Título: O barulho das coisa ao cair
Autor: Juan Gabriel Vásquez
Editora: Alfaguara
Preço: 17,70€

A história do romance começa em meados da década de 90. Antonio Yammara, jovem professor de Direito, conhece Ricardo Laverde, ex-presidiário, intuindo que o seu passado tem segredos. A relação entre os dois faz-se em torno de uma mesa de bilhar, em encontros ocasionais, até à morte de Laverde, trespassado por uma bala horas depois de ter recebido uma cassete.

Vários anos após este assassinato, Yammara depara-se com a notícia da fuga de um hipopótamo do jardim zoológico de Pablo Escobar, então em decadência. Partindo dessa fuga, Yammara conta a sua história e a de Laverde, duas peças de milhares daquelas que, tendo nascido num país dominado pelo narcotráfico, se viram condicionados por ele, por vezes de forma fatal. Partindo da história individual, conta-se a história das últimas décadas da Colômbia. Pablo Escobar mal aparece, mas está sempre lá, uma vez que o narcotráfico é o assunto inevitável quando se chega a esta fase da história do país. Afinal, não podia existir em concomitância com o resto sem deixar consequências.

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O leitmotiv será então o narcotráfico, mas os fios da narrativa tecem-se numa visão individual. Com mestria, Vásquez tratou do país e do indivíduo, e Yammara procurava as explicações para a sua tragédia ao mesmo tempo que o leitor atingia as implicações do narcotráfico na Colômbia e nas vidas das suas gentes. Com a sua prosa limpa, Vásquez não pareceu nunca dar aulas de história, catequizar um público, ensinar como um professor que assume a ignorância dos alunos. Pelo contrário, escreveu um romance que nunca fugiu à literatura, e esse mundo chegou então a Portugal, onde de repente se entra na Hacienda Nápoles, uma das ricas propriedades de Escobar, a tal de onde fugiu o hipopótamo, e que, sendo sede do tráfico de cocaína, fazia parte até de memórias infantis, já que as crianças lá iam em busca dos animais:

“Maya acabava de fazer onze anos quando uma colega de turma lhe falou pela primeira vez da Hacienda Nápoles. Era o terreno com mais de sete mil acres que Pablo Escobar tinha comprado em finais dos anos setente por nele construir o seu paraíso pessoal, um paraíso que fosse ao mesmo tempo um império: um Xanadu para a terra quente, com animais em vez de esculturas e guarda-costas armados em vez do letreiro a dizer No Trespassing. O terreno da quinta estendia-se por dois departamentos; um rio cruzava-o de ponta a ponta. Obviamente que esta não foi a informação que a colega de turma deu a Maya, pois em 1982 o nome de Pablo Escobar ainda não andava na boca das crianças de onze anos, nem as crianças de onze anos conheciam as características desse território gigantesco nem a colecção de carros antigos que depressa começaria a crescer em garagens especiais nem a existência de várias pistas destinadas ao neócio (à descolagem e aterragem de aviões como os que Ricado Laverde tinha pilotado), nem muito menos tinha visto Citizen Kane.” (p. 258)

Este lugar torna-se relevante para a investigação de Yammara, mas o que sobeja é outra coisa, a experiência coletiva e um poder de exceção e infinito por parte dos narcotraficantes. Assim, mesmo já com as notícias do declínio do narcotráfico, chegar à Hacienda Nápoles a posteriori continua a surpreender:

“Não sei porque nos deveria ter surpreendido a nossa própria decepção, pois o declínio da Hacienda Nápoles era bem conhecido, e nos anos decorridos desde a morte de Escobar tinham circulado nos meios de comunicação colombianos diversos testemunhos, uma espécie de filme em câmara muito lenta sobre a ascensão e a queda do império mafioso.” (p. 272)

O livro marca o testemunho de quem viu o narcotráfico começar a ascender na Colômbia. Os que sobreviveram ainda o viram cair. Pelo meio, ficou marcado um reino de medo e de terror, de vidas sempre direta ou indiretamente ligadas ao tráfico das drogas. E talvez o condão da obra seja este: Laverde é só Laverde, um entre milhares; o trauma de Yammara é apenas um, e também mais um entre milhares. O individual assume então o peso da história de um país, mostrando-se o impacto do rumo da nação, enquanto entidade coletiva, nas entidades individuais multiplicadas:

“(…) naquele dia, nos bilhares, Ricardo Laverde foi só mais um entre tantos que no meu país tinham acompanhado com pasmo a ascensão e queda de um dos colombianos mais conhecidos de todos os tempos, e eu não lhe prestei muita atenção.” (p. 24)

Neste livro, em que se fala da “violência cujos atores são coletivos” (p. 20), como o Estado, o Cartel, o Exército, a Frente, muito mais do que a “violência das facadas baratas e dos tiros perdidos, de contas que se saldam entre traficantes de pouca monta mas da que transcende os pequenos ressentimentos e as pequenas vinganças da gente pequena” (p. 20), mostra-se a forma como os habitantes de Bogotá se habituaram a essa violência, que lhes entrou em casa, mais não fosse, através dos noticiários e dos jornais.

Finalmente, mostra-se o declínio do narcotráfico com uma entrada na Hacienda Nápoles, que surpreende. Assim, os leitores veem “as suas paredes arruinadas, os seus vidros sujos e partidos, a madeira falhada das suas vigas e das suas colunas, os azulejos partidos e lascados das casas de banho exteriores”, “as mesas de bilhar  que inexplicavelmente ninguém tinha levado em seis anos”, “a piscina vazia de água”, “a garagem onde apodrecia a coleção de carros antigos”, “a pintura escangalhada e os faróis partidos e as carroçarias destruídas e os estofos desaparecidos e os assentos transformados num caos de molas”, “um carro que não era de luxo, mas simples e barato, e cujo valor estava para lá de qualquer dúvida: o célebre Renault 4 com que o jovem Pablo Escobar, muito antes de a cocaína se ter tornado a fonte de riquezas que viria a ser, competia em corridas locais como piloto novato”. Esse carro, “adormecido e estragado e devorado pelo descuido e pelo tempo” (p. 273), era então um animal cuja pele se encheu de vermes” (p. 274). Tudo aquilo era, para quem lá ia, o passado em comum, “o que estava ali sem estar” (p. 274), e o passado ali acontecido, os negócios feitos e as violências planeadas eram apenas o cenário da vida de um povo.

Numa prosa que não precisa de rodeios para marcar a sua história, Vásquez mostrou as últimas décadas da Colômbia. A prosa limpa produz o seu efeito, sendo o estilo de um autor que privilegia o essencial ao invés do acessório e está mais interessado em dizer do que em tentar impressionar, elevando o jogo comunicativo, respeitando a relação dialógica que ele mesmo inicia com o leitor.