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“Vernon Subutex”. Dos livros para a televisão, no mesmo tom: aqui jazem os anos 90

Este artigo tem mais de 3 anos

A trilogia de Virginie Despentes sobre os órfãos do rock chegou à Filmin. Estávamos tão à frente do tempo – e depois o tempo mudou de direcção. Estes nove episódios ajudam a lembrar como e porquê.

Romain Duris é o protagonista desta adaptação, o Vernon que dá título à história, o rock'n'roller falhado, mas nem sempre, não para ele próprio
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Romain Duris é o protagonista desta adaptação, o Vernon que dá título à história, o rock'n'roller falhado, mas nem sempre, não para ele próprio

Romain Duris é o protagonista desta adaptação, o Vernon que dá título à história, o rock'n'roller falhado, mas nem sempre, não para ele próprio

Não é um épico, porque nunca o poderia ser; não é sequer uma tragédia tout court, que pintasse o lado negro de uma cidade – Paris, a cidade-luz – que, aqui nunca reconhecemos. Não há grandiloquência alguma porque a recusa desde o primeiro instante; “Vernon Subutex” é um requiem indie, shoegaze, se existe tal coisa; uma noitada que começa e acaba em ressaca e tem ocasionais momentos de felicidade plena – crowd surfing. É o epitáfio aos anos 90, mortos pelo tempo, pela net, pelo inevitável fracasso da grande ilusão da geração sem ilusões. Afinal, não ter ideal algum não nos salvou de envelhecer tão dececionados e dececionantes como os idealistas.

Virginie Despentes foi nomeada ao Man Booker International pela trilogia dos romances originais (em Portugal, a edição é da Elsinore), o Canal + adaptou à televisão francesa em 2019 e chega agora a Portugal pela mão criteriosa da Filmin. “Vernon Subutex” centra-se mais na personagem que lhe dá nome e menos na galeria de cromos que formam a genial caderneta que Despentes colecionou de um tempo e de uma geração: os dela, quarentões de t-shirt de banda rock, drogas ainda no bolso das calças de ganga e uma recusa, fatal, mas sem dramatismo, em crescer. Persiste, na versão televisiva, o pecado original do subplot vagamente policial que une os nove episódios da primeira temporada – e até ver, única. Mas há pelo menos uma geração que não pode perder esta série. Além de que confirma o que já todos suspeitávamos: as boas séries fazem-se hoje em muitos lugares e em muitas línguas para lá do inglês. Abençoado sejas, streaming nosso senhor.

“Vernon Subutex”. Os maiores medos do nosso tempo estão na trilogia de Virgine Despentes

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Vernon Subutex é uma personagem emblemática vinda de uma determinada época; o dono de uma loja de discos mítica, a Revólver, que, nos anos 90, foi o santuário do rock e Vernon o seu guardião. 20 anos depois, usa a mesma barba, o mesmo cabelo crescido, os mesmos vinis, os mesmos truques de engate, mas já quase ninguém compra discos, a loja fechou e ele foi despejado. Dá-lhe corpo o muito talentoso Romain Duris, ele próprio símbolo de uma época, outra, a dos anos zero, quando protagonizou quase tudo quanto foi grande sucesso francês, comercial ou de autor: do díptico “A Residência Espanhola” / “As Bonecas Russas” a “Em Paris” ou “De Tanto Bater o Meu Coração Parou”.

[o trailer original de “Vernon Subutex”:]

Duris, que tem a idade perfeita para o papel (46), faz um daqueles trabalhos extraordinários que quase nos fazem garantir conhecer alguém exatamente igual. A serenidade negligente, pendurada sobre magreza como o eterno cigarro na mão, um conhecimento enciclopédico de música que é praticamente a única ferramenta que tem para ver o mundo (“Changes One”, diz, ao ver determinada personagem pela primeira vez. “Changes One, Bowie”, esclarece, e é tudo o que lhe ocorre, mesmo que a pessoa em questão nunca tenha ouvido o disco ou parado para olhar para a capa, quanto mais lá ir buscar inspiração para o gosto em matéria de roupa e cortes de cabelo.)

Vernon-Duris não é, porém, o único com que se dá este fenómeno. À medida que percorre as casas dos amigos perdidos no tempo e antigos interesses românticos eventuais que lhe vão dando guarida, uma por episódio, (re)conhecemos essa galeria de vanguardistas que parece, agora, muito mais obsoleta do que o anódino careta que atravessa as décadas em segundo e seguro plano. Há fotógrafas de película, agora tão ultrapassadas como o vinil de Vernon, que trocaram a crista punk pelo jantar no sofá, em frente à TV; argumentistas que tiveram de fazer uma incursão pelo porno; transexuais incógnitos outrora estrelas desse mesmo porno, também ele mudado pela invenção da world wide web; músicos falhados, groupies sem grupo, sem-abrigo da própria juventude, que é aonde Vernon vai parar. Os anos 90 estão na rua – e já não têm ossos para isso. Estão bem na vida aqueles que casaram com pessoas ricas; os outros vivem nestas casas sem filhos nem mobília decente para receber os pais.

Em "Vernon Subutex", os anos 90 estão na rua – e já não têm ossos para isso. Estão bem na vida aqueles que casaram com pessoas ricas; os outros vivem nestas casas sem filhos nem mobília decente para receber os pais

E há ainda skinheads, produtores de cinema sem escrúpulos, distintos professores universitários e suas filhas de hijab, e uma personagem, “A Hiena”, que concentra os traços mais violentos de Virginie Despentes, aqueles que, noutro tempo, tomaram conta de obras inteiras (“Baise-moi”): uma espécie de caricatura do herói de ação masculino em versão lésbica, que cruza a cidade de moto, distribui pancada pelos homens e se atira sem rodeios às mulheres. Quando lhe perguntam o verdadeiro nome, ela diz, para que não restem dúvidas, que começa por V. “Valérie?”, arriscam. E ela ri-se. É uma troll profissional, paga para arrasar reputações na net e diz, cedo na história: “Hoje em dia, quem destrói é quem é ouvido.” Touché.

A morte de Alex Bleach no fim do primeiro episódio, estrela da música e único daquela geração a ver o seu talento reconhecido, lança o fio narrativo que vai fazendo a trama avançar. A princípio é coxo; no fim, torna-se apenas um presunçoso ato falhado (um rascunho de má consciência coletiva pelo destino de determinada personagem, entalado entre um esboço de vilão e uma mecânica sem lógica – porque se filmaria hoje alguém com uma mini DV e não com o telemóvel, para além de precisar de complicar a história e pôr o protagonista, de episódio em episódio, a tentar arranjar quem ainda tenha uma DV-Cam para reproduzir as cassetes que nos vai revelando, em doses homeopáticas, para alimentar um mistério que, verdadeiramente, nunca nos chega a interessar). Mas a música é tão constante e tão boa que até isto escapa entre o barulho das luzes.

“Não vamos ser puros, vamos entrar e sair. Não vamos ser corajosos nem sinceros. Não vamos ser heróis, não vamos ser os conquistadores. (…) Somos os vencidos e somos uma legião.” “Vernon Subutex” está na Filmin. E, quem sabe, um pouco de nós também.

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