Parece não haver dúvidas de que as quatro atrizes formam mesmo um grupo coeso e assumem por inteiro o papel das cantoras da mais famosa banda feminina que Portugal já teve. Encontram-se com o Observador no pátio de umas instalações militares em Xabregas, Lisboa, falam umas por cima das outras num entusiasmo quase adolescente, caminham juntas em bando como quem pede que se abram alas porque finalmente chegaram as novas heroínas. Sexta-feira ao fim da manhã, dia 17 da rodagem.

Daqui a pouco juntam-se ao restante elenco para uma cena num fictício escritório da editora PolyGram em 1979 e vão discutir atrasos nos pagamentos perante os músicos e empresários Tozé Brito, Mike Sergeant e Cláudio Condé. Foi nesse preciso momento, reza o guião, que nasceu o tema “Café Com Sal”.

Por enquanto, de cabelos arranjados e sem maquilhagem, conversam sobre o aguardado filme biográfico das Doce, com estreia prevista para 25 de junho. “Bem Bom”, assim se chama, é realizado por Patrícia Sequeira e também vai dar uma série na RTP1 a exibir nos últimos meses do próximo ano.

Carolina Carvalho tem 25 anos e enormes olhos verdes, é Lena Coelho, de 16. Sublinha que “há uma geração inteira que conhece muito bem as Doce”, pelo que sente redobrada responsabilidade como atriz.

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“Temos de manter as características mais identificáveis, mas o facto de ser uma obra ficcionada permite-nos ir mais além. Não representamos tudo exatamente como aconteceu, porque nem sempre isso se iria compreender no ecrã.”

Bárbara Branco tem a mesma idade da personagem Fátima Padinha, 20 anos, e entusiasma-se durante a conversa. “Eram quatro mulheres jovens, passavam a vida juntas, tinham de lidar com situações complicadas, tinham feitios vincados, personalidades fortes. É normal que houvesse conflitos e vão ser retratados.” Nota Lia Carvalho, 29, dona de um ar grave a fazer de Teresa Miguel, 23, a ruiva das Doce: “Independentemente dos conflitos, que podiam ser tenebrosos, elas chegavam ao palco e eram um grupo, estavam unidas em torno do mesmo objetivo.”

Os acontecimentos estão interpretados e o relato das atrizes já mistura a realidade do que conhecem com a ficção que agora protagonizam. Não deixam escapar pormenores, controlo total sobre o que revelam para manter acesa a curiosidade do público. “Querem saber, terão de ver”, sussurra Ana Marta Ferreira, 25, a loura Laura Diogo, de 18.

Fala-se sobre o famoso boato que envolveu Laura e Reinaldo, jogador do Benfica – ela teria sido hospitalizada depois de fazer sexo anal com ele, falatório nacional, escândalo grotesco agora ansiado como peça do filme. Será que consta? Consta. Sorriso implacável de Ana Marta Ferreira: “A história do boato vai ser explicada no filme e na série e não digo mais”. Bárbara Branco: “Era impossível passar ao lado.”

Foi no Festival RTP da Canção de 1982 que as Doce cantaram “Bem Bom”

Silêncio! Ação

A rodagem termina a 4 de março e hoje é nas instalações da Manutenção Militar do Exército, um antigo convento na zona oriental de Lisboa. Depois da maquilhagem e figurinos no primeiro piso, sobem três andares até ao set. Tudo se passa com uma normalidade aparente, apesar da tensão acumulada em algumas caras. É o caso da realizadora. Ali ao lado, de olhos colados em dois ecrãs, Patrícia Sequeira parece apreensiva e talvez por isso prefere não falar com o Observador.

Os técnicos transitam de canto em canto, uns nervosos e outros em rotina, até ao momento em que João Sales, primeiro assistente de realização, manda sair toda a gente do cenário e diz que o ensaio é para começar. No corredor, à espera, as atrizes emitem sons guturais para prepararem a voz e quase em voz alta debitam o texto que lhes cabe. “Silêncio! Ação.”

Elas entram na PolyGam de rompante. “Onde estão os nossos cheques?”, acusa Lena Coelho. “Vocês não confiam em nós”?, contrapõe Tozé Brito, interpretado por Eduardo Breda. Ouvem dizer que as Doce não lhes pertencem a elas, mas à editora, e revoltam-se. “Então nós estamos a trabalhar há meses e ainda não vimos um tostão?”, pergunta Teresa Miguel. Se a cena aparecerá no filme ou na série, é uma incógnita. O filme vai de 1979 a 1982 e procura retratar a vida de palco, enquanto a série viaja até até 84 e entra pela vida pessoal do quarteto.

Filme feminista?

Há pouco na conversa as atrizes destacaram a composição das personagens, a pesquisa feita, os conselhos da atriz Ana Padrão, as sugestões de leitura para que compreendessem melhor as décadas de 70 e 80 em Portugal. Para Carolina Carvalho, “foi muito importante a Patrícia ter falado com cada uma das Doce, para completar o guião.” Elas próprias também se reuniram com as cantoras e partem do relato na primeira pessoa para a recriação no grande ecrã. “Temos a sorte de estar a fazer um filme sobre pessoas que estão vivas, o que nos ajuda muito. Dificilmente a pesquisa poderia ser mais completa.”

A conversa avança e aproxima-se do feminismo. Lia Carvalho: “Houve um dedo do estilista Zé Carlos na criação das Doce. Era amigo da Laura, foi um homem muito à frente, viajava muito, tinha influências de Londres, era ele que vestia a banda.” Marta Ferreira: “O Zé Carlos idolatrava a mulher e queria sempre mostrar o melhor do feminino.” Bárbara Branco: “Quatro mulheres com esta força e garra a subirem a um palco seminuas e a cantarem letras com alguma conotação sexual… Não foi muito bem visto à época.” Lia, novamente: “A mais velha tinha 23 anos e a mais nova tinha 16. Eram umas miúdas, se bem que naquele tempo as mulheres amadureciam mais cedo. As Doce são criadas por homens, mas ganham autonomia e poder quando se lançam à estrada, porque têm de tratar de tudo sozinhas, sem apoio: assinavam contratos para concertos, marcavam viagens, hotéis, geriam a carreira.”

Pode ser que a realizadora esteja a sentir o ar do tempo e queira um objeto artístico de afirmação feminina. Sim, mas é ligeiro. “É arriscado dizer que se trata de um filme feminista”, explica Carolina Carvalho. “O objetivo não é apresentar as Doce como melhores do que os homens, é simplesmente valorizar o trabalho que fizeram. Queremos mostrar as mulheres por detrás do fenómeno de popularidade. Eram mulheres guerreiras, com uma capacidade de trabalho incrível e marcaram e mudaram uma geração.”