Feche os olhos, descontraia e viaje uma década no futuro. Se calhar nem é preciso tanto. Cinco anos. E imagine que está sentado numa sala de cinema, ou em casa, diante do que passará por televisão na altura, a ver o mais recente blockbuster, uma fita de ação com um elenco de luxo como nunca houve algum: Steve McQueen, Charles Bronson, Bruce Lee, James Dean e uns jovens Clint Eastwood, Robert de Niro e Sigourney Weaver.

Nem tudo o que leu no parágrafo anterior é ficção. Os mortos podem regressar à vida e os velhos podem ser jovens outra vez, sem se tornarem zombies ou terem bebido da fonte da eterna juventude, pelo menos no admirável mundo do entretenimento. E tudo graças aos avanços tecnológicos da CGI, sigla para computer-generated imagery, com uma importante ajuda de outra sigla que acaba em I, AI, a inteligência artificial, que das duas uma: ou vai revolucionar o mundo ou vai acabar com ele, seja através das mentiras que vai colocar à frente dos nossos olhos ou da revolta das máquinas, Terminator style.

Voltemos ao nosso blockbuster de ação do futuro e à parte que não é ficção. Ou melhor, aos nomes: James Dean e Robert de Niro. O primeiro, ator brilhante dos anos 1950 que entrou para a galeria das maiores estrelas de cinema de sempre com apenas três filmes e um acidente mortal ao volante do seu Porsche Spyder, está prestes a protagonizar o seu quarto filme. Ou assim será, caso vá para a frente a ideia de ressuscitar o protagonista de “A Leste do Paraíso”, “Fúria de Viver” e “O Gigante” para “atuar” num drama sobre cães militares com a guerra do Vietname como pano de fundo.

“O Irlandês” de Scorsese tem mais de três horas e soma elogios: de “épico” a “incrivelmente impressionante”

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Já Robert de Niro, que festejou em agosto 76 anos, vai aparecer com muitos bons anos a menos no novo épico de gangsters de Martin Scorsese, “O Irlandês”, que em Portugal só poderá ser visto no Netflix a partir de 27 de novembro depois de ter falhado o acordo entre a empresa e as distribuidoras de cinema. Aliás, Robert de Niro, que veste a pele do sindicalista/gangster Frank Sheeran a partir dos 24 anos de idade, não foi o único a sofrer o tratamento de rejuvenescimento. Al Pacino (79 anos) e o regressado Joe Pesci (76 anos), convencido por Scorsese a sair da reforma, irão também aparecer respetivamente como um trintão Jimmy Hoffa e um quarentão Russell Bufalino, um mafioso siciliano da idade de ouro da Cosa Nostra.

[o trailer de “O Irlandês”:]

“The Irishman”, no seu título original, será o mais longo filme da carreira de Martin Scorsese graças aos seus 209 minutos. E será também um dos mais caros: 159 milhões de dólares (144 milhões de euros), grande parte deles destinados à fonte da juventude fornecida pela Industrial Light & Magic para rejuvenescer o venerável trio de protagonistas. O tratamento começou em 2015, pela mão de Pablo Helman, um dos grandes magos do CGI, que chamou Robert de Niro para recriar a cena da festa de Natal de “Tudo Bons Rapazes” para testar a credibilidade da tecnologia de rejuvenescimento. “Construímos um pequeno cenário parecido com o filme original e ele (De Niro) fez os seus monólogos, solilóquios e experimentou várias expressões. E depois passou tudo por uma série de programas de computador”, contou Scorsese numa entrevista à revista Empire.

O resultado agradou ao realizador norte-americano, que dois anos depois, em setembro de 2017, começou a rodagem de “O Irlandês”. Os efeitos visuais prolongaram o período de pós-produção e aumentaram em muito o orçamento, com o próprio Scorsese sempre cheio de dúvidas em relação à credibilidade da coisa. Ainda em maio deste ano, numa entrevista no podcast “A Bigger Canvas”, Scorsese dava conta da sua insegurança: “Estou preocupado, estamos todos preocupados, porque estamos habituados a vê-los com os seus rostos envelhecidos. E agora é real. É preciso trabalhar melhor os olhos em algumas cenas, mas as rugas e outras coisas estão diferentes. E será que isso muda também os olhos? Se for esse o caso, o que é que havia nos olhos que eu gostava? Era a intensidade? Era a solenidade? Era a ameaça?”

E, efeitos especiais à parte, como é que um ator septuagenário entra no corpo de um homem com algumas décadas a menos? Al Pacino tentou responder numa entrevista à revista digital IndieWire: “É suposto eu fazer de Jimmy Hoffa com 39 anos, e depois é tudo tratado no computador. Quando estávamos a filmar, vinha alguém e dizia-me ‘tens 39 anos’. E eu tentava ir buscar a memória de quando tinha 39 anos, que era a forma do meu corpo se aclimatar à ideia e agir como tal”.

A partir do próximo dia 27, vamos ver se este novo capítulo cinematográfico da suspensão da descrença resulta e se conseguimos, de facto, acreditar que Robert de Niro tem 24 anos e Al Pacino 39, esperando que seja mais convincente do que o jovem clone de Will Smith em “Projeto Gemini”, de Ang Lee.

A “exumação” de James Dean

O resgate de James Dean do mundo dos mortos é uma história completamente diferente, até porque o ator, trágica e prematuramente desaparecido em 1955, já não está aqui para dar o seu consentimento. E se a sua família chegou a ter algumas reticências em relação ao que pode ser classificado como uma exumação digital, acabaram por passar para segundo plano, quando aceitou ceder os direitos de imagem de Dean aos produtores Anton Ernst e Tati Golykh para a ressuscitação.

O quarto filme de James Dean, caso veja a luz do dia, será uma adaptação de Finding Jack, livro do escritor e argumentista Gareth Crocker sobre um soldado que cria uma relação com um labrador chamado Jack durante a guerra do Vietname mas que é obrigado a deixar ficar para trás durante a retirada final dos militares dos Estados Unidos.

E que James Dean iremos ver então? Segundo os produtores, será uma mistura de filmes e fotografias existentes que depois receberão o devido tratamento CGI. E, já agora, recorda-se da voz de James Dean? Pois bem, para que isso aconteça terá que ver os filmes verdadeiros dos anos 1950, já que a reencarnação será feita com a voz de outro ator. Provavelmente, ou era isso ou um James Dean em versão cyborg com voz de robô…

Concertos ao morto

Antes de chegar ao cinema, a ressuscitação digital já dera os seus primeiros passos na música, ainda que através de uma tecnologia diferente: o holograma. A ideia, que já anda por aí há alguns anos, é montar espetáculos em que um artista já desaparecido “regressa” para um concerto ao vivo. Perdão, ao morto.

A primeira tentativa de pôr os defuntos a cantar remonta a 1991, quando Natalie Cole (entretanto falecida, em 2015) se juntou ao pai, Nat King Cole (que morreu em 1965), para um dueto virtual do clássico “Unforgettable”. Na altura, não passou de um vídeoclip, mas a porta estava aberta. Foi já neste século que os concertos virtuais passaram a ser uma coisa normal, tendo até começado pelos vivos. No caso com os Gorillaz de Damon Alburn, que estiveram presentes nos Grammies de 2006 em versão animada, inclusive num dueto com uma Madonna que começou por ser uma ilusão em palco para depois entrar verdadeiramente em cena.

Foi preciso esperar até 2012 para a coisa passar para outro patamar, quando milhares de espectadores em Coachella ficaram em estado de choque quando no palco se juntaram Snoop Dogg, Dr. Dre e… Tupac Shakur. Não, a teoria de conspiração que dava Tupac como vivo e de boa saúde não se confirmou. O rapper continuava bem morto desde 1996 e a atuação não passou de uma ilusão holográfica, lançando o que ameaça transformar-se numa verdadeira indústria.

Depois de Tupac, foi a vez, um ano depois, do rapper Ol’ Dirty Bastard regressar à vida para uma atuação com os seus Wu-Tang Clan e, em 2014, cinco anos depois da sua morte, foi a vez de Michael Jackson voltar a cantar e a dançar “Slave to the Rhythm” na cerimónia dos Billboards.

Desde então, entre mortos e vivos, as atuações e os concertos virtuais recorrendo a imagens holográficas têm sido mais do que muitos. Entre os finados que voltaram a entrar em palco contam-se nomes como Ronnie James Dio, Roy Orbison, Buddy Holly ou Maria Callas. Estrelas desaparecidas como Whitney Houston ou Amy Winehouse estão em lista de espera para regressar dos mortos.

Tudo isto é obra, em grande parte, de uma série de empresas — Base Hologram, Eyellusion ou Hologram USA — que descobriram o que pode muito bem vir a tornar-se um novo filão, por mais “creepy” e eticamente questionável que seja. E se acrescentarmos a isto tudo — os hologramas, a CGI — os chamados “deep fakes”, um engano criado com a ajuda da inteligência artificial que manipula imagens e vídeos de forma quase perfeita (por enquanto…) estamos definitivamente lançados para um futuro em que não saberemos distinguir a realidade da ilusão, a verdade da mentira. Tenham medo, muito medo.