Em 2010, Jafar Panahi foi preso juntamente com a mulher, a filha e mais um grupo de amigos e acusado de fazer propaganda contra o governo do Irão e a república islâmica. O realizador de “O Círculo” e “Sangue e Ouro” viu-se condenado a seis anos de cadeia (depois convertidos em prisão domiciliária) e proibido de fazer filmes durante 20 anos (cada um que fizer sem autorização, são mais seis anos de detenção), de escrever argumentos, de dar entrevistas à comunicação social iraniana e internacional e de deixar o país, menos se for para fazer tratamentos médicos ou ir em peregrinação a Meca (Panahi disse recentemente que pode sair do Irão, mas que não o faz por saber que não o deixarão voltar).

[Veja um documentário com Jafar Panahi:]

O seu compatriota e autor, historiador e professor Hamid Dabashi escreveu: “Panahi não faz o que lhe dizem. Na verdade, ele construiu uma carreira de sucesso a não fazer o que lhe dizem.” E insiste. Apesar da proibição, e porque as autoridades iranianas fazem vista grossa, são manifestamente incompetentes ou sabem do enorme prestígio internacional de que goza o realizador e abstém-se de mais represálias, Jafar Panahi, aproveitando também a portabilidade das câmaras digitais, já fez quatro filmes desde que foi condenado, quer dentro, quer fora de portas: “Isto não é um Filme” (2011), “Closed Curtain” (2013), “Táxi” (2015) e agora “3 Rostos”, todos exibidos e premiados em grandes festivais internacionais, e distribuídos comercialmente por todo o mundo.

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[Veja o “trailer” de “3 Rostos”:]

Em “3 Rostos”, Panahi volta a pegar num volante, já não de um táxi como no filme anterior, mas sim de um jipe todo-o-terreno. Leva companhia, a grande atriz iraniana Behnaz Jafari, e vão ambos numa viagem claramente reminiscente das que fazem os protagonistas de alguns dos filmes de Abbas Kiarostami, de quem o realizador foi assistente e discípulo. Jafari recebeu um vídeo feito num telemóvel em que Marziyeh (Rezaei Marziyeh), uma jovem aspirante a atriz que vive numa remota aldeia junto à fronteira com o Azerbaijão, diz que a família não a deixa seguir o seu sonho e parece suicidar-se por enforcamento numa caverna. Preocupadíssima, Jafari arrebanhou Panahi para a conduzir até lá e averiguar da veracidade do vídeo e saber se a rapariga é morta ou viva.

[Veja uma entrevista com as duas principais intérpretes no Festival de Cannes:]

Uma vez chegados, realizador e atriz começam a investigar, vivem algumas peripécias cómicas, insólitas e dramáticas, e conhecem quer a hospitalidade e generosidade dos locais, quer a forma como tradições e costumes ancestrais continuam profundamente enraizados no Irão rural, e constrangem aqueles que têm aspirações que fogem à norma e ao que é esperado deles. Em “3 Rostos”, Jafar Panahi continua a documentar os problemas e os males da sociedade iraniana (que aqui vão das queixas e carências dos habitantes da aldeia até à situação das mulheres), ao mesmo tempo que filma três mulheres, duas atrizes e outra que quer sê-lo, pertencentes a gerações diferentes, cada uma correspondendo a uma época específica da história recente do Irão, e do próprio cinema iraniano, passado, presente e futuro.

[Veja uma sequência do filme:]

Temos Behnaz Jafari, a vedeta da atualidade, que é recebida com aplausos e pedidos de autógrafos e “selfies” mesmo naquele sítio recôndito; temos a velha atriz dos tempos pré-revolucionários, uma estrela da época do Xá, presença enigmática que o realizador só filma à distância e de costas, e que ali se foi refugiar para pintar; e temos a jovem Marziyeh, que deseja ardentemente sair dali e ser atriz em Teerão apesar dos obstáculos que lhe são postos (paradoxalmente, o Irão tem um “star system” e Behnaz Jafari é acolhida de forma entusiástica na aldeia, mas a filha da terra é chamada de “saltimbanca” por querer ir para o Conservatório, e o irmão reage como se ela tivesse anunciado que se ia prostituir para a capital), e a quem Panahi deixa uma réstia de esperança no plano final (o que lhe custa um para-brisas estilhaçado).

E há ainda, “last but not least”, o próprio Jafar Panahi, que volta aqui a pôr-se em cena e a esbater a linha entre realidade e ficção, num filme onde, mais uma vez, à intolerância que sobre ele pesa e às condições também elas constrangedoras da rodagem, contrapõe o seu conciso virtuosismo cinematográfico e impõe a coragem, a generosidade e o humanismo do seu olhar.