Ruben A. faz parte daquele pequeno grupo de escritores em quem o talento parece sempre maior do que a obra. As suas chufas são de antologia e, embora A Torre da Barbela (livro agora reeditado pela Porto Editora) antologize toda a História de Portugal, dificilmente seria lida com o mesmo proveito se a figura de Ruben A., por si só, não predispusesse o bom-humor.

De facto, Ruben A. é um dos escritores do século XX mais atreitos a biografias e a memórias porque a obra não faz jus ao homem: enquanto em tantos homens de letras há uma afetação do estilo, ou um arrojo experimental que disfarçam uma certa pobreza de carácter ou de ideias, com Ruben A. passa-se o contrário: lemo-lo, e a sensação que transparece é a de que as palavras não conseguem esconder a personalidade cativante do escritor.

A literatura de Ruben A. é completamente diferente de tudo o que se escreveu no seu tempo, e Ruben A. era também um homem diferente de todos os seus pares. Enquanto as letras politizadas dominavam o campo literário, Ruben A. (apesar de, mais tarde, ser o responsável pela sigla PPD) entregava-se ao humor, à contemplação da estatuária helénica e egípcia e ao estudo de Dom Pedro V. Embora alguns dos seus livros raspem o surrealismo, o seu humor tem muito mais a marca de um feitio do que de uma escola.

Não há, na magnífica torre que acorda de noite para que convivam personagens de todos os tempos da História de Portugal, tanto um desejo de subverter as categoriais transcendentais como espaço e tempo, à maneira surrealista, como a manifestação de um espírito curioso e interessado por tudo.

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Os seus livros têm aquele ar caótico, um tanto desorganizado, que esperamos das mentes curiosas. Mais do que grandes planos, os seus romances têm lampejos de genialidade, iluminações, atração por pormenores, e um amontoado de temas que prova a vastidão dos seus interesses.

A capa da nova edição de “A Torre da Barbela”, pela Porto Editora

De Pascal aos arquivos de Windsor, Ruben A. estudou de tudo e isso nota-se no seu carácter. A sua ficção nunca conseguiu fazer propriamente uma síntese dos seus interesses, nunca conseguiu encontrar um fio que harmonizasse tudo o que lhe passava pela cabeça, e isso dá aos romances uma certa confusão que tem os seus encantos mas pode também ser agressiva; por outro lado, dá a todas as suas páginas uma largueza de espírito que é incomum na nossa literatura.

Ruben A. é um escritor de talento óbvio para o pormenor, capaz de jogos de palavras inventivos, com independência de espírito, e uma tendência anglófila para ultrapassar as narrativas psicologizantes que foram – e são ainda – uma janela aberta na literatura portuguesa; é, também, um escritor a quem nunca parece ter chegado a pacificação ou, pelo menos, um certo sentido de ordem. À sua autobiografia, Ruben A. chamou significativamente O Mundo à Minha Procura, o que diz muito sobre ele; de facto, o mundo em geral parece ter exercido por ele um poder muito maior do que ele exerceu sobre o mundo; o mundo chamava-o por todos os lados, dos barcos que saíam do Porto às distantes pirâmides do Egipto; Ruben A. é um escritor interessante porque tem uma característica muito pouco comum nos bons escritores.

De facto, é ele que parece permeável ao mundo, não o contrário. Há, decerto, entre os maus escritores, os que são muito permeáveis; no entanto, são-no às ideias feitas sobre o mundo, não ao mundo propriamente dito. Com Ruben A., porém, parece que o mundo nos é apresentado sem sujeito, aquilo que vemos não é uma interpretação dickensiana do mundo industrial ou uma versão surrealista do humor; toda a ficção de Ruben A. nos parece dar o mundo sem um filtro senão o do curioso, capaz de se interessar por tudo e de ver em tudo a mesma grandeza. Curiosamente, é esta aparente falta de personalidade, de músculo próprio, que o torna tão original.

Todos os testemunhos nos falam de um Ruben A. encantador, de uma personagem marcante, em quem a liberdade política só acentuou a liberdade que já exercia na literatura; e, de facto, a liberdade de Ruben A. parece vir do seu mundo. Na sua tese de licenciatura – bastante bem feita, aliás – Ruben A. estudou Pascal, esse asceta a quem os divertimentos do mundo nunca iludiram; curiosamente, em Ruben A. o mundo parece ter contribuído para o levar à solidão pascaliana; Ruben A. tinha obviamente mais mundo do que os seus pares, tinha um leque de interesses muito mais vasto e um espírito muito mais curioso; esse interesse voraz por tudo, de alguma maneira, acabava por afastá-lo das coisas; há, no seu modo de escrever, uma certa frieza superior que, longe de se confundir com um pedantismo de qualquer espécie, vem da grandeza; Ruben A. não parece vir do mesmo planeta que os outros, tal a curiosidade, o olhar novo, com que olha para tudo.

Da mesma maneira que o interesse do etnógrafo o distancia das comunidades que estuda, também Ruben A. parecia algo distante do mundo; parecia ter uma solidão mundana, a liberdade de quem ama um mundo a que não pertence e que, mais do que perceber, procura ir lembrando, com a despreocupação de um viajante.

A sua obra historiográfica, à volta de Dom Pedro V, é interessante e Ruben A. foi dos primeiros a reparar no cuidado com que os reis de Inglaterra seguiam o reinado do seu primo; haverá também em Ruben A. algo deste Dom Pedro, também ele desterrado num mundo demasiado pequeno para ele, mas ao mesmo tempo demasiado bondoso para querer mais do que ele; nunca Ruben A. aprofundou os seus estudos a ponto de se tornar um especialista, como não aprimorou os seus romances a ponto de fazerem jus ao seu espírito.

Não é fácil perceber a importância da obra de Ruben A. porque parte da sua importância não está escrita. Mais do que grandes livros, os seus são os livros de um grande espírito sem um grande génio mas cheio de pequenas genialidades. Quem lê Ruben A. pode não encontrar os melhores romances; mas além de encontrar belíssimas páginas, encontrará esse estranho milagre que só a melhor literatura nos dá: o retrato, por detrás do artifício, de um homem singular que se revela por entre as páginas, mesmo sem falar de si.

A reedição de “A Torre de Barbela” marca o início das comemorações do centenário de Ruben A. que continuam até 2021