receber um património que é seu”, declarou Jorge Carlos Fonseca.

O tema da devolução de obras de artes e artefactos de antigas colónias, que se encontram hoje em museus e instituições culturais da Europa, surgiu primeiro em França, com grande repercussão pública, depois de o presidente Emmanuel Macron ter considerado inaceitável que “grande parte” da herança cultural de países africanos esteja hoje em território francês. Macron encomendou um estudo a dois académicos, Bénédicte Savoy e Felwine Sarr, que em novembro último apresentaram um relatório segundo o qual obras retiradas e enviadas para França sem o consentimento de países africanos devem ser devolvidas à procedência se houver pedidos nesse sentido.

Carolina Cerqueira, ministra da Cultura de Angola, disse em dezembro ao jornal “Expresso” que quer “dar início a consultas multilaterais com vista a regularizar a questão da propriedade, da posse e da exploração dos bens culturais angolanos no estrangeiro”. Até há pouco tempo, as autoridades portuguesas não tinham recebido qualquer pedido formal, mas Portugal “irá colaborar com tudo o que for solicitado, quando for solicitado”, garantiu já este ano Graça Fonseca, ministra portuguesa da Cultura.

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O número de objetos em causa é desconhecido, segundo o crítico e curador de arte António Pinto Ribeiro. “Muitos objetos estão nas reservas, nem sequer estão expostos. Podem ser 10 mil, 50 mil ou 80 mil. Os próprios diretores dos museus não sabem”, afirmou em novembro, citado pela agência Lusa.

No que pode ser interpretado como um comentário ao modo como Angola apresentou a questão, Jorge Carlos Fonseca disse nesta segunda-feira:

“Em relação a Cabo Verde, o problema põe-se de maneira diferente. Somos um país feito de bocados, de pedaços do mundo, de culturas, um país de partilha, e temos um modo de diálogo e de concertação um pouco diferenciado. Privilegiamos sempre o diálogo, o consenso, a concertação e só faríamos uma reivindicação deste tipo através de processos negociados e que não sejam conflituais. Mas não está em cima da mesa em Cabo Verde”, garantiu o presidente.

CPLP não recebeu nenhuma queixa sobre designação do Programa Pessoa

Sobre a polémica que tem envolvido Fernando Pessoa e algumas acusações de racismo, o presidente de Cabo Verde, disse que é preciso separar a obra de Fernando Pessoa das suas opiniões, adiantando que não recebeu oficialmente nenhuma queixa sobre a designação do Programa Pessoa.

A escolha de Fernando Pessoa para patrono de um projeto de intercâmbio universitário no espaço de Língua Portuguesa foi contestada pela presidente da PADEMA — Plataforma para o Desenvolvimento da Mulher Africana, a angolana Luzia Moniz, devido às alegadas ideias racistas do poeta português.

Num texto de opinião publicado no Jornal de Angola em 10 de fevereiro, Luzia Moniz defendeu que Portugal é um “país onde a mentalidade esclavagista fascista ainda é dominante” e considerou o escritor Pessoa como uma “figura sinistra”, pedindo aos países africanos membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) que “revertam essa situação”.

“Os irmãos de Cabo Verde, que neste momento presidem a CPLP, têm uma responsabilidade acrescida nesta questão”, escreveu ainda a socióloga e jornalista.

Polémica na CPLP. Será que as frases de Fernando Pessoa são mesmo racistas?

O assunto não foi abordado na visita de hoje de Jorge Carlos da Fonseca à sede da CPLP em Lisboa, onde se encontrou com o secretário executivo, o português Francisco Ribeiro Telles, e os representantes permanentes da organização.

“Ninguém falou disso. Oficialmente, como presidente em exercício da CPLP, não recebi nenhuma comunicação, nenhum comentário, nenhuma opinião critica”, disse o Presidente cabo-verdiano, referindo que leu com atenção a opinião de Luzia Moniz, mas que a questão não foi colocada ao nível da instituição.

“Do meu ponto de vista, uma coisa é o escritor, o pensador, a sua obra, outra coisa é a opinião mais ou menos política” que Fernando Pessoa “poderá ter emitido” sobre fenómenos como o esclavagismo, vincou o chefe de Estado.

O secretário executivo da CPLP considerou, por outro lado, que existe “uma grande confusão” sobre o assunto.

“A primeira vez em que se falou do Programa Pessoa — e não Fernando Pessoa — foi em 2013 e pretendia ser uma réplica do programa Erasmus. Em 2015, houve uma proposta no sentido de a Assembleia Parlamentar da CPLP adotar o programa, que foi ratificada em 2017 em Cabo Verde. Em nenhum lado está escrito que é o programa Fernando Pessoa, o que se diz é o Programa Pessoa são coisas diferentes”, sublinhou Francisco Ribeiro Telles.

“Foi uma decisão da Assembleia Parlamentar da CPLP, subscrita por todos os Estados-membros”, reforçou o dirigente da CPLP.

O presidente poeta

Também poeta, Jorge Carlos Fonseca apresentou perante mais de 100 pessoas num restaurante em Oeiras A Sedutora Tinta de Minhas Noutes, coletânea agora publicada pela editora Rosa de Porcelana. Marcaram presença escritores como Gonçalo M. Tavares, José Luís Peixoto ou Andréa Zamorano, mas também o presidente da Câmara de Oeiras, Isaltino Morais. Leram-se poemas e escutou-se uma morna na guitarra do músico Silvestre Fonseca.

“É um livro de poesia. Muitas vezes, poesia no sentido formal, naquilo que habitualmente se denomina facto poético, com linhas cortadas. Noutras vezes, é prosa, mas mesmo nos segmentos de prosa creio que o modo de elaboração da escrita, a densidade dos textos, a articulação das palavras e a musicalidade, é sempre poesia”, comentou Jorge Carlos Fonseca, presidente desde 2011, reeleito em 2016, cujo estilo informal lhe tem valido comparações ao presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa.

O livro terá lançamento oficial nesta terça-feira no encontro literário Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim. É a quarta obra literária do presidente cabo-verdiano, que começou a escrever na década de 70 e publicou pela primeira vez em 1995. O volume reúne textos poéticos dos três livros anteriores, incluindo de “O Albergue Espanhol”, dado à estampa no ano passado, “um dos ápices da moderna literatura cabo-verdiana”, escreve no prefácio Arménio Vieira, Prémio Camões 2009. Para capa do livro, a editora escolheu uma pintura de António Pedro, artista plástico cabo-verdiano e um dos nomes principais do surrealismo português.

A sessão começou depois das seis da tarde, com mais de uma hora de atraso, devido a compromissos de Jorge Carlos Fonseca na sede da CPLP, em Lisboa. Gonçalo M. Tavares classificou a escrita do presidente como uma “mistura muito estranha, sendo que a palavra ‘estranha’ atira para a admiração”.

Em conversa com jornalistas, o presidente disse que o seu “exercício poético” é feito sobretudo nas noites e madrugadas e explicou que “a poesia ajuda a que o exercício da função política seja menos árido, menos ortodoxo, mais arejado.”

“Normalmente, a escrita é feita em pedaços de papel, em caderninhos, com caneta de tinta permanente. O facto de ser presidente dá-me material e pretextos para a criação literária e poética e obriga-me a esticar os dias. É como se fizesse um exercício permanente de demonstrar que esta ideia de que o dia tem 24 horas é uma ideia convencional, não é exata, rigorosa”, disse. “Ando sempre com  um caderninho na mão, para todo o lado. “

Nascido em 1950, Jorge Carlos Fonseca recordou que veio para Portugal estudar direito, com apenas 17 anos, e que em Coimbra encontrou “um ambiente ligado à radicalidade estética”. “Conheci gente que me ensinou o surrealismo e o Teatro de Grotowski, estive nos círculos de jazz, andei com o Amaral Dias, que hoje creio que é um grande psiquiatra, que me dava alguns livros de coisas esquisitíssimas. Li Guy Debord, André Breton, Trotski, Rosa Luxemburgo, a par de Amílcar Cabral, porque eu era militante do PAIGC na clandestinidade.”

Considerado fundador do surrealismo crioulo, o próprio não rejeita essa corrente. “Uso muito as técnicas da escrita surrealista, mas hoje dificilmente há um poeta em Portugal ou em Espanha cuja escrita não seja, de uma forma ou de outra, tributária do surrealismo”, observou. “Alguns instrumentos como a escrita automática, o uso da metáfora, as situações incomuns, a procura de uma musicalidade anómala, são elementos de uma escrita surrealista, mas creio que na minha escrita também encontra um pouco de Pessoa, de Pound, de Sebald, muitas influências.”