Muito antes da Disney lhe ter dedicado uma animação em 1998 e agora uma versão em imagem real, já o cinema chinês se tinha apropriado da lenda de Hua Mulan, a rapariga guerreira da China de entre os séculos IV e VI, que partiu para a guerra contra tribos invasoras disfarçada de rapaz em vez do pai, idoso e debilitado, que certamente morreria em combate. Em 1927, surgiu a primeira de muitas versões para cinema desta história, “Mulan Joins the Army”. Em 1939, outro filme com o mesmo título, rodado durante a ocupação japonesa da China e cheio de fulgor nacionalista, causou cenas de pancadaria nalguns cinemas.

Por seu lado, em 1964, o musical de Hong Kong “Lady General Hua Mu-lan” foi subtilmente usado para cultivar sentimentos anti-britânicos quer nos habitantes daquela então colónia inglesa, quer na diáspora chinesa, sobretudo a dos EUA. E em 1994, foi rodado “Saga of Mulan”, que se serve da história como veículo de propaganda patriótica do regime comunista chinês. Se o filme de animação de longa-metragem da Disney feito em 1998 é perfeitamente inocente e funciona muito bem no seu género, o mesmo já não sucede com a nova versão com atores, assinada pela realizadora neozelandesa Niki Caro.

[Veja o “trailer” de “Mulan”:]

A Disney ficou sob fogo cerrado de várias organizações de defesa dos direitos humanos, porque parte do filme foi rodado na região de Xianjiang, onde estão situados os campos de concentração em que o regime chinês internou centenas de membros da minoria muçulmana Uigure. E Liu Yifei, a atriz que interpreta Mulan, apoiou a polícia de Hong Kong nas suas ações contra os manifestantes pró-democracia, originando movimentos de boicote à fita em Hong Kong, em Taiwan e na Tailândia. Entretanto, e apesar de todo os esforços feitos pela Disney para que “Mulan” fosse fabricado à medida do mercado chinês – chegaram a ser eliminadas cenas de que as audiências de teste locais não gostaram — os números de bilheteira na China são dececionantes.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[Veja uma entrevista com a atriz Li Yufei:]

Política e rapapés de Hollywood à China à parte, este novo “Mulan” que custou à Disney uns pesados 200 milhões de dólares e se inclui no plano do estúdio de refazer em imagem real (e com muito efeitos digitais) as suas longas-metragens de animação, não é grande espingarda. A comédia, as canções e o dragão com a voz de Eddie Murphy que emparceirava com a jovem heroína na animação de 1998. desapareceram. “Mulan” é agora uma bisarma de cara séria, que obedece, com solenidade laboriosa, rotina espectacular e todos os clichés narrativos, retóricos e visuais, à matriz das superproduções históricas, de aventuras e de fantasia do cinema chinês. Sem esquecer a vertente de propaganda nacionalista apoiada numa velha lenda. 

[Veja aspetos da rodagem:]

E bem pode o filme tentar puxar pelo alegado “proto-feminismo” da história de Mulan e apresentar a personagem como um modelo de “empoderamento” feminino. A verdade é que estamos perante uma narrativa cujas raízes sociais e culturais continuam a ter a mesma força e significado de há muitos séculos atrás. A história de Mulan é a de uma rapariga cujo amor e devoção filial a leva a sacrificar-se pelo pai e pelo nome da família, como manda a tradição na China. Deste pesadão, estereotipado e desinspirado “Mulan”, fica apenas a presença da magnífica Gong Li na bruxa que está do lado do invasor e se pode transformar em toda a sorte de aves. O original animado de 1998, sofisticadamente inspirado no seu traço e estilo visual pela arte tradicional chinesa, é que continua a valer.

“Mulan” estreia-se no Disney+ na sexta-feira, dia 4 de Dezembro