Repensar a forma como trabalhamos é o mote de Patty McCord, a storyteller que durante 14 anos impulsionou uma nova cultura de organização de trabalho na Netflix e que esta segunda-feira esteve nas novas instalações da Farfetch, na zona da Boavista no Porto, a apresentar o livro “Powerful – Building a Culture of Freedom and Responsability”. É aqui que os conceitos de Silicon Valley dão lugar a conselhos práticos, dirigidos a quem lidera e colabora com empresas em todo o mundo.
Perante a audiência de colaboradores da Farfetch, Patty McCord explicou que a principal razão que a levou a escrever “Powerful” foi a de querer que os leitores percebessem que são poderosos e que podem gerir carreiras e pessoas. Dizendo que não é muito adepta do vocabulário de gestão, a ex-CTO da Netflix começou por apontar a grande falha ao mundo empresarial: a lentidão.
“Penso que os métodos que usamos para gerir pessoas e projetos são muito lentos, num mundo que é muito dinâmico para usarmos processos tão pesados que só nos tornam mais lentos”.
Com a abordagem da autora norte-americana, os recursos humanos transformam-se numa nova filosofia geradora de produtividade, que surge associada ao objetivo de atribuir poder às pessoas, no caminho para a gestão delas próprias e das suas carreiras. A receita do sucesso? É estar preparado para a mudança. Estejamos a falar de uma startup tecnológica ou de um gigante económico instalado há décadas no mercado.
Patty McCord passou por empresas como a Sun Microsystems, a Borland e a Seagate Technology, antes de ser a responsável pelo (Chief Talent Officer) da Netflix. Foi ma empresa de streaming de vídeos que participou na criação do documento “Netflix Culture Deck”. Desde que foi publicado, o manifesto já foi lido mais de 15 milhões de vezes.
Como criar uma cultura de elevado desempenho e simultaneamente atribuir liberdade e responsabilidade aos funcionários de uma empresa são algumas das respostas que se encontram quando se folheia “Powerful”, cuja edição portuguesa foi lançada no Porto, inspirada no “Netflix Culture Deck”. Além do livro, também o desafio está lançado em Portugal e o manual prático é direcionado a todos os que se debatem com as exigências de gestão de equipas, da motivação necessária para alcançar objetivos sem oferecer prémios ou bónus em troca, à prática da honestidade radical no contexto de trabalho, que pode passar por reconhecer que um trabalhador não se adapta às funções e despedi-lo, sem pedir licença.
Patty McCord reconhece que a mudança de hábitos nem sempre é fácil e pacífica. “Na Netflix costumavam dizer que não percebiam porque se estava a mudar a forma da organização da empresa”, afirmou Patty. Mas no mundo empresarial tecnológico, só há uma certeza: “Tudo funciona até deixar de funcionar”. Até se chegar essa conclusão não se percebe o porquê da mudança.
Para responder aos desafios dos mercados e à constante evolução, principalmente da tecnologia, Patty aconselha as empresas a tornarem-se resilientes e a apalparem novos terrenos. Como exemplo, deu aquele que melhor conhece, a Netflix. Quando lá chegou, há 14 anos, a gigante do streaming, era uma distribuidora de DVD por correio e “agora é uma empresa que está num prédio de 13 andares na baixa de Los Angeles, onde se fazem filmes e todos os tipos de programas de televisão”.
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Startups VS grandes gigantes económicos: quem vence a competição de uma economia orientada para a tecnologia?
Patty McCord tem como maiores fãs as empresas grandes e antigas, aquelas que procuram uma nova cultura de trabalho que seja capaz de responder ao crescimento das startups. Porquê? Porque os gigantes económicos, como bancos, seguradoras, marcas de moda e cosméticos concluíram que estão a ser mordidos nos calcanhares pelas startups ou reconhecem que estas empresas emergentes “are eating their lunch”, parafraseando a autora.
A boa notícia para as startups é que os gigantes económicos têm muita dificuldade em mudar hábitos antigos, tendo em conta que muitos deles têm centenas de anos de existência e um elevado número de trabalhadores. A startup “unicórnio” Farfetch, que já assegurou a dispersão do seu capital em bolsa (fez um IPO, na sigla em inglês), foi citada como um exemplo de uma empresa que sabe como o mundo da moda funciona e que conseguiu a resiliência certa para encontrar o seu lugar. Afinal, o que é preciso é “questionar constantemente” a missão de um projeto deste género para se chegar mais longe.
Voltando às grandes empresas que ganharam impulso ao longo dos anos, além da notoriedade das marcas, essas têm consciência que tudo está a mudar. Patty McCord deu o exemplo da banca, ao vincar que a atual geração já não necessita de ir ao banco para fazer o seguro do carro. Tarefas que antigamente eram morosas e burocráticas estão hoje disponíveis numa aplicação de telemóvel. “Isto é uma enorme disrupção” com o passado, diz a ex-CTO da Netflix.
Dando nota das preocupações da sua mãe, de 85 anos, que se manifestou preocupada com o facto de o banco do qual é cliente estar a fechar os balcões, a autora de “Poweful” ironizou, dizendo que a instituição bancária “não quer a minha mãe, eles já a têm, querem-vos a vocês, os mais novos”. Afinal o que importa é o dinheiro, e a ganância é “uma grande parte da equação” para as empresas capitalistas, que cada vez mais procuram uma orientação virada para novos clientes que podem estar a ser conquistados por serviços mais recentes e inovadores.
Os conselhos e as exigências para o sucesso
Além de a preparação para a mudança e de a inovação serem as chaves para o sucesso de uma empresa, a conquista efetiva e a futura manutenção de novos clientes é outra métrica determinante para medir o sucesso de um negócio. Mais importantes do que os clientes que estão a ser servidos agora, são aqueles que têm potencial de quererem usufruir do serviço no futuro. Para que tal aconteça, uma empresa “tem de ser muito clara sobre quem é” e manifestar a sua cultura empresarial para conseguir chegar ao maior número de pessoas de um mercado que é global.
Na Netflix, um das perceções de medição do sucesso surgiu com a alavancagem do sistema de streaming, em detrimento do velho serviço de distribuição de DVD. “Atingimos o mesmo número de clientes no streaming que tínhamos no DVD by mail e tornou-se óbvio que era preciso mudar os recursos de um serviço para o outro”, assegurou a ex-CTO da Netflix. Mas, ganhar novos clientes implica mantê-los satisfeitos. “Na Netflix percebemos que a métrica dos novos clientes era a errada, que o importante era medir os clientes que ficavam com a empresa. O importante é a retenção e não a aquisição”, afirmou McCord.
Outro conselho deixado por Patty McCord está relacionado com a segmentação da atividade empresarial e a consciência necessária para perceber quando uma empresa deixa de cumprir a sua missão e precisa de delegar competências noutros domínios. Aqui, o exemplo dado foi o da Alphabet, também oriundo de Sillicon Valley. A Google percebeu que não conseguiria continuar a desempenhar a sua missão concentrando todas as valências num só polo, “chegaram à conclusão de que não conseguiam inovar mais com a dimensão que tinham”.
Com o surgimento da Alphabet, entrou em ação a segmentação de áreas de negócios, colocando, na prática, cada macaco no seu galho, com a criação de “pequenas unidades focadas em coisas diferentes”, como afirma Patty McCord. A Google ganhou com esta mudança, e prova disso foi o surgimento da incubadora, que funciona “até as ideias ganharem pernas”, segundo a autora, que explicou que, nessa fase, o trabalho é passado para outras empresas que concretizam essas ideias. Mais um conselho para o sucesso: a vantagem de pequenos grupos é que se conseguem focar nos seus pequenos problemas. Afinal é tudo uma questão de escala.
Desafios e problemas das startups: da escala à “broculture”
“As startups tecnológicas têm tendência a contratar pessoas que são como as próprias empresas”, afirma Patty McCord. Um dos maiores desafios começa quando uma empresa do género ganha escala. Segundo a especialista nesta nova filosofia de organização de trabalho, “se uma startup tiver sorte, se o tempo for o certo e tiver dinheiro suficiente, os problemas começam a ganhar uma escala de dificuldade”.
“Don’t play a big scale all the time”, afirmou.
A resposta às contrariedades pode não ser a mais positiva, já que segundo McCord, “é muito difícil imaginar uma solução para um problema cem vezes maior do que aqueles a que estamos habituados a encontrar”. Além disso, nem todas as pessoas têm a capacidade de lidar com problemas complexos. Para fazer face aos obstáculos, a autora de “Powerful” revela que quando uma startup pensa que vai ter “o dobro da dimensão, contrata o dobro das pessoas” e, para Patty McCord, “isso é errado. São o dobro das pessoas a ficarem confusas”.
Questionada sobre se Silicon Valley ainda é um mundo de homens, Patty foi perentória ao afirmar que a broculture é um conceito, mais do que isso, é uma forma de estar que ainda existe, mesmo tendo em conta um universo laboral de tecnologia de ponta e inovação.
A responsável pela mudança da organização de trabalho da Netflix, alicerçou a sua crença nas páginas de outro livro: “Brotopia” de Emily Chang, produtora executiva da Bloomberg Technology. Segundo Patty, um exemplo desta cultura sexista que prima pelo domínio masculino no mundo empresarial e tecnológico é o surgimento dos primeiros computadores, que “não eram muito úteis, eram difíceis porque era preciso programar, só davam para fazer tarefas rudimentares e por isso eram direcionados para os rapazes”.
“Universidades inseridas em Silicon Valley, como a Stanford, não tinham professores suficientes para ensinar ciência da computação. Um dos requisitos para se ser elegível era ter experiência com computadores, na altura, só os rapazes tinham”, afirmou.
A essência da broculture “continuou a perpetuar-se no tempo e, mesmo que as mulheres conseguissem perceber como se fazia, nunca estavam na equipa certa”, afirma Patty McCord, que considera que o fenómeno “é ainda muito profundo” e que ao longo dos tempos tornou-se normal a ideia de que só os homens é que são bons com a tecnologia. O Facebook de Mark Zuckerberg é outro estandarte da broculture para a especialista, porque o criador da rede social, já na geração seguinte, “chegou a dizer que os homens mais jovens são os mais espertos e que qualquer pessoa com menos de 30 anos não o é”, afiançou McCord.
Liberdade VS Responsabilidade: Uma “faca de dois gumes”
A verdade é que gerir uma startup não é mesma coisa que fazer uma cirurgia ao cérebro. Apesar de a disciplina ser um fator determinante, como Patty McCord aprendeu com os engenheiros que desenvolviam softwares na Netflix, fulcral é mesmo perceber como funciona a máquina, ou a empresa: “Quando sabemos como funciona a máquina, sabemos qual é a nossa parte dentro da máquina e, depois, quanto mais percebemos isso, melhor conseguimos tomar decisões”.
O processo de tomada de decisão pode e deve ser entregue ao trabalhador, segundo a filosofia organizacional de McCord, e o trabalhador tem que atuar tendo em conta o melhor interesse da empresa, mesmo que isso implique gerir orçamentos. Admitindo que teve de fazer alterações na equipa das finanças de empresas pelas negas que eram dadas a orçamentos, Patty assegura que a melhor postura é “dar liberdade à equipa para gastar o dinheiro a fazer aquilo que acham que é a coisa certa e dar-lhes essa responsabilidade”. Contudo, reconhece que a liberdade completa também não é uma opção, já que “as pessoas ficam perdidas”, o que é preciso é saber orientar e estimular essa liberdade, com responsabilidade.
“Se queremos que os colaboradores pensem fora da caixa, primeiro temos de colocar lá a caixa”. afirmou.
Os limites são importantes para Patty McCord, até porque, segundo a autora de “Powerful”, outro dos segredos do mundo empresarial, da inovação tecnológica, e do sucesso é o foco necessário para atingir os objetivos. Entender os parâmetros que nos movem e aos nossos projetos é o ponto de partida para apresentarmos a nossa missão e conseguirmos esticar os nossos limites.