Nascido nos EUA de pais indianos, RaminBahrani é o realizador de “99 Casas”, um dos melhores filmes sobre a crise financeira de 2011, em que um pai solteiro e desempregado que perde a casa por não conseguir pagar as prestações da hipoteca, acaba a trabalhar para o especulador imobiliário que o despejou, passando ele mesmo a despejar outros, às ordens deste. Antes, Barhani tinha assinado outras fitas sempre marcadas por uma forte componente de comentário social e um rigoroso naturalismo, como é o caso de “Man Push Cart” (2005) ou “Chop Shop” (2014).

Em “O Tigre Branco”, estreado na Netflix, Bahrani continua na mesma veia dos seus filmes anteriores, mas saiu dos EUA para ir até à Índia rodar esta adaptação do romance homónimo de Aravind Adiga, que ganhou o Prémio Man Booker em 2008. É uma história de recorte dickensiano sobre um rapaz que nasce na maior pobreza no interior da Índia e aspira transformar-se num empresário rico e de sucesso. Mas sem o sentido de humor, o otimismo e a fé na bondade do próximo que caracterizam o autor de Grandes Esperanças e David Copperfield, aqui substituídos por uma visão desapiedada da vida e dos homens, ligada às características da sociedade indiana.

[Veja o “trailer” de “O Tigre Branco”:]

Balram (Adarsh Gourav) nasceu aldeão, sem dinheiro e de uma casta inferior. É inteligente e ambicioso (quando era criança, um professor chamou-lhe “tigre branco”, uma espécie raríssima destes animais), mas tem que abdicar de uma bolsa de estudo. E parece condenado a servir chá e fazer tarefas menores na sua aldeia, a dar a maior parte do pouco dinheiro que ganha à avó, para sustentar a sua família, e a casar com quem esta escolher para ele. Para Balram, o complexo e estanque sistema de castas da Índia evoluiu para uma situação em que há apenas patrões e servos. Decide então ir para Nova Deli, servir como motorista do rico e mafioso senhorio da sua aldeia, e usar de diligência, bajulação e astúcia para subir na vida. Ele quer ser bilionário, seja a que preço for.

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E tem a sorte de ficar ao serviço de Ashok (Rajkummar Rao), o filho mais novo do patrão, e da sua mulher, Pinky (Priyanka Chopra Jonas). Ele estudou e formou-se em Nova Iorque e ela é americana de segunda geração. O casal, cosmopolita e liberal, lida com o novo criado sem prepotência nem desprezo, usando de alguma consideração e muita descontração, insistindo mesmo em que ele os trate pelo primeiro nome e mostrando até desconforto perante o servilismo estudado e untuoso com que Balram se apresenta. E é esta invulgar intimidade entre criado e patrões que vai acabar, certa noite de celebrações excessivas, por decidir o destino de Balram.

[Veja uma entrevista com o realizador e os atores:]

Parte sátira escarninha e cerradamente amoral, parte melodrama social, “O Tigre Branco” é narrado em “flashback” pelo protagonista já instalado na vida, sob a forma de uma carta ao então primeiro-ministro chinês, que vem visitar a Índia (para Balram, a “era do homem branco acabou” e vem aí a “do homem amarelo e do homem moreno”). Apesar de, a certa altura, o filme atacar “Quem Quer Ser Bilionário?”, de Danny Boyle, apresentando-se como uma resposta “realista” e cínica a este, “O Tigre Branco” também não consegue evitar, no processo de levar a água ao seu moinho, uma certa estereotipação ao gosto ocidental, nem algum reducionismo na representação da sociedade indiana.

Mesmo tendo em conta as desigualdades abissais que continuam a marcar a Índia, Ramin Bahrani subestima, por um lado, a importância que o sistema de castas continua a ter; e pelo outro, escamoteia importantes fatores de mudança socio-económica, de costumes e mentalidades, como o advento de uma nova geração altamente qualificada e em boa parte formada no estrangeiro, e o aparecimento de uma classe média urbana e com grande mobilidade social. Que desmentem na realidade a ideia do filme segundo a qual o crime e a política continuam a ser as únicas formas de ascensão, afirmação social e enriquecimento na Índia de hoje.

[Veja uma sequência do filme:]

Mesmo assim, “O Tigre Branco” tem muito que se lhe recomende. A descrição dos mecanismos da corrupção (a líder partidária dita “Grande Socialista” que negoceia subornos milionários), a forma como os pequenos e pobres imitam, ao seu nível, os vícios, os esquemas e a corrupção dos grandes e abastados, o enredo bem urdido e atarefado, sem se tornar confuso ou prolixo, a realização dinâmica de Bahrani e as interpretações. Sobretudo a de Adarsh Gourav, muito bom num Balram movido pelo ressentimento, pela inveja e pela raiva, mas também pela vontade legítima de fugir à sua condição. E por quem, apesar do egoísmo e cinismo implacáveis com que ele olha para o mundo e age para sobreviver e prosperar, não conseguimos deixar de ter alguma simpatia.

“O Tigre Branco” já está disponível na Netflix