Existem poucas coisas mais 2020 que Grimes. E Grimes existe há 10 anos. Por detrás deste avatar de canções e artes plásticas está Claire Boucher, a compositora canadiana que embateu na terra como uma visão, um vislumbre do futuro de cabelo rosa e orelhas de elfo. Não existe uma reação pacífica às criações iconoclastas de Claire Boucher. Podemos considerar Grimes de duas formas: ou aceitamos que é um veículo magistral da esquizofrenia tecnológica e identitária do nosso tempo; ou renegamos este universo por inteiro e ouvimos estas melodias como uma série de conceitos e colagens musicais desconexas. Qualquer uma destas opções é aceitável, mas só a primeira dá o contentamento de ouvir grandes canções pop que respiram plenas em 2020.

Quando anunciou Miss Anthropocene — o quinto álbum de originais e terceiro numa grande editora — Claire Boucher disse ao Wall Street Journal que queria “tornar as alterações climáticas divertidas”, uma frase que seria inesperada se não viesse da mesma pessoa que acredita plenamente que a inteligência artificial vai apoderar-se da terra e eliminar a humanidade. O plano era fazer canções de tal forma exuberantes e contagiantes que ninguém conseguiria deixar de ouvi-las: “Eu vejo o urso polar e quero matar-me. Ninguém quer ver aquilo [impacto das alterações climáticas], percebes? Eu quero arranjar uma razão para olharmos para aquilo, quero torná-lo belo”. Quase um ano depois dessa entrevista, o surpreendente não é que um álbum sobre as alterações climáticas chamado Miss Anthropocene não é propriamente divertido, é que Grimes consegue penetrar na escuridão e cantar com a mesma jovialidade incandescente.

Miss Anthropocene pertence ao imaginário da banda desenhada e dos jogos eletrónicos, de traço japonês, universo que é próximo de todas as criações de Claire Boucher, até antes de nascer ao mundo como Grimes: em 2009, um jornal regional de Minnesota revelou que a polícia apreendeu uma rapariga chamada Zelda, que construiu uma embarcação habitável, encheu a “casa” de galinhas e batatas e tentou navegar pelo Mississippi até New Orleans (era Claire Boucher, quem mais podia ser). Mas a história de origem de Miss Anthropocene é bem menos pitoresca, envolve o conceito de misantropia — aversão à convivência social, e antropoceno — segundo a geologia é relativo ao nosso tempo, a degradação do planeta terra pela ação direta do homem. Este ser ou é uma vilã de banda desenhada, ou uma nova deusa do Olimpo, seguindo a máxima da Grécia Antiga, quando os homens refletiam as ânsias em seres divinos, para transcender a mortalidade e justificar a nossa pequenez. Idealmente, cada canção de Miss Anthropocene representa um passo mais perto da destruição, para o proveito dos novos deuses que cantam, uivam, deliram, e dançam por cima da desgraça terrestre.

[“Violence”:]

Os deuses são meramente outra máscara de Grimes, e quem acompanha a artista no Instagram sabe que existe um ritual cuidadoso em toda a fantasia. Claire Boucher é uma cria da internet, ao apresentar-se pelos filtros do Instagram está a demonstrar outra metamorfose do corpo, ascende além desta humanidade para um ser mais sensato, assexuado e impessoal, algo entre o élfico e o cyborg. O filtro também está nas canções, nas camadas e camadas de produção, no virtuosismo técnico de multiplicação de loops que certamente requerem a mesma dedicação que Kevin Parker entregou ao álbum que lançou há poucos dias. Se ouvirmos “So Heavy I Fell Through the Earth”, a primeira do álbum Miss Anthropocene, a comparação com a produção de Tame Impala não é descabida, é a mesma ânsia de desaparecer submerso num nevoeiro, com a atenuante que Grimes é uma artista completa que vive em todos os universos, reais ou imaginários.

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A segunda canção é “Darkseid”, e não precisamos de ir mais longe para captar a esquizofrenia musical de Grimes, a melodia mira o trap compassado, acerta no rock industrial, e porque não, uma rapper chinesa — 潘PAN — começa a rimar em mandarim, na cadência obscura do SoundCloud rap. O desconforto é latente, não são todos que têm estômago para acompanhar a mente frenética de Grimes, ainda menos tentar entender o seu processo de composição. Por exemplo, certo dia Grimes viu um filme de Bollywood — “Bajirao Mastani” — decidiu que o protagonista devia ser um cyberpunk, e claro, que este pensamento merece uma canção de melodia indiana com drum’n’bass: “4ÆM”. E quem mais consegue fazer isto resultar? O método de composição esdrúxulo é o mesmo que em Art Angels — o álbum anterior, criou o hino pop “Kill V. Maim”, que segundo a própria, é inspirado pelo Al Pacino em “O Padrinho: Parte II”, se Michael Corleone fosse um vampiro transgénero que pode viajar no tempo.

Art Angels foi a expansão do universo pop de Grimes, a certeza que não retornam os tempos do ‘DIY’, isto é, da rudeza e isolamento de produzir e lançar um álbum completamente sozinha. Miss Anthropocene prossegue este caminho, que permite entre a estranheza de melodias opostas em colisão, cantar a balada de piano “New Gods” ou a batida saltitante que embala “You’ll miss me when I’m not around”. Porém, desta feita, nestas dez canções não existem hinos categóricos e universais capaz da entoação extasiante de “Flesh Without Blood” ou “Genesis”. Outra que pode ser confundida com sucessos da rádio é “Delete Forever”, uma canção disfarçada de country-pop, com banjo, que claro, não é sobre um passeio no prado de Texas, mas trata da crise do consumo de opiáceos nos EUA, em homenagem a um amigo e vítima recente: Lil Peep. Esta é uma prova que o universo de Grimes deixou de ser insular, de resumir-se a um conjunto de canções privadas, o que tem feito correr muita tinta. Repentinamente, a canadiana está no campeonato de Kanye West, existem mais pessoas fascinadas pela bizarria de um quotidiano que nos é distante, pelas intervenções dúbias e controversas na imprensa, pela relação com o multimilionário Elon Musk, do que propriamente as canções. A célebre jornalista do Guardian, Laura Snapes, tem alertado que a compositora sofre um escrutínio abusivo sem precedentes. Será que Grimes concorda com esta análise? Ou é o contrário, será que é nos holofotes que está confortável, que como canta em “My Name is Dark”, é a miúda que brinca com o fogo?

[“Delete Forever”:]

Grimes sempre confessou esta dualidade, é uma pessoa privada que quer ser uma estrela pop. Sendo assim, a malha EDM para entreter as massas é obrigatória, neste caso “Violence” com ajuda do DJ i_o. Porém, esta é outra dualidade de Grimes, porventura a mais controversa. A violência e o abuso são retratados como um jogo de agressão e atração, provavelmente aqui a representar o homem e a terra, que bem sabemos, é outra máscara que esconde uma pessoa: Claire Boucher. Numa das grandes canções da década passada, a fantasmagórica “Oblivion”, Grimes já cantava sobre uma vítima de tal forma perseguida, que o trauma passa a mantra, e quando a noite irrompe, a atração e repúdio são inescapáveis — “See you on a dark night”. É na escuridão que os pesadelos de Grimes formam corpo. “My Name is Dark” é a mais rock deste disco, até tem riffs, até menciona Smashing Pumpkins, até carrega a mesma inquietação pessimista e apocalíptica de Trent Reznor. A outra rockalhada nu-metal, “We Appreciate Power”, acabou por ficar de fora de Miss Anthropocene, talvez porque “My Name is Dark” compre o serviço e aplica o ambiente de uma angústia misantrópica:

“So, we party when the sun goes low
Imminent annihilation sounds so dope

I’m not shy but I refuse to speak
Because I don’t trust you to understand me”

Ao invés de Leonard Cohen, que consegue tornar o fim dos tempos num momento aprazível — “Dance Me to the End of Love” — estes personagens dançam desolados, giram perdidos num cenário apocalíptico. É inegável, tenhamos ou não dúvidas da sua sinceridade, Grimes está audivelmente afetada pelas desgraças sociais e ambientais:

“This is the sound of the end of the world
Dance with me ’til end of the night, be my girl
By the strength of the light
Audacity through from the lack thereof
They will kill us all”

[“My Name is Dark”:]

É possível que o conceito de Miss Anthropocene procura-se atingir o equilíbrio escorregadio de algo alegre, trágico e pertinente como “Dance Me to the End of Love” — inspirado pelos judeus nos campos de concentração que tocavam valsas enquanto os amigos e familiares entram nas câmaras de gás, ou mais recentemente, “Drone Bomb Me” — a soul de ANOHNI sobre as vítimas que são assassinadas por drones no Médio Oriente.  Este equilíbrio não existe em Miss Anthropocene, a visão de Grimes é demasiado expansiva e aglutinadora para transmitir ideias precisas. No entanto, por mais que a canadiana tente desaparecer numa série de subculturas encriptadas, desde o anime japonês ao cyberpunk, por mais que continue a entreter os tabloides com o  charme nada discreto dos burgueses, ou a dizer-nos insistentemente que a humanidade está condenada, Grimes é incapaz de esconder Claire Boucher. E Claire Boucher é uma das melhores compositoras pop de 2020.