Dançar tudo ao mesmo tempo. É esse o ímpeto que nos provoca a música do construtor de beats que assina pelo nome de Rabu Mazda. Eventualmente tontura, aquela impossibilidade de querer fazer todos os moves de forma desordeira, fora do tempo, porque este tempo é uma hipérbole que nunca se deixará apanhar. Tudo isto no melhor sentido da coisa, no funk favelado com os habituais “an”, no kuduro velocista, no tarraxo a um – porque a dois vai ser complicado, acreditem – numa enorme misturada com base eletrónica, para começar, prosseguir e terminar a festa. Caso para dizer que Todo Mundo Sabe que será assim.

Ainda que faça ou tenha feito parte de vários projetos (tais como Kimo Ameba, Putas Bêbadas, Iguanas, Kridinhux), de ter já editado discos a meias com Van Ayres e de ser produtor, misturador e masterizador de vários outros discos da Cafetra, da Xita Records, entre outras funções, esta é a real estreia de Leonardo Bindilatti por sua conta e risco. E acontece pela editora brasileira 40% Foda/Maneiríssimo (Rio de Janeiro), com a qual não tinha nenhuma ligação. Enviou o disco por sugestão de um amigo e passado umas semanas recebeu um mail a dizer que tinham gostado muito do objeto e que o queriam editar. Em 2020, nem tudo é mau, assim se vê.

Na relação com este tempo estranho, aquilo que aconteceu a Leonardo Bindilatti foi o que aconteceu a outros tantos artistas e gente que se serve da inteligência e criatividade para fazer o seu trabalho: esteve tanto em casa que acabou por resolver questões pendentes há séculos: “No início estava um bocado mais a fritar com a situação, ter de estar em casa e assim. Mas acabei por me habituar e focar-me mais na música e em coisas que tinha por acabar, nesse sentido até foi fixe”, explica, acrescentando que ainda lhe sobrou tempo para começar a aprender piano no YouTube, algo que certamente não seria possível quando a vida urbana está em pleno funcionamento.

[“Bem Claro”:]

Todo Mundo Sabe, ainda que tenha sido fechado no ano passado – e que seja uma súmula de várias faixas soltas que foi fazendo desde 2013 –, parte também desse espírito de encarar um eterno adiamento, aquela coisa por resolver que sempre está escancarada ainda que optemos por não a ver, a não ser, talvez, numa ou outra ocasião pelo canto do olho, para confirmar que não se cansou de esperar:

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“Tinha imensas coisas inacabadas, antigas, que ia lançando pontualmente no Soundcloud, mas que achava que podiam ficar melhores ou que podiam chegar a alguma outra coisa. Então os anos foram passando e eu fui sempre arrastando, fazendo outros discos, mas sempre com esta vontade de acabar por fazer um disco de música só minha. Algumas destas músicas são de 2013 ou 2014, sendo que decidi fechá-las o ano passado, pensei ‘OK, man, já chega de te estares a iludir, está na altura de fazeres, se pensas assim acabas por não lançar nunca, deixa-te de merdas e faz’. Foi um bocadinho isso. É isso que espero fazer este ano, lançar mais música e, se possível, tocar isto ao vivo”, admite Leonardo.

Filho de pais brasileiros, da zona de São Paulo, que em 1987 vieram viver para Portugal, viria a nascer em Lisboa em 1992. “Até aos 4 anos vivi na Alameda, mas era assim uma casa com bastante gente. Meio uma comunidade, era assim eu, os meus pais e outros brasileiros que trabalhavam com eles. Depois mudámo-nos para a Rinchoa, na Linha de Sintra. E aí, onde estive até ao meu sexto ano, acho, os meus amigos eram quase todos angolanos, cabo-verdianos e guineenses e isso fez-me aproximar da música africana, ouvir muito kuduro, rap, esses estilos que iam aparecendo. Ao mesmo tempo, devido às raízes da minha família, sempre ouvi muita música brasileira em casa, sobretudo MPB”, conta.

Foi também na Linha de Sintra, através de umas primas mais velhas que também eram vizinhas, que começou a lidar com outras sonoridades. Mostraram-lhe o nu metal e “e essas cenas tipo Korn e Limp Bizkit, que estavam a bater na altura”. Também lhe mostraram Nirvana e, como eram adolescentes melómanas, emprestavam os discos a Leonardo para este se entreter a desenhar as capas. Ainda houve um ano que os seus pais tentaram voltar para o Brasil, mas a coisa não resultou. De regresso, instalaram-se em Lisboa. O que, admite o músico, “foi um bocado um choque”. Teve morada nas Olaias e estudava na Penha de França quando tinha todos os amigos longe, quando já conhecia o ecossistema da Rinchoa. Aliás, foi aí que quase teve uma primeira banda, algo que serviu para que o seu pai percebesse que a música podia bem ser um caminho:

“Não chegou a ser nada, mas fazíamos uns passos de dança, uma cena meio hip-hop, devia ter uns 7 ou 8 anos. Nem me lembro de chegarmos a dar um nome à coisa. Depois, comecei a aprender guitarra, o meu pai ofereceu-me quando tinha nove anos, comecei a aprender sozinho, havia um namorado de uma prima que me ensinou umas coisas básicas, mas foi isso. Quando fiz 13 anos, o meu pai deu-me uma guitarra elétrica”, diz.

A capa de “Todo Mundo Sabe”, de Rabu Mazda (cafetra)

Terminado o nono ano, foi para a ETIC tirar um curso profissional de vídeo e conheceu Lourenço Crespo, com quem hoje divide os Iguanas – que em 2018 nos deu o brilhante Lua Cheia, disco que jamais cairá em esquecimento – e que o apresentaria à turma da Cafetra. Além disso, foi com Lourenço, juntamente com Sushi (Hugo Cortez) e com Francisco Correia (também conhecido pelo seu projeto a solo Smiley Face), que criaram os Kimo Ameba, aquela que seria a primeira banda a sério de Leonardo Bindilatti, também conhecido como Leio para as pessoas mais próximas.

Voltando a Rabu Mazda, é preciso que se diga que já foi Rabu Mastah e que o nome é só um nome, sem grande justificação, como indica a seguinte resposta: “Já estive a ver alguns significados para ver se consigo dar uma resposta mais coerente em relação ao nome artístico, mas não achei nada de especial. É só um nome de que gostei”. E a primeira vez que Rabu Mazda ou Rabu Mastah apareceu creditado num disco foi numa compilação que a Flor Caveira editou em 2011 chamada Ruptura Explosiva (para assinalar os vinte anos do filme homónimo de Katherine Bigelow, protagonizado por Keanu Reeves), onde tocou uma música com as Pega Monstro (Júlia Reis e Maria Reis) e se lembra de lhes dizer, em jeito de piada que não ficou só uma piada: “Diz que eu sou o Rabu Mastah”.

Dele podemos dizer que nasceu algures por 2007, nesse tempo em que se mudou para a ETIC e que um amigo lhe mostrou o Abbleton Live (programa que utiliza para construir a sua música). Aí percebeu que as ferramenta que usava permitiam muito menos coisas. Meteu os óculos de cientista e começou a fazer experiências, a criar beats, a samplar coisas — é aliás dessa altura o primeiro material de Iguanas.

[ouça “Todo Mundo Sabe” na íntegra através do Spotify:]

De regresso a Todo Mundo Sabe, é importante que tentemos perceber como é que se consegue fundir tantas coisas e tantos estilos musicais no mesmo plano sem que isso pareça apenas algo desconexo e desajeitado: “[O kuduro, o tarraxo, o funk, a house] São tudo tipos de música que gosto, então tento, à minha maneira, ligar as coisas. Mas não é bem intencional, percebes? Fazer os beats ao computador tem esse lado de estares a ver a estrutura da música, ou seja, meio que consegues tocar música impossível. É certo que não tenho skills para tocar a maior parte da minha música em instrumentos, mas estando ao computador consigo outras coisas. E ao computador não precisas de ser um virtuoso para fazer música”, argumenta. Como se aquilo que fizesse não fosse já de uma tremenda dificuldade.

Mas reconhece, pelo menos, o lado louco e frenético da sua música: “Sem dúvida, isso é uma das cenas de que mais gosto, sempre gostei desse lado frenético, de música rápida, mesmo o meu lado mais roqueiro, que toco em Putas Bêbadas, o que curto mais é da rapidez, é uma coisa que puxa por mim, que me interessa. E também dou grande valor à componente melódica, acho que é bastante específico aquilo que faço nesse campo e que acho que tem que ver com o facto de ter ouvido tanta MPB quando era puto, essa nostalgia. Gosto de coisas frenéticas, mas que sejam ricas melodicamente. A minha música nunca é bem só um beat. Há muita música de que gosto, muito simples, mas quando tento fazer coisas simples elas acabam por ficar preenchidas na mesma”, afirma Bindilatti.

Uma coisa é certa: isto é para dançar. “A premissa é clara, é a dança.  Espero que a minha música seja vista como música de festa”, conclui. Não há razões para preocupações.