O steampunk, por defeito, procura uma história alternativa. E a época Vitoriana é um dos seus períodos favoritos, seja em romances, banda-desenhada, videojogos ou televisão. É um subgénero de ficção científica, retrofuturista e apaixonado pela tecnologia de outros tempos, que vai conquistando cada vez mais adeptos – a série “Penny Dreadful”, por exemplo, teve algum sucesso – e agora é a vez de Joss Whedon tentar a sua sorte com “The Nevers”. A produção vai além de um mero entretenimento de ficção científica, quer ser televisão de super-heróis (numa altura em que os heróis da Marvel regressam ao stream), aliás, de super-heroínas, e contar como a história se repete.
A nova série da HBO Portugal acontece na Londres Vitoriana e conta a história de uma série de mulheres que são mal vistas pela sociedade da época depois de serem “tocadas”. Não há maldade em “tocadas”, refere-se a um evento que aconteceu anos antes e que atingiu certas mulheres. A partir daí, algumas habilidades foram despertando nelas, algumas imediatamente, outras ainda estão a acordar. Habilidades diversas e que se reportam ao imaginário de super-heróis, mas também ao da época: o poder de Penance Adair (Ann Skelly), uma das protagonistas, é encontrar padrões de energia e ser uma boa inventora, por exemplo.
[o trailer de “The Nevers”:]
A maioria destas mulheres vive num local denominado “O Orfanato”, dirigido por Lavinia Bidlow (Olivia Williams), uma mulher rica que é uma espécie de Professor Xavier – dos X-Men – desta história. Há qualquer coisa relacionada com mutantes em “The Nevers”: as mulheres com superpoderes são vistas como deformações – que, na época, é uma noção que se intensifica por elas serem, nem mais, mulheres – e há diferentes personagens que se estabelecem como inimigos daquilo que as mulheres representam.
Quem está n’”O Orfanato” não está recluso. Gostam de fazer parte da vida social e fazer outra coisa muito X-Men: encontrar novos recrutas. Não são as únicas a querer fazê-lo, há quem as procure para as eliminar e há uma personagem, Maladie (Amy Manson), que também tem superpoderes (as suas inteiras capacidades são desconhecidas) e é uma espécie de Magneto (outra vez X-Men) desta história, procurando inverter a sociedade, por domínio, através de mulheres iguais a si.



▲ “The Nevers” explora, a partir do género, outras assuntos de desigualdade e injustiça com que a sociedade de hoje se debate. O modo como é inserido na Londres Vitoriana é inteligente e pertinente
Há muito de Joss Whedon em “The Nevers”, vê-se “Buffy”, “Firefly” e “Dollhouse” aqui e ali, tudo misturado com um desejo de recriar uma história com linhas familiares noutro momento: não é só de X-Men que se alimenta, mas também de Charles Dickens. A vontade de dar poder a personagens femininas não é nova, mas aqui há qualquer coisa de diferente. Ao longo dos episódios, “The Nevers” explora, a partir do género, outras assuntos de desigualdade e injustiça com que a sociedade de hoje se debate. O modo como é inserido na Londres Vitoriana é inteligente e pertinente.
Mas este Joss Whedon é o mesmo que já abandonou a produção de “The Nevers”. Após diversas queixas nos últimos meses sobre o seu comportamento durante algumas filmagens – sobretudo, de abuso de poder sobre os atores -, o realizador, argumentista e produtor deixou a série a cargo da britânica Philippa Goslett, que já assumiu funções de showrunner.
A irreal história de “The Nevers” está expresso no título. É um conceito ausente na série, mas que se quer na cabeça do espectador: nunca, ou “as nunca”. Potenciando a ideia de que tais eventos nunca poderiam ter acontecido e, simultaneamente, de como as mulheres costumam ser deixadas de fora nestas histórias. Uma história alternativa dá-lhes palco, “The Nevers” é X-Men dentro de um livro de Charles Dickens com uma leitura imediata e oportunidade sobre o presente. É uma Londres que quer ser delas. E é agora ou nunca.