Fiona Apple move-se a um ritmo particular. Em casa, o tempo é elástico, os dias passam-lhe lentamente pela janela, enquanto a mente corre e corre numa constante maratona. Este perpétuo destino é exposto em “Every Single Night”, canção com que a compositora nova-iorquina descreve o seu tortuoso processo mental, a cabeça assolada por questões que lhe descem pelo corpo abaixo, que a paralisam por completo. O combate contra este demónio é incessante, Fiona liberta-se somente para confessar o desespero ao piano, numa voz dorida de quem chora ininterruptamente desde criança. Ao público, infame espectador da desgraça, resta-nos complacência com cada murro no estômago, cada pedrada que a derruba, até reerguer-se novamente na liberdade de mais uma canção.

“Every Single Night” bem podia ter sido o último single de Fiona Apple. Em 2012, no álbum The Idler Wheel, em canções como “Left Alone” e “Regret”, revelou que chorava tanto que as lágrimas calcificavam, que não aguentava mais o cinismo e a maldade do mundo, que só queria estar sozinha. Em volta da sua santa trindade — “My dog and my man and my music is my holy trinity” — refugiou-se em casa rodeada somente de quem não lhe queria mal: um amante eventual, um piano e os cães. Oito anos depois, numa ironia que somente a realidade consegue assumir, o acaso ditou que Fetch the Bolt Cutters — o novo álbum de Fiona Apple — estivesse pronto quando o isolamento social da compositora se encontrasse com o nosso. Agora é inevitável, o caldo está entornado e Fetch the Bolt Cutters vai sempre remeter à presente quarentena do mundo. No entanto, convém recordar que o tempo destas canções é elástico, elas movem-se a outro ritmo, tanto estão aqui connosco, como ao longo dos últimos 42 anos anos de vida de Fiona Apple.

Apesar da aclamação crítica generalizada, Fetch the Bolt Cutters não é distante do restante universo Fiona Apple, nem sequer é infimamente superior a The Idler Wheel ou When the Pawn…, álbuns que têm tanto para nos dizer como os longos títulos antecedem — entretanto When the Pawn… foi derrubado no Guinness como o álbum de título mais longo pelos Chumbawamba. E novamente podemos julgar o livro pela capa.  Na boa tradição do português literal, podemos traduzir Fetch the Bolt Cutters em qualquer coisa como: “traz as ferramentas para cortar os parafusos”.

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A frase é retirada da série “The Fall”, quando a personagem principal liberta uma mulher vítima de abuso sexual e pede as respetivas ferramentas. Cinco álbuns depois, com 25 anos de carreira às costas, ainda é de liberdade que Fiona Apple canta, eternamente aprisionada às suas memórias e às angústias do mundo patriarcal. Esta resiliência é uma das principais razões para a aclamação generalizada de Fetch the Bolt Cutters: “Fetch the bolt cutters, I’ve been in here too long” .

Outra razão para esta inesperada consagração de Fiona Apple é mais palpável, uma constatação imediata quando ouvimos o início de “I Want You to Love Me”, a canção que abre o novo álbum. O primeiro instrumento audível é uma bateria eletrónica Casio, operada pela própria compositora, que serve logo como aviso que estamos perante uma nova mutação musical, uma série de canções com base na percussão, ao invés do piano que sempre ancorou Fiona Apple. A percussão em Fetch the Bolt Cutters tem um certo maquinismo, uma cadência de engrenagens e ruídos, sem livro de instruções, com espaço para o improviso do ocasional, as melodias emperradas, ou a decorrer furiosamente pelas roldanas da canção. Este novo formato de composição acompanha na plenitude o ritmo da mente frenética de Fiona Apple, o tal combate sem cessar com os demónios. É verdade que o som desta máquina a funcionar por cima dos ombros estava parcialmente empregue em The Idler Wheel, ou até em Extraordinary Machine — onde descreve-se mesmo como uma “máquina extraordinária”, mas nunca estendido a treze faixas consecutivas sem qualquer balada, sem espaço para respirar, numa forma desordeira e gloriosa que não há de ser muito distante das nossas vidas em abril de 2020.

Em “Fetch the Bolt Cutters”, que dá nome ao álbum, ouvem-se talheres e panelas, o caos na casa — e cabeça — de Fiona Apple, e ouve-se ainda uma supermodelo e quatro cães — respetivamente, a Cara Delevingne, e os Mercy, Maddie, Leo e Alfie. Enclausurada em Venice Beach, na solarenga Califórnia, a casa da compositora é um personagem à parte, onde desde 2012 começou a desenhar este disco com ajuda de três músicos: Amy Aileen Wood, Sebastian Steinberg e David Garza. Originalmente, as canções eram mesmo descritas como “House Music”, sempre a puxar ao inusitado da gravação caseira, os trambolhões e solavancos do dia-a-dia, a musique concrète do lar. O extraordinário em Fetch the Bolt Cutters é empregar métodos de composição e gravação lo-fi, de baixo orçamento, para canções grandiosas, e Fiona Apple sair imaculada do processo, com mais uma prova flagrante que provavelmente é, como disse St. Vincent esta semana, o grande génio da nossa geração.

A faixa “Fetch the Bolt Cutters” tem pano para mangas. É nesta canção que confessa que apesar de inteligente, e saber que nada disto importa, tem um coração limitado, não consegue desligar-se da sucessão de humilhações que sofreu no início da carreira. “The cool kids voted to get rid of me” diz-nos, ainda presa às conceções de beleza e cool que aos 19 anos, no palco dos prémios MTV Video Music Awards, descreveu como falso padrão, e ainda, que o próprio mundo era ‘bullshit’. Esta chaga começou com o célebre videoclip de “Criminal” — o seu único grande sucesso na tabela de vendas — e uma campanha de marketing da editora que sexualizava a cantora, como se vender Fiona Apple como objeto fosse mais rentável que como pessoa. Aparentemente, ela aguentava todas as pancadas. Porém, como revela agora, a coragem era uma armadura que se desfazia ao mero olhar: “A girl can roll her eyes at me and kill”.

A fragilidade de Fiona Apple advém de uma total entrega ao abismo da paixão, sem qualquer paraquedas. Ao longo dos anos ouvimos como tem sido humilhada, destruída, arrasada, com uma desilusão de tal forma que decidiu recolher-se em casa. E o que diferencia este coração partido é o tremendo ato de coragem de não esperar que o sentimento seja amansado, que os acontecimentos recentes esfriem. Não, Fiona Apple vai sempre no balanço do ímpeto, canta enquanto sofre, no limite do suportável. Esta é a tenebrosa matéria prima das suas canções. Em “Shameika” revela-nos mais: que o passado se apodera do presente numa convulsão rítmica que remete aos tempos de escola, qual máquina do tempo, e descobrimos que foi em miúda que começou este agito de ansiedade:

“I used to walk down the streets
On my way to school
Grinding my teeth to a rhythm invisible
I used my feet to crush dead leaves like they had fallen from trees
Just for me, just to be crash cymbals”

Numa sensibilidade extrema, recorda espezinhar as folhas caídas que se destroem com um estrondo. E na escola, a colega Shameika diz que ela tem potencial, o que é mais demolidor que encorajador, ao sugerir que ser Fiona Apple não basta — “Shameika said I had potential”. Em janeiro de 1998, numa edição mítica da Rolling Stone, confessou que foi sexualmente abusada aos 12 anos, enquanto pousava na capa da revista como a Ofélia de Shakespeare, demasiado sensível para sobreviver, destinada ao sofrimento e à loucura. Nestes últimos anos de reclusão, a lembrança do abuso retornou com a nomeação de Brett Kavanaugh para o Supremo Tribunal dos Estados Unidos, que era então acusado de uma agressão sexual a uma ex-colega.

A resposta de Fiona Apple é “For Her” e “Relay”, as canções #MeToo de Fetch the Bolt Cutters. A primeira é despida e literal: “Well, good morning/ Good morning/ You raped me in the same bed your daughter was born in”. A segunda é outra canção de uma ferocidade estonteante, de alguém a tentar processar instrumentos como sentimentos, onde compara alguém sexualmente abusado com uma vítima de incêndio, ambos eternamente marcados e desorientados.

Em “Please Please Please”, de Extraordinary Machine, admitia que era da “sad team”, da malta triste, e agora vai mais longe, canta mesmo que arrasta-se na vida com um “Heavy Balloon” por cima, uma depressão que não a larga e aqui soa a uns blues de alpendre. Invariavelmente, as maleitas também têm origem nas frustrações amorosas. A preocupação constante é o medo de perder peso na ténue balança de poderes de um casal, como já tinha demonstrado em “Fast as You Can”. A verdade é que a senhora tem coração mole, cai facilmente nas ladainhas dos amantes benevolentes, apaixona-se e depois, como explica agora em “Rack of His”, sente-se usada como mais uma guitarra dentro das várias à disposição. Enfim, humilhada novamente, soube aproveitar a desgraça em mais uma canção:

“And I’ve been used so many times
I’ve learned to use myself in kind
I try to drum, I try to write
I can’t do either well but
Oh well, that’s fine, I guess
‘Cause I know how to spend my time”

“Rack of His” é mais uma confirmação da transformação percussiva deste álbum, que não está muito distante de Tom Waits, outro compositor dotado que partiu do piano para desdobrar-se cada vez mais abstrato. Nesse sentido, Fetch the Bolt Cutters é o Swordfishtrombones de Fiona Apple, sendo esse álbum de 1983 a estreia de Waits na produção própria e nas canções selvagens e desgarradas que tem feito desde então. “Newspaper” prossegue esta prática, com tímpanos, uma bateria eletrónica, e até a voz da irmã de Fiona Apple, que estava a amamentar enquanto cantava este coro que é um fluxo imparável de palavras. Este é também o álbum que mais trata da relação de Fiona Apple com as outras mulheres. Em “Newspaper” desespera que a amante atual de um seu ex-namorado só vai conhecê-la através das histórias mentirosas que ele conta — “And you’ve got to lie, you’re a man” — e mais à frente, em “Ladies”, que é urgente ser dono da própria narrativa, e sobretudo, esquecer o conceito que entre as mulheres só existe intriga e competição.

Apesar da incapacidade de fazer face a todas estas amarguras, Fiona Apple é sempre reativa, nunca é passiva. É por isso que os ex-namorados estão sempre em cheque, incógnitos ou célebres, como o realizador Paul Thomas Anderson (“Get Him Back” e “Oh Well”) ou o escritor Jonathan Ames (“Jonathan). Neste álbum, “Drumset” retoma a relação com Jonathan Ames, como é costume, escrito a quente, imediatamente depois do escritor acabar com tudo. E em “Under The Table” é pontapeada em baixo da mesa por fazer-se ouvir durante um jantar. Em nenhum momento Fiona aceita comer em silêncio outra humilhação. Infelizmente, parece mesmo não conseguir escapar desta situações, nem sequer o seu cão obedece às suas vontades, como se viu recentemente para o deleite da internet.

Feitas as contas, onde está Fetch the Bolt Cutters na carreira da Fiona Apple? O primeiro álbum — Tidal — surgiu de rompante, com canções escritas na adolescência; o segundo — When the Pawn… — foi o último grande álbum dos anos 90, naquela embalagem da época, entre o rock alternativo e o trip hop; Extraordinary Machine é de longa maturação, até hoje com histórias por contar ao piano; E The Idler Wheel um passo fulcral para uma libertação pessoal e musical. Fetch the Bolt Cutters está exatamente onde deve estar, como a evolução natural de uma carreira equiparável a poucos, sem percalços, sem qualquer passo maior que perna:

“I’ve waited many years
Every print I left upon the track
Has led me here”

Num longo perfil na revista New Yorker, o ex-namorado Jonathan Ames sugere que a compositora tem um sentido de tempo similar Gabriel García Márquez. Para quem está distante, parece que Fiona Apple move-se lentamente, mas por dentro do embaralhado de aflições e angústias, move-se a uma velocidade vertiginosa por toda a paleta de emoções. Fetch the Bolt Cutters consegue condensar este caos emocional em canções pop, com ajuda de três músicos que abordam os seus instrumentos como se não os conhecem, cegos pela emoção em pauta. O álbum termina com o mantra budista “On I Go”, uma trovoada percussiva e uma promessa que Fiona Apple vai continuar por este caminho, sem pressa, a mover-se por si própria, num ritmo particular:

“On I go, not toward or away
Up until now it was day, next day
Up until now in a rush to prove

But now I only move to move”